Segunda Metade do séc. XVIII.
"Os escravos metidos nesta tortura, sustentando o horrível combate da vida com a morte, tremendo, e sendo obrigados a miúdo a comparecerem como réus: alguns tomam fôlego, e morrem; outros passam navalhas às goelas; outros lançam-se aos poços; outros precipitam-se das janelas, das grandes alturas; outros finalmente matam seus senhores".
( Memória a Respeito dos Escravos e Tráfico da Escravatura entre a Costa D'África e o Brazil - 1793 - Doutor Luiz António de Oliveira Mendes)
"Os escravos metidos nesta tortura, sustentando o horrível combate da vida com a morte, tremendo, e sendo obrigados a miúdo a comparecerem como réus: alguns tomam fôlego, e morrem; outros passam navalhas às goelas; outros lançam-se aos poços; outros precipitam-se das janelas, das grandes alturas; outros finalmente matam seus senhores".
( Memória a Respeito dos Escravos e Tráfico da Escravatura entre a Costa D'África e o Brazil - 1793 - Doutor Luiz António de Oliveira Mendes)
Zambe acordou suando frio. De nôvo sonhara com seus tempos de menino, lá na outra terra, do outro lado do mar oceano. O sonho, ou melhor o pesadelo sempre voltava. Agora quanto mais tempo passava, graças aos seus Orixás, cada vez com menor freqüência vinha a coisa ruim. Sonhava que ainda era uma cria quando vivia na maloca, com a mãe e que aquele homem mau lhe surrava nos seus pesadelos. O macoteiro, cauíla, homem sem pudor que vendera sua mãe em troca de alguns confortos e tecidos, seria talvez seu pai. Não mais sabia. Nestes sonhos imersos como numa neblina, via homens chegando, sua mãe implorando ao macoteiro, ela sendo sujeitada, colocada a ferros junto com outras infelizes. Todos choravam, enquanto o negro que tinha sido talvez seu pai, contava as mercadorias recebidas no infamante comércio. Nada disso ocorrera desta forma, mas era como sonhara muitas vezes, na verdade nem se lembrava mais o que ocorrera realmente quando fora cativo, mas vinham sempre os mesmos sonhos confundindo tudo, deixando sua cabeça confusa, denunciando algum passado que preferia esquecer e preocupava ficar doido, pois um escravo leso de nada vale, sendo quase sempre deixado pelo senhor morrer a míngua. Muitas vezes um choro acompanhava o sonho, doído, forte, que vinha da alma, uma dor escondida na lembrança, como ferro em brasa, marcando seu espírito, uma caminhada longa que nunca terminava, um longo caminho de tormentos escondidos encerravam seu pior pesadelo.
Caminhando através de savanas áridas, um sol forte, imenso fustigando os prisioneiros, o astro maior fazia côro, judiando com a chibata que descia forte nestes pobres lombos. Homens e mulheres desnudos, metidos em farrapos, presos ao libambo em longas fileiras, assim eram incentivados a continuarem a penosa caminhada, seguidos de perto pelas crias, para desespero das mães que nada podiam fazer. Comida escassa, uma mistura de feijão quase estragado, e água suja servida de vez em quando, recolhida em charcos e lagoas no caminho, era tudo que permitiam a já bastante enfraquecida escravaria.
Paravam para juntar outros coitados no caminho. Os comerciantes de escravos, tumbeiros como eram chamados, eram negros como todos. Trocavam as pobres almas nas aldeias, por fazendas, miçangas, coral, tabaco, giribita, algumas ferramentas de ferro, espingardas velhas, pólvora e chumbo. Os infelizes eram soltos do tronco, ou grilhão, sendo entregues aos traficantes após o negócio realizado, e presos por uma argola de ferro ao libambo, uma corrente de ferro de meia polegada de grosso, onde iam sendo presos, de pouco em pouco espaço. O instrumento diabólico era utilizado da seguinte maneira: pelo anel da corrente passam um pedaço de ferro, e a força de pancada fazem dele um anel, sobrepondo as pontas do metal uma a outra, prendendo a mão do cativo nesta nova argola. De ordinário é o libambo lançado na mão direita, pois temem os captores poder os escravos com algum outro ferro ou pau abrir o anel. Os mais fortes ou rebeldes tinham também os pescoços presos ao ferro. Homens e mulheres seguiam separados, soltas as crias seguiam o triste cortejo. Cada adulto levava um carapatel, saco onde carregavam o próprio alimento. Disso tudo ele sabia pelos outros, escravos mais velhos, trazidos do outro lado do mar oceano. Todos sem exceção foram comprados ou trocados pelos senhores ou sequestrados pelos captores, arrastados até a costa para serem vendidos mais uma vez e embarcados em grandes naus, como animais, tratados como gado.
Se alguém adoecia no caminho, era açoitado pelos tumbeiros para continuar caminhando, podendo morrer pendurado ao libambo, pois não tratavam os doentes, perdendo boa parte da carga pelo caminho, mortos de todos os males possíveis associados a absoluta exaustão. Foi assim que lembrava. Sua mãe foi definhando, ficando a cada dia mais fraca, já não reclamava dos maus tratos, nada falava, quando podia abraçava-o, sempre longe dos olhares indiferentes dos captores, recusando o alimento podre servido pelos algozes.
No seu sonho vira homens serem mutilados por maldade, seus pedaços servindo de banquete as feras e abutres. No seu pesadelo via a mãe deitada, seu corpo magro, o olhar fixo, perdido, olhando o nada, e vinha aquela vontade de chorar e ele acordava sempre cheio de suores, um grito preso a garganta.
Ao chegar a costa, ficara numa estacada dias e noites, junto a muitos cativos trazidos do coração do continente, entre a morte e a fome permanente que queimava por dentro e contorcia suas vísceras. Comia uns poucos restos, sobras fétidas dos alimentos jogados aos cativos. Sua cama era o chão duro, seu teto o céu estrelado. Pela manhã a cacimba, que é como os africanos chamam sua neblina costeira, molhava seu corpo desnudo e febril, que tremia de fome e frio. Viviam em meio ao próprio excremento, enxames de moscas inoportunas desciam sobre os desgraçados pelo destino. Já não falava, só escutava calado os gemidos dos moribundos, a morte todo dia ali fazia farta colheita.
Para sustento dos prisioneiros às vezes jogavam pescado miúdo, junto com milho ou feijão. Sobrava o pescado, pois os habitantes locais dispensavam seu consumo, por considerarem fazer mal para a saúde sua ingestão. Como se achavam próximos ao mar, mandavam os prisioneiros aos lotes para lavagem do seus corpos na água marinha, e dos trapos que vestiam. Seus captores, agora comerciantes lusitanos, não queriam maiores despesas com a mercadoria humana, ansiosos em negociar com os armadores das naus que levariam a carga até o outro lado do mar oceano.
No embarque da carga humana foram todos levados, acorrentados ao libambo, até o porão da nau. O ar entrava aos poucos pela grade da escotilha, onde existiam pequenas frestas que serviam para manter a incipiente ventilação no interior da embarcação, dificultada pelo calor tropical, tornando impossível a respiração daquela quantidade de gente. Ao levantar ferros em direção ao mar alto, os movimentos da nau, subindo ou descendo ao sabor das ondas, causavam profundo mal estar nos cativos, sensibilizados pelos maus tratos e pela péssima qualidade da alimentação, trazida escassa e de baixa qualidade pelos cobiçosos armadores. Os vômitos freqüentes, fezes involuntárias dos doentes, contribuíam para tornar o porão um inferno de carne e sangue insuportável. Ele lembrava no sonho, sozinho, num canto do porão infecto, chorava quieto, já não falava há muito, parecia uma eternidade aquela travessia. Nem pancadas faziam efeito no seu corpo debilitado de criança subnutrida.
O capitão da nau, homem piedoso, pelo bom comportamento da carga, nos dias de calmaria, instalava uma manga de pano cosido que presa no mastro, descia do cesto da gávea em tubo, para renovar o ar inferior dos porões. Duas vezes por semana mandava lavar a coberta, e com esponjas correr seu interior com vinagre. Diariamente traziam a ferros certa porção de escravos, que ficava por poucas horas para refazer suas energias ao ar livre, sempre com moderação na quantidade para evitar um levante dos cativos. Pouco conseguiam em relação aos adoentados ou moribundos, que eram jogados pela murada sem nenhuma cerimônia. A sede era tormento constante, a água servida pelos captores, chegava pouca e morna, provocando ainda maiores males e baixas entre os pobres desgraçados. O ritual de deitar cativos ao mar aumentava com o passar dos dias.
Preocupado com as crescentes perdas, o capitão decidiu trazer os mais jovens e as mulheres para cima, garantindo a sobrevivência do garoto que sonhava acordado, já desfalecido dias seguidos, sem importar-se com nada do que acontecia a volta. Assim chegou ao destino, sem nada falar, sofria do mal do espírito, o “banzo”, agravado ao corpo fraco, esquálido, sem serventia para o leilão, pois era aparente seu péssimo estado. Foi levado para o engenho do capitão para ser cevado e depois vendido. As mucamas da senzala apiedaram-se do péssimo estado do menino, foram tratando de suas feridas, e dando alimentos, aos poucos para evitar empanziná-lo pela ingestão excessiva de alimentos depois do longo jejum. Chegou junto com um lote de outros escravos, originários de outros povos e locais diversos, sequer entendiam os idiomas falados, era uma babel de palavras, incompreensíveis entre si. Só o medo era comum, entendiam os gemidos de dor dos companheiros de infortúnio, antigas diferenças tribais foram esquecidas em favor da luta pela sobrevivência. Continuava mudo, calado, olhando longe, sem vontade de nada falar. - Aqueles estranhos fingiam importa-se com ele? Não mais acreditaria em algum vivente, sua mãe se fora, estava com os orixás como diziam os mais velhos. Era tudo que restava na sua mente, suas lembranças enevoadas, como as cacimbas que desciam sobre a terra mãe, lembrança de muitos meninos cativos, que escravos cresciam numa terra estranha, sem distinguir outra existência possível. Ficava marcado, como o próprio ferro em brasa do senhor, sem lógica, impreciso, pois não existe lógica na escravidão. Ao chegar a idade do entendimento notara que os tapuias também eram servos dos brancos, porém podiam escapar dos maus tratos para longe, no refúgio da mata, recurso que os negros, estranhos a terra não tinham. Os tapuias fingiam indolência quando queriam irritar seus amos brancos, fazendo todo serviço pesado sobrar para o negro, tocado a chibata pelo feitor. Os europeus gostavam de descansar seus corpos avantajados nas varandas e balcões dos casarões, vendo o trabalho interminável de seus negros e índios, nas suas roças e no trato das criações. Faziam todo o serviço duro e sujo de domar a mata, e quem levava a fama de trabalhador era o senhor. Quando os feitores ouviam reclames dos servos, ou ocorriam tentativas de fuga abortadas, usavam da violência para impor a disciplina, torturas, suplícios, que levavam qualquer homem crescido ao desespero e arrependimento. Porém a vida do engenho era até razoável, tinham comida farta, suficiente para todos, podiam nas folgas caçar ou pescar o próprio sustento. Seu senhor, o piedoso capitão, permitia descansarem aos sábados, e batuques nas festas dos terreiros. Sabiam de outros senhores piores, de ouvir contar, que maltratavam seus escravos, obrigavam o trabalho até a exaustão mortal, aplicando surras com a chibata por qualquer miníma falha que fosse.
Com a chegada dos doutores de além mar, tinha tentado melhorar sua situação, conseguindo graças ao feitor para quem tinha feito favores, lhe indicar ao senhor para trabalhar junto aos jovens sábios. Era negro ladino, conhecia a língua e maneiras dos brancos, dissimulava ser beato rezador, para não incorrer na ira dos católicos fanáticos, mas preferia o culto de sua terra, aprendido com os mestres, que como ele viviam o exílio e a escravidão. Respeitava os santos e as crenças dos brancos, mas tinha maior fé nos orixás, mais antigos e sábios. Escutava os conselhos deles que saíam da boca da preta velha que jogava os búzios em segredo na senzala. Tinham medo dos padres, nada compreensivos com os velhos ritos trazidos pelos seguidores das entidades superiores que ordenavam este mundo, conhecimentos herdados dos ancestrais no distante continente africano. A velha preta era possuída, servia de cavalo, dos espíritos, falava na antiga língua iorubá, em transe encarnava o zombeteiro, entidade que ria da desgraça dos negros, às vezes dava conselhos, outras adivinhava acontecimentos de mortes ou nascimentos futuros, atendia a todos, sendo temida e respeitada até pelo supersticioso feitor que acreditava piamente no poder de seus sortilégios e mandingas. Ela tinha previsto coisas estranhas, indecifráveis a respeito do seu futuro, seria grande homem, macota, rei da sua gente. Dizia que devia seguir pela mata e aprender com os doutores, até achar o próprio caminho. Ela fez um amuleto, dizia conter coisas raras, sagradas, costuradas escritas com estranhos sinais num pequeno pano de linho, atado em embira que ela dizia devia trazer sempre ao pescoço, tinha o poder de fechar seu corpo contra as flechas dos índios bravios e balas dos mosquetes dos brancos. Deu-lhe outras mandingas, umas não sei quantas beberagens, para afastar as febres e maus espíritos que infestavam os sertões.
O doutor tinha mandado trabalhar na plantação de cânhamo. Lá tinha roçado o mato, preparado a terra junto com os outros escravos, mas o cultivo não evoluía, a mistura do terreno não favorecia seu plantio. Ao descansar, embaixo das árvores, enchiam seus rudimentares cachimbos com a diamba, subproduto das mudas de cânhamo trazidas do distante oriente, que fumavam em substituição ou como complemento da aguardente. Reconfortava os escravos habituados ao seu consumo. Se soubessem que fumavam suas culturas de onde pretendiam os doutores tirar cordames para suas naus, iam proibir os negros de usá-las, estabelecer novas punições, obrigar penitências aos faltosos. Queimavam a erva em segredo, longe dos senhores. Os brancos adoravam tudo proibir, não bastava terem roubado seus corpos nas savanas, queriam também para sempre seus espíritos, presos nos grilhões do esquecimento sobre suas origens e no abandono ao culto dos seus ancestrais.
Tudo isto Zambe meditava enquanto observava a fumaça do cachimbo subir em ondas ascendentes em direção ao céu, nuvens aumentavam o mormaço do fim da tarde, iam revoluteando incertas como a vida nestas paragens. A morte rondava casual, o monarca um dia, virava pária no outro, as pestes, cheias dos rios, e revoltas do gentio cobravam seu preço em vidas, tornando permanente sua presença. Uma febre malsã, uma mordida de cobra, um ferimento arruinado bastava para selar o destino de qualquer um, ainda mais escravo. Tinha sido advertido pela adivinha, a jornada seria perigosa, pior que seus pesadelos, e padeceria caso esquecesse sua origem e não perseverasse pelo bom caminho. Acabaria como mais uma ossada perdida sem nome na mata, como castigo, junto com outros que subestimaram as entidades da floresta. Devia deitar oferendas antes de partir, satisfazer seus orixás, pois iria precisar de toda proteção e orientação espiritual possível.
O corpo adormecido, a boca seca, o olhar vermelho pela fumaça da erva bandida, os pensamentos voando longe, pouca conversa trocavam entre eles, homens condenados, frustrados na escravidão, mergulhados nos desvarios, pouca vontade sentiam de mover-se, só queriam ficar deitados olhando o céu, cheio de pequenas pedras, luzes brilhantes, na noite até então clara, nuvens negras chegavam, pareciam poderosas naves, caravelas navegando pelo negro céu azul, engolindo os brilhantes no seus porões, seguindo com sua carga preciosa em direção ao desconhecido no amplo oceano da imensidão etérea. Trazendo em troca, no seu bojo torrentes de água para alimentar as fontes dos rios que banhavam esta terra, que na verdade era água disfarçada, que de tempos em tempos vinha das nascentes mergulhando tudo e voltava a ficar seca graças a força e a sabedoria dos orixás. Suas memórias seguiam lentas, em quadros sucessivos, inebriado sob efeito da erva, seus pensamentos ficavam cheios de significados misteriosos, imagens desconhecidas, que quando surgiam pareciam fazer sentido, mas logo esfumaçavam na sua mente antes que conseguisse concentrar o pensamento para decifrar seu sentido exato no momento vivenciado.
Grandes gotas desciam das gordas nuvens, iam descarregar ali mesmo, sobre suas cabeças, protegidas apenas por um rudimentar tijupar. O vento, antes uma leve brisa, levantava ondas no rio, que causariam temor até mesmo a um marujo veterano. O feitor, apesar da sua indolência costumeira, mistura odiosa de tapuia com branco, medrou ao ver a mudança do tempo, raios desciam das nuvens e a chuva encharcou em pouco tempo o telhado de palmeira, que aos poucos foi sendo levado pelo turbilhão de vento. Todos abrigaram-se como podiam da tempestade, até mesmo o feitor, homem afeito a bebida, quase sempre lerdo, acalorado e que evitava cansar-se em demasia, tinha também seus dias onde descobria especial energia para surrar os negros por qualquer motivo, sempre quando podia aterrorizava as jovens escravas com suas torturas, estava ele mesmo aterrado pela violência daquelas forças que sabia não poder subjugar, de repente virou um santo temente a Deus, irmanado com os outros escravos no seu temor. Católico fervoroso, fazia sinais da cruz, e entoava uma reza como se tivesse um terço invisível entre as mãos.
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