quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Povos das Estepes - Os Citas

Cavaleiros Citas
André  Thevet (1502-1590) frade franciscano que esteve no Rio de Janeiro na época das invasões francesas de 1555 a 1556  em sua obra “As singularidades da França Antártica”  encontra algumas intersecções entre os hábitos alimentares antropofágicos dos Tupis e outros ocorridos na história da humanidade entre os povos que viviam na Ásia e Europa. Ele reconhece na Antiguidade euro-asiática  fatos  de “tão excessiva crueldade”, como o cerco de Jerusalém por Tito, quando a fome, ‘depois de ter tudo devorado, constrangeu as mães a matar seus próprios filhos e comê-los’”. Suas analogias remetem ainda aos míticos  antropófagos de Heródoto e Plínio,  registros  que relacionavam  tais costumes com os Citas, os quais segundo os autores se alimentavam de carne humana e que, segundo Thevet, considerava serem os remotos ancestrais dos tupis. 

Num outro exercício hermenêutico, André Thevet esboça discretamente uma possível relação entre o ritual antropofágico em consonância a um propósito religioso. Poderia ser também um contrato vertical de aproximação com o divino, numa articulação de reflexão da humanidade com Deus. Frank Lestringant  acha que André Thevet, muito provavelmente, tenha pressentido essa hipótese e não a formulou em si dando-lhe “corpo” à questão. Esta suposição permitiu que se estendesse e tornou-se associativa aos mistérios do cristianismo. Alguns missionários, como o Padre José de Acosta que chamava de hóstia as vítimas dos sacrifícios astecas, associavam de certa maneira a antropofagia ao sacramento da Eucaristia. No entanto, Jean de Léry,(1534-1611) em seu relato: Narrativa à Terra do Brasil também dita América (costumeiramente chamada de Viagem à Terra do Brasil), parece ser uma resposta ao trabalho de André Thévet publicado um ano antes. Léry era calvinista e acabou descrevendo tais costumes em sua coletania que na opinião de Claude Lévi-Strauss é uma obra-prima da etnografia. De formação religiosa protestante, estabelece outra visão sobre esta mesma situação. Ou seja, em sua concepção sobre a antropofagia ritual e uma possível similitude com a Eucaristia, ele oferece recursos tangíveis para que o canibalismo, referente aos tupinambás, denigra o dogma papista da transubstanciação. Afinal, segundo seu raciocínio proposto o exercício do homem em comer o outro sempre está presente nas guerras de religião, assim como comem Deus na missa. Outras leituras realizadas por André Thevet se referem ao canibalismo, além do rito de vingança e da eucaristia,como ritos de passagem: batismo, renascimento e conquista da eternidade.

Heródoto em sua obra intitulada: “História”, se refere aos povos indo arianos que habitavam as estepes além do Cáucaso e seus costumes, particularmente os Citas e  como pensava Thevet, deveriam ser seus costumes muito mais semelhantes aos dos povos asiáticos que invadiram continuamente a Europa e também similares suas determinantes culturais e valores arquetípicos de toda a humanidade com um passado antropofágico comum.

“LIX – Quanto aos seus costumes, eis aqui alguns por eles cuidadosamente observados: procuram manter-se sobre a proteção de Vesta, em primeiro lugar, de Júpiter e da Terra que acreditam ser mulher de Júpiter. Depois dessas três divindades, que reputam as maiores, cultuam Apolo, Venus-Urania, Hércules e Marte. Todos os citas reconhecem e veneram estas divindades; mas os citas reais sacrificam também a Netuno. Na língua dos citas, Venus chama-se Tabítis; Júpiter, Papéus, nome que a meu ver, lhe é bem adequado; a Terra ,Ápis; Apolo, Etósiros; Venus-Urania, Artimpasa, e Netuno, Tamimasadas. Erguem estátuas, altares e templos a Marte, e somente a este”.

“LX – Os citas sacrificam em todos os lugares sagrados, procedendo da seguinte maneira: a vitima fica de pé, com os pés dianteiros amarrados. O que deve sacrificá-la coloca-se atrás dela e puxa a corda que lhe prende os pés, fazendo-a tombar, enquanto invoca o deus ao qual vai imolá-la. Em seguida, amarra uma corda no pescoço do animal, apertando-a com o auxilio de um bastão até estrangulá-lo. Não se acende fogo nem fazem libações. Estrangulada a vitima, o oficiante esfola-a, esquarteja-a e prepara-se para cozinhá-la”.

“LXI – Como não há lenha na Cítia, procedem da seguinte maneira para cozinhar a vitima: depois de esquartejá-la, retiram toda a carne que envolve os ossos e colocam-na em caldeiras, se as possuem. Essas caldeiras se assemelham às crateras de Lesbos, com a diferença de serem bem maiores. Debaixo delas acendem o fogo com os ossos da vitima. Se, porém, não possuem caldeiras, colocam toda a carne, com água, no ventre do animal, e queimam os ossos por baixo. Os ossos fornecem um bom lume, e o ventre mantém muito bem a carne. Assim, os animais sacrificados servem para cozinhar a si próprios. Quando tudo está cozido, o sacrificador faz o oferecimento dos primeiros bocados de carne e de vísceras atirando-os para frente. Os citas sacrificam várias espécies de animais, principalmente cavalos”.

Até este ponto do relato de Heródoto podemos antever uma grande variedade de possibilidades em seus atos propiciatórios. Os povos nômades agiam como seus ancestrais e mantinham intocados seus ritos e costumes que remontavam de milhares de anos e foram forjados nas necessidades de sobrevivência de seus grupos tribais em regiões quase sempre desérticas nas estepes. O mesmo tratamento ritual que dispensavam aos animais, como já vimos, faziam com os prisioneiros de guerra para aplacar seu deus guerreiro que Heródoto  comparava ao panteão grego como sendo Marte:  por intuição de uma origem comum,  por possuir evidências históricas hoje desconhecidas, ou por falsa analogia.
    
“LXII – Com relação a Marte, os citas observam o seguinte culto: num campo destinado às assembléias da nação erguem-lhe uma espécie de templo, que é preparado desta maneira: amontoam feixes de gravetos, formando uma pilha de três estádios de comprimento e outros tantos de largura, mas de menor altura. Sobre esta pilha constroem uma espécie de plataforma quadrada, com três lados inacessíveis, e o quarto inclinado de maneira a poder-se por ele subir, Ali são amontoados todos os anos cento e cinqüenta carros de pequenos pedaços de madeira, para manter a mesma altura a pilha que tende a baixar sob a ação das intempéries. No alto, cada nação cita planta uma velha cimitarra de ferro, como símbolo de Marte, à qual fazem todos os anos, sacrifícios, imolando-lhe cavalos e outros animais, em número maior que a outros deuses. Sacrificam-lhe também a centésima parte de todos os prisioneiros feitos entre os inimigos, mas a cerimônia é diferente da que procedem em relação aos animais. Fazem primeiramente libações com vinho sobre a cabeça da vítima humana, degolam-na, em seguida, derramando seu sangue sobre um vaso, e levam-no para o alto da pilha, despejando o sangue sobre a cimitarra. Enquanto o sangue é conduzido para cima, os que se acham embaixo cortam o braço direito, juntamente com o ombro, dos que já foram sacrificados, e atiram-nos para o ar. Terminado o sacrifício, todos se retiram, deixando os braços das vitimas onde foram lançados, enquanto os corpos ficam estendidos em outro lugar”
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“LXIII – É assim que esses povos sacrificam animais e criaturas humanas ás divindades de sua predileção. Nunca, porém, imolam porcos e nem deles se alimentam”.

“LXIV – Quanto aos costumes que observam na guerra, vale mencionar os seguintes: o guerreiro cita bebe o sangue do primeiro homem que consegue abater, corta a cabeça a todos os que mata em combate e leva-as ao seu soberano. Quando apresenta a este a cabeça de um inimigo, pode compartilhar os despojos da luta; caso contrário, lhe é negado esse direito. Para esfolar a cabeça do inimigo abatido, o cita faz primeiramente uma incisão em torno da mesma, na direção das orelhas, e, segurando-a pelo alto, puxa a pele, arrancando-a. Em seguida limpa a pele tirando-lhe toda a carne, depois do que fricciona-a nas mãos para amaciá-la. Tendo-a assim preparado, dela se serve como guardanapo e amarra-a no bridão do cavalo, Isto constitui um título de honra. O cita que possuí tais guardanapos é considerado valente e destemido, e quanto maior for o número desses troféus, maior é a consideração entre os seus. Muitos cosem os fragmentos de pele humana, como as capas dos pastores e fazem delas vestuários. Outros também esfolam até as unhas a mão direita do inimigo fazendo da pele bainha para as aljavas. A pele humana é, realmente espessa e brilhante, e de todas a mais notável pela brancura. Outros há,ainda, que esfolam homens inteiros, e depois de espichar a pele em pedaços de madeira, colocam-na sobre seus cavalos”.

“LXV – As cabeças, não de todos os inimigos, mas dos mais famosos, são tratadas da seguinte maneira: serram o crânio acima das sobrancelhas e limpam-no. Os pobres contentam-se em revesti-lo de um pedaço de couro, sem ornato algum; os ricos não só o recobrem com pele de boi, como o douram por dentro, dele servindo-se, à semelhança de uma taça, para beber. Fazem o mesmo com a cabeça dos parentes próximos se, depois de alguma disputa com eles, levam a melhor. A decisão da contenda tem de ser feita perante o rei. Se um estrangeiro de categoria visita o país apresentam-lhe estes crânios, relatando-lhe como venceram aqueles a que eles pertenceram, ainda que se trate de parentes constituindo isso motivo de vaidade e classificando tal procedimento como ações de mérito”.

“LXVI – Cada governador cita dá anualmente um festim em seu distrito ou província, no qual é servido vinho misturado com água numa cratera. Todos os que podem se vangloriar de haverem matado inimigos em combate bebem desse vinho; os que nada fizeram de semelhante estão privados deste direito, e permanecem à parte, em situação sumamente humilhante. Os responsáveis pela morte de grande número de inimigos bebem em duas taças ao mesmo tempo”.

Assim ficava patente que para usufruir de reputação uma atividade industriosa do guerreiro de cunho antropofágico era realizada, sendo os despojos dos vencidos disputados com os animais carniceiros que normalmente acompanhavam estes combates.

“LXX – O rei da Citia manda matar os filhos dos condenados à morte, poupando, porém as filhas. Quando os citas estabelecem um pacto, eis como procedem: despejam vinho numa grande taça de barro, e os contratantes, fazendo pequenas incisões no corpo com uma faca ou espada, verte ali um pouco do seu próprio sangue, depois do que mergulham na taça uma cimitarra, flechas, um machado e um dardo. Terminada a cerimônia, fazem longas preces e bebem parte do conteúdo da taça, e depois deles, as pessoas presentes de mais alta categoria, uma a uma”.


Beber sangue em comunidade, beber o sangue que se tira do braço de outro e oferecendo a do próprio são os ritos sagrados das alianças entre muitos povos. Sua antiguidade remonta a pré-história dos povos das estepes e propiciam a formação das irmandades de sangue, necessárias para a união entre clãs contra inimigos comuns. 

Estes são os costumes dos citas como descritos por Heródoto que semelhante  a outros grupos étnicos indo arianos que  invadiram a Europa são representativos deste imaginário como detentores de sistemas de crença similares aos povos que ultrapassaram os Urais em seus carros de guerra na Idade do Bronze apoiados num passado antropofágico de guerreiros caçadores. Suas motivações para a guerra eram os despojos, a vingança, e a luta da qual estes caçadores guerreiros tinham como tradição de sobrevivência.

Outro grande guerreiro das estepes de história mais recente, Genghis Khan, que com suas incursões levou o terror aos inimigos em todos os quadrantes do mundo antigo e estabeleceu um grande império na Ásia, ao perguntar a seus companheiros de armas sobre o maior prazer da vida e receber como resposta que era a falcoaria, retrucou: “Vocês se enganam. A maior fortuna do homem é perseguir e derrotar seu inimigo, tomar todas as suas posses, deixar sua esposa chorando e gemendo, montar seu capão e usar os corpos de suas mulheres como camisola e apoio”. Qualquer dos invasores indo arianos que ocuparam a Europa Antiga concordariam com suas opiniões

Todos os povos que vieram das estepes montados ou em carros de guerra praticavam “guerras verdadeiras”, isto é, não misturavam seus cultos particulares muitas vezes sangrentos com suas estratégias de combate que só tinham um objetivo que é não aceitar nada menos que a “vitória total”. Era sua forma, com óbvias conotações antropofágicas, de obter riqueza visando manter um sistema de vida imutável, para permanecer exatamente como eram desde que seus ancestrais atiraram as primeiras flechas de cima de uma sela pela primeira vez.

Só a sujeição de povos mais “civilizados”, como no caso dos persas e medos, hititas e hurrianos que dominaram povos agrários mais prósperos, fizeram seus costumes tribais sofrerem transformações paulatinas e consistentes de nômades para castas de nobres guerreiros dominantes de povos sedentários, que foram derrotados, mas que mantiveram suas culturas em simbiose, arrefecendo o ímpeto sanguinário de antropófagos e criando e assimilando novas crenças e ritos substituindo os cultos à Grande Mãe, característicos dos agricultores preocupados com a fartura das colheitas pelos de deuses guerreiros masculinos personificados em Ares (Marte) e Zeus (Jupiter) que impuseram limites e normas aos homens.

No tocante ao ritual antropofágico, no qual após ser a vítima abatida mortalmente, a carne humana é assada no fogo ou cozida como faziam os Citas. Entretanto com a existência do fogo utilizado pelos povos  esteve relacionada como objeto de interpretação para Jean de Léry.  Sobre este aspecto, ele analisa que a carne humana passa pela lavagem com água fervida, assim a “fervura” facilitava o desprendimento das peles. No entanto, Jean de Léry associa tal conduta culinária antropofágica à semelhante prática da cozinha
européia.  Explica Frank Lestringant:

“No ato que mais deveria escandalizá-lo, o visitante vindo da Europa
descobre uma desconcertante familiaridade. A cozinha, à base de
carne humana dos americanos, revela seu parentesco familiar com as
cozinhas camponesas de Morvan ou da Borgonha, onde Léry passara
sua infância. A antropofagia, à maneira de um simulacro, freqüenta as
cozinhas da velha Europa. O abate do porco [...] e sua posterior
ingestão não seriam, quando das festas camponesas, comicamente
comparáveis à transgressão do tabu canibal? Aí não se devorava,
devidamente sangrado e lavado com águas quentes, “um senhor em
roupas de seda”?¹

De certa forma, Léry e Thevet só tiveram que voltar à identificação tradicional para descrever – e por aí inocentar – o canibalismo real dos tupinambás.

¹LESTRINGANT, Frank. O Canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Murray Del Priore.Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 91.


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