domingo, 26 de setembro de 2010

Escravidão Negra -

 Segunda  Metade  do  séc.  XVIII.

"Os escravos metidos nesta tortura, sustentando o horrível combate da vida com a morte, tremendo, e sendo obrigados a miúdo a comparecerem como réus: alguns tomam fôlego, e morrem; outros passam navalhas às goelas; outros lançam-se aos poços; outros precipitam-se das janelas, das grandes alturas; outros finalmente matam seus senhores".

( Memória a Respeito dos Escravos e Tráfico da Escravatura entre a Costa D'África e o Brazil - 1793 - Doutor Luiz António de Oliveira Mendes)







Zambe  acordou  suando  frio.  De  nôvo  sonhara  com  seus  tempos  de  menino,  lá  na  outra  terra,  do  outro  lado  do  mar  oceano.  O  sonho,  ou  melhor  o  pesadelo  sempre  voltava. Agora quanto  mais  tempo  passava,  graças  aos seus  Orixás,  cada  vez  com  menor  freqüência vinha a coisa ruim.  Sonhava que ainda era uma cria  quando  vivia  na  maloca,  com  a  mãe  e que  aquele  homem mau lhe  surrava  nos  seus  pesadelos.  O  macoteiro,  cauíla,  homem  sem  pudor  que  vendera  sua  mãe  em  troca  de  alguns  confortos  e  tecidos,  seria  talvez  seu  pai.  Não  mais  sabia.  Nestes  sonhos  imersos  como  numa  neblina,  via  homens  chegando,  sua  mãe  implorando  ao  macoteiro,  ela  sendo  sujeitada,  colocada  a  ferros  junto  com  outras  infelizes.  Todos  choravam,  enquanto  o  negro  que  tinha  sido  talvez  seu  pai,  contava  as  mercadorias  recebidas  no  infamante  comércio.  Nada  disso  ocorrera  desta  forma,  mas  era  como  sonhara  muitas  vezes,  na  verdade  nem  se  lembrava  mais  o  que  ocorrera realmente  quando  fora  cativo,  mas  vinham  sempre  os  mesmos  sonhos  confundindo  tudo,  deixando  sua  cabeça  confusa,  denunciando  algum  passado  que  preferia  esquecer  e  preocupava  ficar  doido,  pois  um  escravo  leso  de  nada  vale,  sendo  quase  sempre  deixado  pelo  senhor  morrer  a  míngua.  Muitas  vezes  um  choro  acompanhava  o  sonho,  doído,  forte,  que  vinha  da  alma,  uma  dor  escondida  na  lembrança,  como  ferro  em  brasa,  marcando  seu  espírito,  uma  caminhada  longa  que  nunca  terminava,  um  longo  caminho  de  tormentos  escondidos encerravam  seu  pior  pesadelo.



Caminhando  através  de  savanas  áridas,  um  sol  forte,  imenso  fustigando  os  prisioneiros,  o  astro  maior  fazia  côro, judiando  com  a  chibata  que  descia  forte  nestes  pobres  lombos.  Homens  e  mulheres  desnudos,  metidos  em  farrapos,  presos  ao  libambo  em  longas  fileiras,  assim  eram  incentivados  a  continuarem  a  penosa  caminhada,  seguidos  de  perto  pelas  crias,  para  desespero  das  mães  que  nada  podiam  fazer.  Comida  escassa,  uma  mistura  de  feijão  quase  estragado,  e  água  suja  servida  de  vez  em  quando,  recolhida  em  charcos  e  lagoas  no  caminho,  era  tudo  que  permitiam  a  já  bastante  enfraquecida  escravaria.

Paravam  para  juntar  outros  coitados  no  caminho.  Os  comerciantes  de  escravos,  tumbeiros  como  eram  chamados,  eram  negros  como  todos.  Trocavam  as  pobres  almas nas  aldeias,  por  fazendas,  miçangas,  coral,  tabaco,  giribita,  algumas  ferramentas  de  ferro,  espingardas  velhas,  pólvora  e  chumbo.  Os  infelizes  eram  soltos  do  tronco,  ou  grilhão,  sendo  entregues  aos  traficantes  após  o  negócio  realizado,  e  presos  por  uma  argola  de  ferro  ao  libambo,  uma  corrente  de  ferro  de  meia  polegada  de  grosso, onde  iam  sendo  presos,  de  pouco  em  pouco  espaço.  O  instrumento  diabólico  era  utilizado  da  seguinte  maneira:  pelo  anel  da  corrente  passam  um  pedaço  de  ferro,  e  a  força  de  pancada  fazem  dele  um  anel,  sobrepondo  as  pontas  do  metal  uma  a  outra,  prendendo  a  mão  do  cativo  nesta  nova  argola.  De  ordinário  é  o  libambo  lançado  na  mão  direita,  pois  temem  os  captores  poder  os  escravos  com  algum  outro  ferro  ou  pau  abrir  o  anel.  Os  mais  fortes  ou  rebeldes  tinham  também  os  pescoços  presos  ao  ferro.  Homens  e  mulheres  seguiam  separados,  soltas  as  crias  seguiam  o  triste  cortejo.  Cada  adulto  levava  um  carapatel,  saco  onde  carregavam  o  próprio  alimento.  Disso  tudo  ele  sabia  pelos  outros,  escravos  mais  velhos,  trazidos  do  outro  lado  do  mar  oceano.  Todos  sem  exceção  foram  comprados  ou  trocados  pelos  senhores  ou  sequestrados  pelos  captores,  arrastados  até  a  costa  para  serem  vendidos  mais  uma  vez  e  embarcados  em  grandes  naus,  como  animais,  tratados  como  gado.

Se  alguém  adoecia  no  caminho,  era  açoitado  pelos  tumbeiros  para  continuar  caminhando,  podendo  morrer  pendurado  ao  libambo,  pois  não  tratavam  os  doentes,  perdendo  boa  parte  da  carga  pelo  caminho,  mortos  de  todos  os  males  possíveis  associados  a  absoluta  exaustão.  Foi  assim  que  lembrava.  Sua  mãe  foi  definhando,  ficando  a  cada  dia  mais  fraca,  já  não  reclamava  dos  maus  tratos,  nada  falava,  quando  podia  abraçava-o,  sempre  longe  dos  olhares  indiferentes  dos  captores,  recusando  o  alimento  podre  servido  pelos  algozes.

No  seu  sonho  vira  homens  serem  mutilados  por  maldade,  seus  pedaços  servindo  de  banquete  as  feras  e  abutres.  No  seu  pesadelo  via  a  mãe  deitada,  seu  corpo  magro,  o  olhar  fixo,  perdido,  olhando  o  nada,  e  vinha  aquela  vontade  de  chorar  e  ele  acordava  sempre  cheio  de  suores,  um  grito  preso  a  garganta.

Ao  chegar  a  costa,  ficara  numa  estacada  dias  e  noites,  junto  a  muitos  cativos  trazidos  do  coração  do  continente,  entre  a  morte  e  a  fome  permanente  que  queimava  por  dentro  e  contorcia  suas  vísceras.  Comia  uns  poucos  restos,  sobras  fétidas  dos  alimentos  jogados  aos  cativos.  Sua  cama  era  o  chão  duro,  seu  teto  o  céu  estrelado.  Pela  manhã  a  cacimba,  que  é  como  os  africanos  chamam  sua  neblina  costeira,  molhava  seu  corpo  desnudo  e  febril,  que  tremia  de  fome  e  frio.  Viviam  em  meio  ao  próprio  excremento,  enxames  de  moscas  inoportunas  desciam  sobre  os  desgraçados  pelo  destino.  Já  não  falava,  só  escutava  calado  os  gemidos  dos  moribundos,  a  morte  todo  dia  ali  fazia  farta  colheita.

Para  sustento  dos  prisioneiros  às  vezes  jogavam  pescado  miúdo,  junto  com  milho  ou  feijão.  Sobrava  o  pescado,  pois  os  habitantes  locais  dispensavam  seu  consumo,  por  considerarem  fazer  mal  para  a  saúde  sua  ingestão.  Como  se  achavam  próximos  ao  mar,  mandavam  os  prisioneiros  aos  lotes  para  lavagem  do  seus  corpos  na  água  marinha,  e  dos  trapos  que  vestiam.  Seus  captores,  agora  comerciantes  lusitanos,  não  queriam  maiores  despesas  com  a  mercadoria  humana,  ansiosos  em  negociar  com  os  armadores  das  naus  que  levariam  a  carga  até  o outro lado do mar oceano.



No  embarque  da  carga  humana  foram  todos  levados,  acorrentados  ao  libambo,  até  o  porão  da  nau.  O  ar  entrava  aos  poucos  pela  grade  da  escotilha,  onde  existiam  pequenas  frestas  que  serviam  para  manter  a  incipiente  ventilação  no  interior  da  embarcação,  dificultada  pelo  calor  tropical,  tornando  impossível  a  respiração  daquela  quantidade  de  gente.  Ao  levantar  ferros  em  direção  ao  mar  alto,  os  movimentos  da  nau,  subindo  ou  descendo  ao  sabor  das  ondas,  causavam  profundo  mal  estar  nos  cativos,  sensibilizados  pelos  maus  tratos  e  pela  péssima  qualidade  da  alimentação,  trazida  escassa  e  de  baixa  qualidade  pelos  cobiçosos  armadores.  Os  vômitos  freqüentes,  fezes  involuntárias  dos  doentes,  contribuíam  para  tornar  o  porão  um  inferno  de  carne  e  sangue  insuportável.  Ele  lembrava  no  sonho,  sozinho,  num  canto  do  porão  infecto,  chorava  quieto, já  não  falava  há  muito,  parecia  uma  eternidade aquela travessia.  Nem  pancadas  faziam  efeito  no  seu  corpo  debilitado  de  criança  subnutrida.


O  capitão  da  nau,  homem  piedoso,  pelo  bom  comportamento  da  carga,  nos  dias  de  calmaria,  instalava  uma  manga  de  pano  cosido  que  presa no mastro,  descia  do  cesto  da  gávea  em  tubo,  para  renovar  o  ar  inferior  dos  porões.  Duas  vezes  por  semana  mandava  lavar  a  coberta,  e  com  esponjas  correr  seu  interior  com  vinagre.  Diariamente  traziam  a  ferros  certa  porção  de  escravos,  que  ficava  por  poucas  horas  para  refazer  suas  energias  ao  ar  livre,  sempre  com  moderação  na  quantidade  para  evitar  um  levante  dos  cativos.  Pouco  conseguiam  em  relação  aos  adoentados  ou  moribundos,  que  eram  jogados  pela  murada  sem  nenhuma  cerimônia.  A  sede  era  tormento  constante,  a  água  servida  pelos  captores,  chegava  pouca  e  morna,  provocando  ainda  maiores  males  e  baixas  entre  os  pobres  desgraçados.  O  ritual  de  deitar  cativos  ao  mar  aumentava  com  o  passar  dos  dias.



Preocupado  com  as  crescentes  perdas,  o  capitão  decidiu  trazer  os  mais  jovens  e  as  mulheres  para  cima,  garantindo  a  sobrevivência  do  garoto  que  sonhava  acordado,  já  desfalecido  dias  seguidos,  sem  importar-se  com  nada  do  que  acontecia  a  volta.  Assim  chegou  ao  destino,  sem  nada  falar,  sofria  do  mal  do  espírito,  o  “banzo”,  agravado  ao  corpo  fraco,  esquálido,  sem  serventia  para  o  leilão,  pois  era  aparente  seu  péssimo  estado.  Foi  levado  para  o  engenho  do  capitão  para  ser  cevado  e  depois  vendido. As  mucamas  da  senzala  apiedaram-se  do  péssimo  estado  do  menino,  foram  tratando  de  suas  feridas,  e  dando  alimentos,  aos  poucos  para  evitar  empanziná-lo  pela  ingestão  excessiva  de  alimentos  depois  do  longo  jejum. Chegou  junto  com  um  lote  de  outros  escravos,  originários  de  outros  povos  e  locais  diversos,  sequer  entendiam  os  idiomas  falados,  era  uma  babel  de  palavras,  incompreensíveis  entre  si.  Só  o  medo  era  comum,  entendiam  os  gemidos  de  dor  dos  companheiros  de  infortúnio,  antigas  diferenças  tribais  foram  esquecidas  em  favor  da  luta  pela  sobrevivência.  Continuava  mudo,  calado,  olhando  longe,  sem  vontade  de  nada  falar. - Aqueles  estranhos  fingiam  importa-se  com  ele?  Não  mais  acreditaria  em  algum  vivente,  sua  mãe  se  fora,  estava  com os  orixás  como  diziam  os  mais  velhos.  Era  tudo  que  restava  na  sua  mente,  suas  lembranças  enevoadas,  como  as  cacimbas  que  desciam  sobre  a  terra  mãe,  lembrança  de  muitos  meninos  cativos,  que  escravos  cresciam  numa  terra  estranha,  sem  distinguir  outra  existência  possível.  Ficava  marcado,  como  o  próprio  ferro  em  brasa  do  senhor,  sem  lógica,  impreciso, pois  não  existe  lógica  na  escravidão.  Ao  chegar  a  idade  do  entendimento  notara  que  os  tapuias  também  eram  servos  dos  brancos,  porém  podiam  escapar  dos  maus  tratos  para  longe,  no  refúgio  da  mata,  recurso  que  os  negros,  estranhos  a  terra  não  tinham.  Os  tapuias  fingiam  indolência  quando  queriam  irritar  seus  amos  brancos,  fazendo  todo  serviço  pesado  sobrar  para  o  negro,  tocado  a  chibata  pelo  feitor.  Os  europeus  gostavam  de  descansar  seus  corpos  avantajados  nas  varandas  e  balcões  dos  casarões,  vendo  o  trabalho  interminável  de  seus  negros  e  índios,  nas  suas  roças  e  no  trato das  criações.  Faziam  todo  o  serviço  duro  e  sujo  de  domar  a  mata,  e  quem  levava  a  fama  de  trabalhador  era  o  senhor.  Quando  os  feitores  ouviam  reclames  dos  servos,  ou  ocorriam  tentativas  de  fuga  abortadas,  usavam  da  violência  para  impor  a  disciplina,  torturas,  suplícios,  que  levavam  qualquer  homem  crescido  ao  desespero  e  arrependimento.  Porém  a  vida  do  engenho  era  até  razoável,  tinham  comida  farta,  suficiente  para  todos,  podiam  nas  folgas  caçar  ou  pescar  o  próprio  sustento.  Seu  senhor,  o  piedoso  capitão,  permitia  descansarem  aos  sábados,  e  batuques  nas  festas  dos  terreiros.  Sabiam  de  outros  senhores  piores,  de  ouvir  contar,  que  maltratavam  seus  escravos,  obrigavam  o  trabalho  até  a  exaustão  mortal,  aplicando  surras  com  a  chibata  por  qualquer  miníma  falha  que  fosse.



Com  a  chegada  dos  doutores  de  além  mar,  tinha  tentado  melhorar  sua  situação,    conseguindo  graças  ao  feitor para  quem  tinha  feito  favores,  lhe  indicar  ao  senhor  para  trabalhar  junto  aos  jovens  sábios.  Era  negro  ladino,  conhecia  a  língua e maneiras  dos  brancos,  dissimulava  ser  beato  rezador,  para  não  incorrer  na  ira  dos  católicos  fanáticos,  mas  preferia  o  culto  de  sua  terra,  aprendido  com  os  mestres,  que  como  ele  viviam  o  exílio  e  a  escravidão.  Respeitava  os  santos  e  as  crenças  dos  brancos,  mas  tinha  maior  fé  nos  orixás,  mais  antigos  e  sábios.  Escutava  os  conselhos  deles  que  saíam  da  boca  da  preta  velha  que  jogava  os  búzios  em  segredo  na  senzala.  Tinham  medo  dos  padres,  nada  compreensivos  com  os  velhos  ritos  trazidos  pelos  seguidores  das  entidades  superiores que ordenavam este mundo,  conhecimentos  herdados  dos  ancestrais  no  distante  continente  africano.  A  velha  preta  era  possuída,  servia  de  cavalo,  dos  espíritos,  falava  na  antiga  língua  iorubá,  em  transe  encarnava  o zombeteiro,  entidade  que  ria  da  desgraça  dos  negros,  às  vezes  dava  conselhos,  outras  adivinhava  acontecimentos  de  mortes  ou  nascimentos  futuros,  atendia  a  todos,  sendo  temida  e  respeitada  até  pelo  supersticioso  feitor  que  acreditava  piamente  no  poder  de  seus  sortilégios e mandingas.  Ela  tinha  previsto  coisas  estranhas,  indecifráveis  a  respeito  do  seu  futuro,  seria  grande  homem,  macota,  rei  da  sua  gente.  Dizia  que  devia  seguir  pela  mata  e  aprender  com  os  doutores,  até  achar  o  próprio  caminho.  Ela  fez  um  amuleto,  dizia  conter  coisas  raras,  sagradas,  costuradas   escritas com estranhos sinais num  pequeno  pano  de  linho,  atado  em  embira  que ela dizia  devia  trazer  sempre  ao  pescoço,  tinha  o  poder  de  fechar  seu  corpo  contra  as  flechas  dos  índios  bravios  e  balas  dos  mosquetes  dos  brancos.  Deu-lhe  outras  mandingas,  umas  não  sei  quantas  beberagens,  para  afastar  as  febres  e  maus  espíritos  que  infestavam  os  sertões.



O  doutor  tinha  mandado  trabalhar  na  plantação  de  cânhamo.  Lá  tinha  roçado  o  mato,  preparado  a  terra  junto  com  os  outros  escravos,  mas  o  cultivo  não  evoluía,  a  mistura  do  terreno  não  favorecia  seu  plantio.  Ao  descansar,  embaixo  das  árvores,  enchiam  seus  rudimentares  cachimbos  com  a  diamba,  subproduto  das  mudas  de  cânhamo  trazidas do distante oriente,  que  fumavam  em  substituição  ou  como  complemento  da  aguardente.  Reconfortava  os  escravos  habituados  ao  seu  consumo.  Se  soubessem  que  fumavam  suas  culturas  de  onde  pretendiam  os  doutores  tirar  cordames  para  suas  naus,  iam  proibir  os  negros  de  usá-las,  estabelecer  novas  punições,  obrigar  penitências  aos  faltosos.  Queimavam  a  erva  em  segredo,  longe  dos  senhores.  Os  brancos  adoravam  tudo  proibir,  não  bastava  terem  roubado  seus  corpos  nas  savanas,  queriam  também  para  sempre  seus  espíritos,  presos  nos  grilhões  do  esquecimento  sobre  suas  origens  e  no  abandono  ao  culto  dos  seus  ancestrais.





Tudo  isto  Zambe  meditava  enquanto  observava  a  fumaça  do  cachimbo  subir  em  ondas  ascendentes  em  direção  ao  céu, nuvens aumentavam o mormaço do fim da tarde, iam  revoluteando incertas  como  a  vida  nestas  paragens.  A  morte  rondava  casual,  o  monarca  um  dia,  virava  pária  no  outro,  as  pestes,  cheias dos rios,  e  revoltas do gentio  cobravam  seu  preço  em  vidas,  tornando  permanente  sua  presença.  Uma  febre  malsã,  uma  mordida  de  cobra,  um  ferimento  arruinado  bastava  para  selar  o  destino  de  qualquer  um,  ainda  mais  escravo.  Tinha  sido  advertido  pela  adivinha,  a  jornada  seria  perigosa,  pior  que  seus  pesadelos,  e  padeceria  caso  esquecesse  sua  origem  e  não  perseverasse  pelo  bom  caminho.  Acabaria  como  mais  uma  ossada  perdida  sem  nome  na  mata,  como  castigo,  junto  com  outros  que  subestimaram  as  entidades  da  floresta.  Devia  deitar  oferendas  antes  de  partir,  satisfazer  seus  orixás,  pois  iria  precisar  de  toda  proteção  e  orientação    espiritual  possível.

O  corpo  adormecido,  a  boca  seca,  o  olhar  vermelho  pela  fumaça  da  erva  bandida,  os  pensamentos  voando  longe,  pouca  conversa  trocavam  entre  eles,  homens  condenados,  frustrados  na  escravidão,  mergulhados  nos  desvarios,  pouca  vontade  sentiam  de  mover-se,  só  queriam  ficar  deitados  olhando  o  céu,  cheio  de  pequenas  pedras,  luzes  brilhantes,  na  noite  até  então  clara,  nuvens  negras  chegavam,  pareciam  poderosas  naves,  caravelas  navegando  pelo  negro  céu  azul,  engolindo  os  brilhantes  no  seus  porões,  seguindo  com  sua  carga  preciosa  em  direção  ao  desconhecido  no  amplo  oceano  da  imensidão  etérea.  Trazendo  em  troca,  no  seu  bojo  torrentes  de  água  para  alimentar  as  fontes  dos  rios  que  banhavam  esta  terra,  que  na  verdade  era  água  disfarçada,  que  de  tempos  em  tempos  vinha  das  nascentes  mergulhando  tudo  e  voltava  a  ficar  seca  graças  a  força  e  a  sabedoria  dos  orixás.  Suas  memórias  seguiam  lentas,  em  quadros  sucessivos,  inebriado  sob  efeito  da  erva,  seus  pensamentos  ficavam  cheios  de  significados  misteriosos,  imagens  desconhecidas,  que  quando  surgiam  pareciam  fazer  sentido,  mas  logo  esfumaçavam  na  sua  mente  antes  que  conseguisse  concentrar  o  pensamento  para  decifrar  seu  sentido  exato  no  momento  vivenciado.

 
Grandes  gotas  desciam  das  gordas  nuvens,  iam  descarregar ali  mesmo,  sobre  suas  cabeças,  protegidas  apenas  por  um  rudimentar  tijupar.  O  vento,  antes  uma  leve  brisa,  levantava  ondas  no  rio,  que  causariam  temor  até  mesmo  a  um  marujo  veterano.  O  feitor,  apesar  da  sua  indolência  costumeira,  mistura  odiosa  de  tapuia  com  branco,  medrou  ao  ver  a  mudança  do  tempo,  raios  desciam  das  nuvens  e  a  chuva  encharcou  em  pouco  tempo  o  telhado  de  palmeira,  que  aos  poucos  foi  sendo  levado  pelo  turbilhão  de  vento.  Todos  abrigaram-se  como  podiam  da  tempestade,  até  mesmo  o  feitor,  homem  afeito  a  bebida,  quase  sempre  lerdo,  acalorado  e  que  evitava  cansar-se  em  demasia,  tinha  também  seus  dias  onde  descobria  especial  energia  para  surrar  os  negros  por  qualquer  motivo,  sempre  quando  podia  aterrorizava  as  jovens  escravas  com  suas  torturas,  estava  ele  mesmo  aterrado  pela  violência  daquelas  forças  que  sabia  não  poder  subjugar,  de repente  virou  um  santo  temente  a  Deus,  irmanado  com  os  outros  escravos  no  seu  temor.  Católico  fervoroso,  fazia  sinais  da  cruz,  e  entoava  uma  reza  como  se  tivesse  um  terço  invisível  entre  as  mãos.

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