quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Civilização do Indo e a China Antiga




“O nobre é um glutão e o camponês comida” - Diz um provérbio hindu. Na Índia, no séc. XVI ainda eram observados rituais onde reis retalhavam a sí próprios, e nos templos da deusa Kali, cujo estômago é um vácuo impossível de ser preenchido e de cujo útero todas as coisas são geradas, rios de sangue de oferendas decapitadas tem jorrado por milênios através de canais abertos para devolver essse líquido vital, ainda vivo, à sua fonte divina. O sacrifício humano só foi proibido em 1835. Em Tanjore, no templo dedicado a Siva, uma criança do sexo masculino era decapitada diante do altar da deusa todas as sextas-feiras na hora sagrada do crepúsculo. No ano de 1830, um insignificante monarca de Bastar, desejando sua graça, sacrificou-lhe em uma ocasião vinte e cinco homens em seu altar em Danteshvari e, no séc. XVI, um rei de Coch Behar imolou cento e cinqüenta no mesmo local.


Nas montanhas Jaintia, no Assam, era costume de uma certa casa real propiciar todos os anos uma vítima humana durante a Durga Puja, festividade dedicada a deitar oferendas a inacessível deusa, a potência feminina, esposa de Siva, a mais antiga deusa do panteão hindu que encarna muitas denominações. Depois de ter se banhado e purificado, o sacrificado era vestido com roupas novas, coberto com sândalo e vermelhão, adornado com grinaldas, e dessa maneira instalado sobre uma altar elevado diante da imagem, onde passava algum tempo em meditação, repetindo sons sagrados e, quando pronto, fazia um sinal com o dedo. O carrasco na função sagrada, também pronunciava sílabas rituais, elevava a espada e  num movimento cortava a cabeça da vítima, que logo era ofertada para a deusa em uma bandeja de ouro. Os pulmões, depois de cozidos, eram consumidos pelos iogues, e a família real compartilhava uma pequena porção de arroz embebido no sangue sacrificial. As vítimas eram quase sempre voluntários. Entretanto quando se tornavam escassas eram seqüestradas fora do feudo. Assim aconteceu em 1832, quando quatro homens desapareceram do domínio britânico, dos quais apenas um escapou para contar a história provocando a anexação do reino no ano seguinte e a abolição da prática sangrenta. 


A grande densidade populacional do vale do rio Ganges a partir de 300 a. C. levou a ocupação desordenada da região e a destruição da cobertura florestal, o que causou uma possível mudança ambiental afetando a sazonalidade dos períodos entre secas e chuvas. Apesar dos esforços na irrigação das culturas de solo muitos camponeses se viram com pouco acesso a água ou até mesmo despojados desse recurso. Já no período de monções as inundações provocadas pelas chuvas repentinas em excesso nas  encostas do Himalaia carregam os nutrientes da terra desprotegida e os períodos de seca podem perdurar três estações consecutivas ameaçando até hoje a vida de milhões. Pelo Mahabharata, poema épico criado entre 300 a. C. e 300 d. C. temos conhecimento de uma seca que durou doze anos. O poema conta como secaram as nascentes, os poços e lagos e como suas criações de ovinos e bovinos tiveram que ser abandonadas. O comércio das lojas e mercados ficaram vazios. Deixaram os sacerdotes de fazer seus sacrifícios de animais e as próprias  estacas de contenção sacrificiais desapareceram. Os festivais religiosos foram interrompidos. Por toda a parte as carcaças de animais cobriam os terrenos e seus gritos e estertores eram ouvidos. As pessoas abandonavam as cidades e as vilas que queimavam. Os locais de adoração ficaram desertos. Até os sacerdotes brâmanes morriam sem proteção. Os anciões eram abandonados a própria sorte e expulsos de suas casas. Bois e vacas, cabras, ovelhas e búfalos tornavam-se violentos e ariscos pela fome e sede e atacavam-se enlouquecidos uns aos outros. Os sobreviventes começaram a temer a presença do seu próximo. A terra parecia um crematório, a vegetação definhava  e "nessa medonha época em que a retidão terminara os homens começaram a comer uns aos outros".


Kali
             
"Por cada sacrifício humano acompanhado dos devidos rituais, a deusa fica agradecida mil anos", pode-se ler no sagrado Kalila Purãna, escritura hindu datada de cerca do séc. X da nossa era. "e pelo sacríficio de três homens, cem mil anos. Siva, em seu aspecto sombrio, como consorte da deusa, é aplacado durante três mil anos por uma oferenda de carne humana. Pois o sangue, se imediatamente consagrado, torna-se a ambrosia, e, como a cabeça e o corpo são extremamente gratificantes, deveriam ser oferecidos em louvor à deusa. O sábio faria bem se acrescentasse tais carnes, livres de pêlos, às suas oferendas de comida.


A civilização pré-ária que surgiu no vale do Indo  entre 2500 a 1500 a. C. tinha já contatos com os povos do Crescente Fértil com quem mantinham trocas de mercadorias via navegação. Navios carregados de madeira, metais e marfim seguiam para a Suméria e Acádia e estabeleceu-se assim uma troca de elementos étnicos e culturais entre as duas regiões. Esqueletos com traços proto-australóides e mediterrâneos foram encontrados provando a difusão de uns e a miscigenação de outros povos que vieram formar posteriormente os grupos que foram colonizar o Ceilão, a Melanésia e a Austrália. Entre as ruínas dessa civilização foram encontrados muitos indícios de que os cultos fálicos da deusa mãe, que os árias tentariam desprezar depois, eram uma característica importante das crenças dessa civilização anterior. Sua forte influência permaneceu incólume ao passar dos séculos, no que diz respeito aos sacrifícios humanos como culto de fertilidade, e sobreviveu tanto nos templos quanto nas florestas santuário, até ser abolido pelos ingleses dominadores no séc. XIX. É reconhecido que tais celebrações ocorriam no âmbito das pequenas aldeias nativas, nos bairros de trabalhadores das cidades e também nas festas supremas do Estado. O sofrimento das vítimas em tais ritos conforme pode-se observar onde ocorreram  eram razão do frenesí e excitação das massas de crentes.


Como exemplo, os khonds, povo de origem drávida, proto-australóide, de Orissa, Bengala e Bihar mantinham suas vítimas, conhecidas como "meriah", em cativeiro por anos, para serem sacrificadas à  Deusa Terra para garantir boas colheitas e imunidade contra pestes e doenças, e em especial garantir um belo vermelhidão para o açafrão-da-índia. Para ser aceitável a vítima deveria ter nascido de um "meriah", ser seu descendente. Os khonds, segundo relato, vendiam seus próprios filhos para o sacrifício, já que essa morte sagrada abençoaria suas almas. Entretanto, era mais usual que adquirissem as vítimas de seus vizinhos pans, uma tribo tecelã criminosa que sequestrava crianças das planícies para esse fim específico. Na juventude, o meriah em geral era casado com outro meriah e assim seus filhos seriam também meriahs. Eles eram considerados seres consagrados e tratados com afeição e respeito, em disponibilidade para serem imolados em ocasiões extraordinárias ou nas festas periódicas, antes da semeadura, para que cada família da aldeia pudesse obter, pelo menos uma vez por ano, um pedaço de carne humana para plantar em sua lavoura para propiciar o aumento e a qualidade da colheita.


Dez ou doze dias antes do sacrifício, a vítima era preparada: cortavam-lhe o cabelo e a ungiam com óleo, manteiga e açafrão-da-índia. Seguia-se uma temporada de orgias e libertagem, ao final da qual o meriah era conduzido com festejos, músicas e danças à floresta meriah, um pouco afastada da aldeia, um lugar cheio de árvores frondosas onde o machado ainda não havia tocado. Atada ali a um poste e novamente ungida com óleo, manteiga e açafrão-da-índia, a vítima era enfeitada com flores, enquanto a multidão dançava a sua volta, cantando para a terra: "Ó Deusa, nós te oferecemos este sacrifício, proporciona-nos boas estações, colheitas e saúde", e para a vítima: "Nós te compramos por um preço, não te capturamos, e agora, segundo o costume, te sacrificamos: nenhum pecado pesa sobre nós". Seguia-se uma grande luta para conseguir relíquias mágicas dos adornos de sua pessoa - flores ou açafrão - ou uma gota de sua saliva, e a orgia continuava até por volta do meio-dia seguinte, quando chegava a hora da consumação do ritual.


A vítima foi novamente ungida com óleo (escreveu Sir James Frazer em seu resumo dos relatos de quatro testemunhas oculares da época) e cada pessoa tocou o ungido e passou o óleo na sua própria cabeça para reter sua fortuna. Em alguns lugares, levava-se a vítima em procissão pela vila, de porta em porta, onde fios de cabelos eram arrancados e imploravam por uma gota de sua saliva, que esfregavam na própria cabeça como uma medicina  para assim conter a magia da prosperidade. Como a vítima não podia ser manietada e nem demonstrar resistência, rompiam-lhe os ossos dos braços e, se necessário, das pernas; mas quase sempre entorpeciam o escolhido com ópio para melhor dispor de sua imolação. A ritualização do momento de sua morte variava conforme a localidade onde era realizado o sacrifício. Os métodos comumente usados eram o estrangulamento ou esmagamento. O galho verde de uma árvore era cortado no sentido longitudinal o suficiente para ser inserido no pescoço da vítima ou no peito, dependendo da região, e o sacerdote com seus ajudantes forçavam para fechar a fenda onde a vítima era enxertada. Então ele fazia um pequeno ferimento no imolado com seu machado, ao que, a ser dado o sinal a multidão se precipitava sobre a vítima e descarnava seu corpo até os ossos, deixando a cabeça e os intestinos intactos. Às vezes a vítima era esquartejada viva. Em Chinna Kimedy o seu corpo era arrastado pelos campos, cercado pela multidão, que evitando sua cabeça e intestinos, retalhava sua carne com facas até a sua morte. Outro método de imolação era pregar a vítima na tromba de um elefante de madeira, que girava em volta de um poste fixo e conforme a rotação acontecia a multidão cortava a carne dela ainda viva. Em outra região a vítima era morta lentamente a fogo. Foi construída uma plataforma baixa, com declives laterais, como um telhado; sobre ela colocaram a vítima, os membros envoltos em cordas para impedir seus movimentos. Então fogos eram acendidos e lhe aplicavam brasas incandescentes que rolavam pelas inclinações das plataformas por tanto tempo quanto possível, pois quanto mais chorava o supliciado mais abundantes seriam  as chuvas. No dia posterior seu corpo também era esquartejado.


A carne da vítima era distribuída entre cada representante das aldeias que faziam uma espécie de corrida de revezamento para que o fruto do sacrifício chegasse em boas condições ao destino. Nas aldeias todos jejuavam até a chegada da carne. O portador a depositava nos locais de reunião pública onde era recebida respeitosamente pelos sacerdotes e chefes. O sacerdote dividia a carne em duas porções, uma delas era oferecida à Deusa Terra enterrando-a em um buraco, de costas e sem vê-la. Então cada principal completava com um punhado de terra e o sacerdote depositava água de uma cabaça no local do plantio simbólico. O outro pedaço era dividido em quantas partes fossem necessárias para cada chefe de família presente. Cada um pegava seu pedaço de carne e repetia o enterro com o mesmo ritual em seu terreno preferido. Em outros lugares a carne era dependurada num poste nas imediações do rio que irrigava a lavoura. Pelos três dias consecutivos não varriam as casas, em determinada região se fazia silêncio absoluto; nenhum fogo era distribuído, nenhuma lenha cortada e era interdito receber estrangeiros no período. Os restos da vítima, sua cabeça, intestinos e ossos eram vigiados por guardiães bem armados durante a noite subseqüente ao sacrifício e de manhã os despojos eram queimados, juntamente com uma ovelha inteira, numa pira funerária. As cinzas eram espalhadas pelos campos, colocadas sobre as casas e celeiros, ou misturadas com os cereais novos, como diziam, para preservá-los dos insetos. Às vezes, entretanto, simplesmente enterravam os despojos.


A supressão dos sacrifícios humanos levaram os seguidores da Deusa a escolher animais para substituir as oferendas, fato que possui uma universalidade de escolha entre várias civilizações conhecidas. Na capital de Chinna Kimedy, uma cabra passou a ocupar o lugar da vítima humana. Outros sacrificam um búfalo. Eles o atam a um poste de madeira em uma floresta sagrada, dançam selvagemente à sua volta e brandindo facas atacam o animal vivo, o esquartejam em alguns minutos, num frenesí de luta entre os participantes que disputam entre sí cada naco de carne. Assim que um deles consegue um pedaço, sai em disparada para enterrá-lo em sua lavoura, conforme um antigo costume milenar, antes do pôr do sol, independente das longas distâncias que precisem percorrer. Todas as mulheres jogam torrões de terra nos homens que se afastam, algumas com boa pontaria. Aos poucos a floresta sagrada vai ficando silenciosa e deserta com exceção de uns poucos que guardam os despojos, a cabeça, os ossos e intestinos, que são depois incinerados ritualmente ao pé do poste de sacrifício.


Até recentemente, entre os nagas de Assam, um touro vivo correndo numa arena era aos poucos retalhado por uma tribo em frenesí, urrando como feras. Esse ritual possuí referencias em toda a Ásia e Europa, é lembrado na mitologia remanescentes de Creta e seguiu entre os povos de origem celta e germânica para o Novo Mundo ocorrendo de forma espontânea em vários países no período que antecede a semeadura da terra. Entre os birmaneses do distrito Chindwin Superior o ritual antropofágico ainda hoje é lembrado, quando crianças pequenas eram compradas com o propósito de serem sacrificadas nos festivais de agosto para assegurar uma boa colheita de arroz.


"Depois de lhe colocarem uma corda em volta ao pescoço, a vítima era levada às casas de todos os parentes de seu comprador. Em cada casa cortavam-lhe um nó de dedo e todas as pessoas da casa eram lambuzadas com o sangue. Elas também lambiam o nó cortado e o esfregavam no tripé de cozinhar. A vítima era então amarrada a um poste no meio da aldeia e morta por repetidos golpes de lança; o sangue de cada golpe recolhia-se em um bambu oco, usado depois para lambuzar os corpos do parente do comprador. As entranhas eram então retiradas e a carne removida dos ossos e tudo colocado num cesto numa plataforma próxima, como oferenda ao deus. Depois de o sangue ter sido esfregado no comprador e seus parentes, que enquanto isso dançavam e choravam, o cesto com seu conteúdo era jogado na floresta".


Não podemos de deixar de perceber a semelhança desse ritual com a cerimônia de esfolamento que os astecas cultuavam para propiciar uma vítima ao seus deuses usando inimigos capturados. Alí também o  "Bem Amado" era tratado pelo seu dono com carinho paternal até o momento final do sacrifício e o posterior descascamento da vítima, quando então ele era pranteado por toda a família que o havia acolhido e depois seus restos eram servidos para todos como parte fundamental do cerimonial.


Também no culto da Deusa Mãe que poderia ser inocentemente encenado com uma mulher nua lasciva e vários casais que se deleitavam entre mantras e comidas apetitosas num rito orgiástico de tantra, ou então se sacrificavam vítimas humanas com até mesmo a degustação de sua carne para celebração da divindade. Outros ritos, para a obtenção de poderes mágicos, exigem que um iogue medite a meia noite num cemitério, num chão ardente abrasado pelo sol, ou num local onde são executados os criminosos, sentado sobre um cadáver, se ele conseguir realizar isso sem medo, os fantasmas e duendes femininos tornar-se-ão seus escravos. Exercícios eróticos podem acompanhar  ou encerrar tais ritos. Certos devotos furam suas carnes com ganchos e espetos, atravessam a própria língua com instrumentos pontiagudos, deitam-se em camas de prego ou cortam-se com facas. Outros, denominados "Portadores de Crânios", cobrem-se com as cinzas de uma pira funerária, penduram uma fieira de crânios humanos em volta do pescoço, trançam os cabelos e usam uma pele de tigre nos quadris, levando a mão esquerda um crânio como tigela e na direita um sino que deve ser tocado incessantemente enquanto gritam: "Oh, Senhor e esposo de Kali!"                     


Assim eros e tanátos em sua dança macabra festejam o apogeu da fertilidade do mundo, comentaria um especialista freudiano sobre tais cultos extremos, o clímax da violência libidinosa, verdadeiro frenesí desencadeado pela celebração que leva ao delírio de seus participantes na comemoração do sempre retorno sazonal da fecundidade da Mãe Terra, corpos libertos em insana orgia devoradora. Como entre os tupinambás a vítima era exibida para a comunidade antes do ato extremo, como representação do "Bem Amado" que trará prosperidade para todos com seu sacrifício e reordenará as esferas do mundo. O ser onívoro fenomenal em seu ritual propiciatório necessita garantir seu alimento futuro e prover o  sustento aos seus desde o início dos tempos. Que oferenda melhor, mais cara, do que uma vida humana para ser consagrada à Deusa da fertilidade, qual outro bem poderia ser mais valioso? O ritual transcende em sua simplicidade particular os atos vulgares, comuns até, de morte e de sexo, ele é a culminancia do dilema alimentar desse animal racional onívoro que aprendeu a regar seu plantio com o sangue do próximo, como crença humana arraigada, da necessidade de um ato sagrado e sangrento que vela seu comportamento de fera que foi engendrada, encobre sua sofreguidão e voracidade de primata caçador, antropófago primordial,  pulsão desencadeada no rito comunal de agricultores até então reprimidos. A satisfação da boca que devora é sujeitada para agradar a crença que está inserida num plano de existência divino e portanto superior da tradição. As carnes podiam ser devoradas pelos gurus, como já vimos, mas foram respeitosamente plantadas na terra, sem ódio e sem culpa para os comuns. A glutoneria não é ainda um pecado capital?                                


Na China Antiga  a  organização  politica e social estruturou-se numa sociedade patriarcal baseada na relação familiar de afinidade, que cresce do núcleo familiar até a estrutura política do reino, de cunho absolutamente antropofágico nas relações entre os diferentes clãs familiares, tradição estabelecida já no período pré-confunciano. A sociedade tribal chinesa era em seus primórdios organizada em metades, os membros de um clã casando com os membros de outro, enterrando seus mortos, prestando-lhe serviços, e competindo no valor dos presentes dados entre os clãs  afins. Os do clã A distinguiam os do clã B por termos que exprimiam uma relação familiar de matrimonio, de modo que um homem podia chamar a uma classe inteira de homens de “irmão da mãe”, embora muitos deles não fossem seus tios biológicos. Essa ligação parental obrigava o homem do clã a desposar a filha de um desses homens do outro clã. Era o mesmo como casar com a prima irmã, costume até certo ponto comum em várias culturas até hoje. Resultava na relação parental existir uma única palavra para designar “irmão da mãe” e “sogro”. Um homem se casava com a filha do irmão de sua mãe e presidia aos funerais do tio, bebendo a sopa feita do cadáver do falecido, para herdar suas virtudes. Esta forma tribal de organização dual, baseada na herança matrilinear, origina um cruzamento de sucessões e uma oposição entre gerações alternadas, bem como entre os dois clãs formadores da tribo. O problema envolvia até a sucessão da chefia que era transmitida de tio para sobrinho. A transmissão do poder ocorria pelo banimento ou pelo sacrifício ritual do filho do tio após as cerimônias fúnebres do “irmão da mãe”. O filho do sobrinho é por sua vez banido quando chega ao fim o reinado do sobrinho. Desta forma ambos os clãs partilham do poder, cuja função principal é manter e servir o culto da tribo.

O culto inicia com a geradora ancestral, a Rainha Mãe, a Nutriz, que simboliza o principio Yin. Entre outras coisas este principio representa o Vale Místico, onde a agricultura sempre pode engendrar bons frutos e portanto ao feminino. Ela é mais importante que sua miríade de filhos, cada um fundador de uma estirpe de oligarcas que tem por dever arar e irrigar os campos, desenvolver os meios e harmonizar as estações do ano para garantir boas colheitas. Seu comando herdado pela tradição personificava o fundador ancestral, responsável pelo entendimento do calendário sagrado, organizador dos ritos equinociais nos locais santos, como os casamentos que devem ocorrer nesta época do ano, quando as forças Yin e Yang são iguais, visando assim garantir o equilibrio do Tao. Ele mesmo dorme com sua rainha toda a lua cheia e integra assim o homem e a natureza. É o sagrado matrimonio entre o Céu e a Terra, entre Yang e Yin, a eterna mudança das estações que vem e vão reguladas pelo movimento cósmico do Tao.

Yin - Yang

Seu símbolo sagrado representa as mudanças contínuas de Tao onde o claro semicírculo yang branco já possui o pequeno potencial yin e que sua sombra yin detém o potencial yang em projeção como num caleidoscópio que se complementa infinitamente. Embora estas forças Yang e Yin sejam complementares, a passagem do tempo é marcada pela sua disputa que se traduz na mudança das estações. É na passagem do ano que Yang tenta libertar-se das condições adversas do inverno e sua passividade Yin. A aldeia está com a colheita armazenada e seu povo agasalhado contra as condições adversas do clima. A vida social prospera, todos os clãs estão reunidos. É quando o culto dos antepassados precisa ser celebrado para reanimar o espírito da vida. A terra tem que ser propiciada contra o sacrilégio de ter sido fendida pelo arado do agricultor e obrigada a fornecer seu alimento. Os povos agrícolas agridem a terra, mas como retribuições devidas para garantir sua permanente fartura na colheita futura precisam imolar uma vitima em sacrifício para a Grande Mãe. A morte de um ser humano é a paga pelo sucesso da cultura e a alma do imolado permanece como refém durante seu crescimento até a época da colheita quando então é mandada embora. Só assim o povo pode comer o alimento sem medo de castigo. Essa expulsão da alma parece ter tido um caráter igualmente sangrento quanto à invocação anterior de fertilidade, e são estes dois rituais que pretendem aplacar o sacrilégio da agricultura cometido pelos homens transformado então em um rito sagrado antropofágico. Neste caso é a terra que se alimenta da carne da vítima e absorve sua essência espiritual de forma temporária. Estes rituais marcavam a vida dos camponeses que viviam de forma sedentária e são ligados à fundação de estabelecimentos agrícolas e sobre a posse da terra pelos senhores.

Cada um dos clãs tinha o dever e o privilégio de personificar o Yang e o Yin. O cerimonial de inverno era dedicado à rivalidade das duas metades da tribo quando realizavam jogos, competições, duelos e festas, e cada lado produzia espetáculos teatrais e buscava sobrepujar o outro em beleza e harmonia.

Entre os clãs havia também as fraternidades, como a dos ferreiros, que em todas as culturas adquirem uma reputação mágica por transformar pedra em metal, e como prometeu possuem a sina do conhecimento dos deuses sobre os elementos, seu sacrilégio transformado em arte sagrada de grande poder. Produzem estes artífices os instrumentos com que os lavradores rompem a terra, o peito da Grande Mãe e as armas que os homens usam para as conquistas militares e morte dos semelhantes.

Nesta época acreditava-se que as armas de guerra não poderiam ficar junto a lugares sagrados ou ocasiões sagradas. Quando não em uso deviam estar sob a guarda do chefe, para que sua influencia maléfica não fizesse gorar as colheitas. Desta forma o senhor controlava a guerra e cuidava para que fosse mantido seu ritual particular de estabelecimento de conflitos armados. Dentro desta mentalidade eram as primeiras capitais feudais projetadas como acampamentos militares, estavam divididas em quatro setores; o local de culto ficava ao centro. Cada quartel ou armazém ficava sob o comando de um chefe militar, e esses deviam subordinação aos chefes da Direita ou da Esquerda. No centro dominava o senhor feudal que todos os clãs deviam obedecer.

Esta ritualização na agricultura e na guerra levava a uma preponderância do masculino sobre o feminino. Quem representaria a qual principio deve ter sido razão de rivalidade permanente entre os clãs que segundo os estudiosos promoviam combates rituais para decidir os papéis nos cerimoniais de inverno. Os dois chefes dos clãs e seus lugares tenentes, da Direita e da Esquerda enfrentavam-se, e os vencidos eram mortos. Devido a organização matrilinear dos dois clãs podemos dizer que se tratava de uma disputa entre parentes. Com certeza pais e filhos lutavam em lados opostos, de forma que problemas de sucessão também estavam em jogo.

Em “Sagrado e Profano” de Francis Huxley explica: “A mais antiga regra de sucessão foi essa: o sobrinho-sacerdote ou ministro sucede ao seu tio-rei, o que fazia propiciando seu fantasma e comendo sua carne cozida numa sopa. Nesse ritual fúnebre antropofágico ele recebia do defunto as virtudes do Céu e as da Terra que passava a incorporar. Quanto tempo durava o seu reinado ainda é uma incógnita. Os textos antigos revelam que para retardar o fim de seu reinado, ele usava substitutos no cerimonial do inverno ou podia abdicar em favor do sobrinho, cujo reino era idealmente de 30 anos. Durante estes 30 anos, o rei se preparava para a imortalidade, e a sua morte o sobrinho ou ministro ascendia à realeza pelo rito chamado “jang”, que significa tanto banimento quanto cessão do poder. Parece que o sobrinho-ministro cedia os poderes ao filho do rei e depois os recobrava matando-o ritualmente. Bania assim a fatalidade da morte e, ao mesmo tempo, fornecia ao rei morto um útil assistente no outro mundo”.

Igual ao que ocorria no Ocidente, o Cerimonial de Inverno combinava simbolicamente os aspectos agrícolas e funerários. Tambores eram ouvidos no despertar o trovão do principio criador enquanto o povo dançava para colocá-lo em movimento e bebia até cair; “a fim de imitar o ocaso do sol para o esquecimento e imitá-lo a abandonar sua pureza inútil”. O ano novo era marcado por seis dias de celebrações especiais – onde as antigas práticas tribais de caráter antropofágico eram mantidas. Começavam com um duelo entre os chefes de tribos rivais, uma espécie de xadrez para ver quem representaria a Terra ou o Céu, sendo o vencedor, aquele que presidia o festival, o representante da Terra. Durante os seis dias do festival, animais de cada uma das seis espécies domésticas eram sacrificados. No sétimo dia, o representante humano do Céu era morto para marcar o inicio do Ano Novo. Seu sangue era derramado num odre em formato de coruja que simbolizava o Yin e que era denominado de “Caos”. O odre cheio de sangue era pendurado numa árvore, mastro ou torre alta e o sacrificador atirava nele sete flechas curvas que representavam o raio da Criação e o sobrevivente batizava-se no sangue do sacrificado quando este espirrava das perfurações. Por este ato, rompia o Caos para dar luz ao sol que era a face do Céu, e toda a face segundo a crença chinesa tem sete orifícios (como também o coração tem sete orifícios – dizem eles). Era a reafirmação da unidade, pois o sobrevivente chamava a si o poder do Céu, que na disputa tinha sido dado ao seu inimigo morto. Assim conforme o ritual o propiciava reunia as virtudes Yin e Yang na sua própria pessoa.

A festa encerrava com orgias sexuais, liberadas pelo morrer da velha ordem. “Há indícios de que a velha rainha era sacrificada nesta ocasião, e sua carne consumida num banquete comunal, que assinalava assim o triunfo absoluto do poder masculino sobre o feminino”. O rei vitorioso se recolhia por um tempo numa câmara subterrânea como o sol se escondia no Abismo do mundo. Após sua reclusão subia na árvore, mastro ou torre onde seu inimigo, a vitima do Caos, estava pendurado para concluir o ritual de instalação no poder. Ali recebia o poder do Céu, comemorado por um rito denominado “fong”, no qual um sacrifício humano era feito no alto de uma montanha onde era depois construído um marco de pedras encimado por uma pedra grande vertical de inspiração fálica. O novo rei tinha implantado o poder Yang firmemente sobre a Terra, podia escolher livremente sua consorte na metade tribal oposta para provar sua supremacia.

Mais tarde veio a mudança dos costumes, e com ela a inversão das velhas regras de sucessão. Agora, era o sobrinho-ministro quem era banido ou sacrificado à morte do rei, e era o filho mais velho do defunto quem bebia o caldo de carne dele e, assim, reivindicava o título. Ainda assim necessitava casar-se com a filha do irmão de sua mãe para poder reivindicar a virtude da Terra, pois que o novo arranjo matrimonial permitia-lhe acumular junto com a do Céu.

Mas ainda permaneceram a tradição anterior de alternância no seu sentido ritual e a visão que dá ênfase ao elemento masculino. Desde o tempo que pertenciam a grupos distintos, pai e filho se sentiam pouco à vontade na sociedade chinesa. São adversários pelo contexto da relação tribal a tal ponto que o filho era criado pela família da mãe e era trazido à presença do pai só em ocasiões especiais para ser reconhecido pela linha paterna. A relação era de senhor com vassalo, e até pouco tempo atrás subsistia sob a aparência de piedade filial confunciana, resultado complexo de vários impulsos contraditórios de conotação antropofágica. Sua finalidade na relação social era a continuidade das linhagens paternas, que só poderia manter preparando seus progenitores para o momento em que eles se tornariam antepassados, e o filho pudesse absorver os títulos e honras que porventura eles tivessem. Mas pai e filho ficavam separados tanto na vida como na morte, pois até mesmo suas tábuas ancestrais ficavam instaladas em lados opostos no santuário familiar.

O senhor feudal é que acumula mais antepassados, sua linha de parentesco se estende até o herói fundador, do qual recebeu por herança a prerrogativa de chamar-se Senhor de Vassalos e Chefe de Família. Seus vassalos vivem na mesma cidade e são membros da mesma família tribal que vai sempre aumentando, dividindo-se, e buscando novos lugares. Aqueles que fundam novas casas tornam-se por sua vez ancestrais-fundadores para seus descendentes. Esta genealogia garante uma hierarquia de antepassados, com o chefe procedendo da origem e os vassalos correspondentes do ancestral responsável pela bifurcação da linha principal de geração. Quando o chefe se torna um senhor feudal pode atribuir cada grau de nobreza a certo numero de seus antepassados fixando assim uma hierarquia.

Pelo privilégio de presidir o sacrifício era estabelecida também a hierarquia. O senhor feudal expiava assim o sacrilégio de romper a terra para a agricultura, detinha o atributo divino da atividade da guerra sendo guardião dos arsenais e era o representante continuador do culto da fundação perante o Céu e a Terra. Desta forma controlava a riqueza. O senhor garantia sua primazia cedendo sua honra ao Céu, seus vassalos ganham a honra pagando-lhe tributo, garantindo assim a manutenção de seu nível social. O poder do senhor de proceder a distribuição dos bens por causa de sua prerrogativa de sacrifício é utilizada com o objetivo de manutenção do seu poder. Os vassalos dependem do senhor para comer, pois ele tinha controle total sobre a economia. Do senhor emanava então o poder de garantir este complexo processo de trocas e era o único personagem que podia transcendê-lo ocupando o centro de inúmeras rivalidades e oposições que faziam dele o senhor canibal que do alto desta escala alimentar, como predador, devorava seus súditos com o objetivo de redistribuir as riquezas, seus lucros e sua honra mantendo a qualquer custo o “status quo”.

Por esta razão evitavam perder o conceito da própria supremacia e evitar que o inimigo derrotado, em última análise na mesma posição de hierarquia perdesse o seu. Esta é a principal regra de qualquer sociedade feudal. Suas guerras como as dos Astecas estavam cheias de códigos de honra bizarros e cumprimentos rituais de demonstração de respeito mútuo entre nobres inimigos que professavam as mesmas crenças e objetivos de poder. Derrotado o senhor poderia manter sua vida e posses desde que aceitasse seu erro e apelasse para o sentido de honra do vencedor. Um general evitava atacar o inimigo em condição desfavorável e só lutava com alguém do mesmo nível social, evitando destruir o inimigo em uma vitória fulminante para não atrair os olhares desconfiados do senhor. Caso tal sucedesse teria que derrubá-lo para sobreviver. O general ou o ministro cuidavam da sorte dos oponentes do senhor mantendo-os saudáveis para manter sua pessoa e seu cargo indispensável. O rei segue as mesmas regras e faz suas alianças apenas com aqueles que mantêm os mesmos inimigos que ele próprio. Vencido o inimigo a aliança perde seu valor e o aliado pode transformar-se em oponente devendo, portanto ser vencido. Todas as astúcias, traições e assassinatos são artimanhas postas em ação para manter um equilíbrio adequado e são justificadas ao fim pelas mesuras dos contendores e seu sentido de honra aristocrático.

Numa sociedade feudal a manutenção da etiqueta, das vestimentas adequadas, da oratória, do cerimonial dacorte, e da arte da guerra possui características próprias que devem ser escrupulosamente seguidas em nome da honra de seus personagens que executam movimentos e ocupam suas posições como um jogo de xadrez, cada qual cumprindo seu papel visando à perpetuação de privilégios de poucos sobre os demais. Avirtude neste caso não se reveste de julgamento de valor moral nem é virtuosa. A palavra assume seu verdadeiro sentido que é “característica essencial de uma pessoa, uma criatura ou coisa como manifestada pela sua aparência e ou atividade”.

Desta forma os estados feudais na China formavam uma confederação de interesse, lutando entre si não para conquistar territórios, mas para manter vivas suas vinganças, como esporte de cortesãos. Mas quando sofriam ameaças externas dos bárbaros que bem armados e em grande número cercavam suas fronteiras provenientes das imensas estepes, os estados eram reunidos e comandados pelo mais forte, seu rei recebia então o mandato do Céu e ele ou seu general chefiavam as forças aliadas. Como filho do Céu que ocupa todo o horizonte sem distinção seu poder transcendia o poder dos fundadores de nobres estirpes que se identificavam com regiões determinadas. O Céu era o deus dos juramentos e da fidelidade e deveria sempre ser propiciado com carne humana. A prática do endocanibalismo assegurava a tradição de sucessão entre os chineses por linha parental, mas proibia que um senhor devorasse outro, fato que acarretaria em anexar o feudo rival, o que ia contra seus costumes tribais. Com seus inimigos das estepes a coisa era diferente, nem sequer reconheciam sua humanidade, pois estes estrangeiros apesar de aparentados com seus antepassados da pré-história falavam estranhos dialetos e não seguiam os mesmos costumes ou crenças. Nas suas guerras contra os bárbaros os chineses comiam seus inimigos e se apropriavam de seus territórios sem remorso algum. O sacerdote deste sacrifício era o filho do Céu, que transferia a honra da vitória ao Céu para expiar as culpas e estabelecer a Grande Paz que deveria garantir a proteção do império contra as ameaças externas.

Desta sociedade antropofágica, igual a todas outras, surgiu a figura do imperador que foi o causador da morte do feudalismo, sob o pretexto da segurança acabou transformando os antigos estados feudais em províncias. Os nobres foram substituídos por funcionários fiéis. Os povos conquistados foram explorados e assentados conforme os interesses do império, e seus exércitos que antes era composto de vassalos e nobres oficiais investidos pelo poder dos senhores acabaram substituídos por soldados profissionais, rudes rufiões que já não respeitavam as velhas práticas do cavalheirismo e da arte da guerra. A lei substituiu o costume e os comerciantes, cujos negócios na paz imperial prosperaram, tornaram-se aliados naturais do imperador que passou a acumular riquezas sem medida em nome de seu poder central e a ser o mediador delas segundo uma nova escala macroeconômica de um estado com dimensões continentais.

Confuncio

Em nenhum outro lugar a doutrina confunciana da moralidade e benevolência  foi tão bem aceita quanto no Estado de Lu; porém no ano de 249 a.C. Lu foi invadido e destruído. Pelo ano de 318 a.C., o Estado não filósofico de Ch'in, ainda com práticas de sacrifícios humanos, havia derrotado uma confederação de vizinhos; em 313 o reino de Chu, no sudeste taoísta, foi definitivamente derrotado; em 292, Han e Wei caíram e em 260, Chao. Em 256 a. C., as propriedades da dinastia Chou foram totalmente cercadas. No ano de 246 a.C. , o rei Ching assumiu o trono Ch'in e em 230 anexou o Han; em 228, o Chao; em 226, o Ch'i; em 225, o Wei; em 222, o Ch'u; em 221, ele assumiu o título Ch'in Shih Huang Ti, como o primeiro imperador da China, e imediatamente começou a construção da Grande Muralha para defender o Império de outras invasões bárbaras como a que ele realizou e, em 213 promulgou o édito da queima dos livros.


A morte deveria ser a sentença para os sábios que fossem pegos em reunião de leitura ou discussão dos clássicos. Os que fossem encontrados com cópias das obras trinta dias após a proibição, eram marcados a fogo e obrigados a trabalhar por quatro anos na construção da Grande Muralha; centenas foram enterrados vivos. Em 210 Ch'in Shih Huang Ti morreu e em 207 a dinastia sucumbiu. Em 206 sua capital foi saqueada, incêndios arderam três meses queimando os palácios, e o deus do fogo, Chu Jung, ajudou a consumir os livros remanescentes que haviam escapado da destruição dos comissários de Ch'in Shih Huang Ti. 

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