domingo, 26 de setembro de 2010

Escravidão Negra -

 Segunda  Metade  do  séc.  XVIII.

"Os escravos metidos nesta tortura, sustentando o horrível combate da vida com a morte, tremendo, e sendo obrigados a miúdo a comparecerem como réus: alguns tomam fôlego, e morrem; outros passam navalhas às goelas; outros lançam-se aos poços; outros precipitam-se das janelas, das grandes alturas; outros finalmente matam seus senhores".

( Memória a Respeito dos Escravos e Tráfico da Escravatura entre a Costa D'África e o Brazil - 1793 - Doutor Luiz António de Oliveira Mendes)







Zambe  acordou  suando  frio.  De  nôvo  sonhara  com  seus  tempos  de  menino,  lá  na  outra  terra,  do  outro  lado  do  mar  oceano.  O  sonho,  ou  melhor  o  pesadelo  sempre  voltava. Agora quanto  mais  tempo  passava,  graças  aos seus  Orixás,  cada  vez  com  menor  freqüência vinha a coisa ruim.  Sonhava que ainda era uma cria  quando  vivia  na  maloca,  com  a  mãe  e que  aquele  homem mau lhe  surrava  nos  seus  pesadelos.  O  macoteiro,  cauíla,  homem  sem  pudor  que  vendera  sua  mãe  em  troca  de  alguns  confortos  e  tecidos,  seria  talvez  seu  pai.  Não  mais  sabia.  Nestes  sonhos  imersos  como  numa  neblina,  via  homens  chegando,  sua  mãe  implorando  ao  macoteiro,  ela  sendo  sujeitada,  colocada  a  ferros  junto  com  outras  infelizes.  Todos  choravam,  enquanto  o  negro  que  tinha  sido  talvez  seu  pai,  contava  as  mercadorias  recebidas  no  infamante  comércio.  Nada  disso  ocorrera  desta  forma,  mas  era  como  sonhara  muitas  vezes,  na  verdade  nem  se  lembrava  mais  o  que  ocorrera realmente  quando  fora  cativo,  mas  vinham  sempre  os  mesmos  sonhos  confundindo  tudo,  deixando  sua  cabeça  confusa,  denunciando  algum  passado  que  preferia  esquecer  e  preocupava  ficar  doido,  pois  um  escravo  leso  de  nada  vale,  sendo  quase  sempre  deixado  pelo  senhor  morrer  a  míngua.  Muitas  vezes  um  choro  acompanhava  o  sonho,  doído,  forte,  que  vinha  da  alma,  uma  dor  escondida  na  lembrança,  como  ferro  em  brasa,  marcando  seu  espírito,  uma  caminhada  longa  que  nunca  terminava,  um  longo  caminho  de  tormentos  escondidos encerravam  seu  pior  pesadelo.



Caminhando  através  de  savanas  áridas,  um  sol  forte,  imenso  fustigando  os  prisioneiros,  o  astro  maior  fazia  côro, judiando  com  a  chibata  que  descia  forte  nestes  pobres  lombos.  Homens  e  mulheres  desnudos,  metidos  em  farrapos,  presos  ao  libambo  em  longas  fileiras,  assim  eram  incentivados  a  continuarem  a  penosa  caminhada,  seguidos  de  perto  pelas  crias,  para  desespero  das  mães  que  nada  podiam  fazer.  Comida  escassa,  uma  mistura  de  feijão  quase  estragado,  e  água  suja  servida  de  vez  em  quando,  recolhida  em  charcos  e  lagoas  no  caminho,  era  tudo  que  permitiam  a  já  bastante  enfraquecida  escravaria.

Paravam  para  juntar  outros  coitados  no  caminho.  Os  comerciantes  de  escravos,  tumbeiros  como  eram  chamados,  eram  negros  como  todos.  Trocavam  as  pobres  almas nas  aldeias,  por  fazendas,  miçangas,  coral,  tabaco,  giribita,  algumas  ferramentas  de  ferro,  espingardas  velhas,  pólvora  e  chumbo.  Os  infelizes  eram  soltos  do  tronco,  ou  grilhão,  sendo  entregues  aos  traficantes  após  o  negócio  realizado,  e  presos  por  uma  argola  de  ferro  ao  libambo,  uma  corrente  de  ferro  de  meia  polegada  de  grosso, onde  iam  sendo  presos,  de  pouco  em  pouco  espaço.  O  instrumento  diabólico  era  utilizado  da  seguinte  maneira:  pelo  anel  da  corrente  passam  um  pedaço  de  ferro,  e  a  força  de  pancada  fazem  dele  um  anel,  sobrepondo  as  pontas  do  metal  uma  a  outra,  prendendo  a  mão  do  cativo  nesta  nova  argola.  De  ordinário  é  o  libambo  lançado  na  mão  direita,  pois  temem  os  captores  poder  os  escravos  com  algum  outro  ferro  ou  pau  abrir  o  anel.  Os  mais  fortes  ou  rebeldes  tinham  também  os  pescoços  presos  ao  ferro.  Homens  e  mulheres  seguiam  separados,  soltas  as  crias  seguiam  o  triste  cortejo.  Cada  adulto  levava  um  carapatel,  saco  onde  carregavam  o  próprio  alimento.  Disso  tudo  ele  sabia  pelos  outros,  escravos  mais  velhos,  trazidos  do  outro  lado  do  mar  oceano.  Todos  sem  exceção  foram  comprados  ou  trocados  pelos  senhores  ou  sequestrados  pelos  captores,  arrastados  até  a  costa  para  serem  vendidos  mais  uma  vez  e  embarcados  em  grandes  naus,  como  animais,  tratados  como  gado.

Se  alguém  adoecia  no  caminho,  era  açoitado  pelos  tumbeiros  para  continuar  caminhando,  podendo  morrer  pendurado  ao  libambo,  pois  não  tratavam  os  doentes,  perdendo  boa  parte  da  carga  pelo  caminho,  mortos  de  todos  os  males  possíveis  associados  a  absoluta  exaustão.  Foi  assim  que  lembrava.  Sua  mãe  foi  definhando,  ficando  a  cada  dia  mais  fraca,  já  não  reclamava  dos  maus  tratos,  nada  falava,  quando  podia  abraçava-o,  sempre  longe  dos  olhares  indiferentes  dos  captores,  recusando  o  alimento  podre  servido  pelos  algozes.

No  seu  sonho  vira  homens  serem  mutilados  por  maldade,  seus  pedaços  servindo  de  banquete  as  feras  e  abutres.  No  seu  pesadelo  via  a  mãe  deitada,  seu  corpo  magro,  o  olhar  fixo,  perdido,  olhando  o  nada,  e  vinha  aquela  vontade  de  chorar  e  ele  acordava  sempre  cheio  de  suores,  um  grito  preso  a  garganta.

Ao  chegar  a  costa,  ficara  numa  estacada  dias  e  noites,  junto  a  muitos  cativos  trazidos  do  coração  do  continente,  entre  a  morte  e  a  fome  permanente  que  queimava  por  dentro  e  contorcia  suas  vísceras.  Comia  uns  poucos  restos,  sobras  fétidas  dos  alimentos  jogados  aos  cativos.  Sua  cama  era  o  chão  duro,  seu  teto  o  céu  estrelado.  Pela  manhã  a  cacimba,  que  é  como  os  africanos  chamam  sua  neblina  costeira,  molhava  seu  corpo  desnudo  e  febril,  que  tremia  de  fome  e  frio.  Viviam  em  meio  ao  próprio  excremento,  enxames  de  moscas  inoportunas  desciam  sobre  os  desgraçados  pelo  destino.  Já  não  falava,  só  escutava  calado  os  gemidos  dos  moribundos,  a  morte  todo  dia  ali  fazia  farta  colheita.

Para  sustento  dos  prisioneiros  às  vezes  jogavam  pescado  miúdo,  junto  com  milho  ou  feijão.  Sobrava  o  pescado,  pois  os  habitantes  locais  dispensavam  seu  consumo,  por  considerarem  fazer  mal  para  a  saúde  sua  ingestão.  Como  se  achavam  próximos  ao  mar,  mandavam  os  prisioneiros  aos  lotes  para  lavagem  do  seus  corpos  na  água  marinha,  e  dos  trapos  que  vestiam.  Seus  captores,  agora  comerciantes  lusitanos,  não  queriam  maiores  despesas  com  a  mercadoria  humana,  ansiosos  em  negociar  com  os  armadores  das  naus  que  levariam  a  carga  até  o outro lado do mar oceano.



No  embarque  da  carga  humana  foram  todos  levados,  acorrentados  ao  libambo,  até  o  porão  da  nau.  O  ar  entrava  aos  poucos  pela  grade  da  escotilha,  onde  existiam  pequenas  frestas  que  serviam  para  manter  a  incipiente  ventilação  no  interior  da  embarcação,  dificultada  pelo  calor  tropical,  tornando  impossível  a  respiração  daquela  quantidade  de  gente.  Ao  levantar  ferros  em  direção  ao  mar  alto,  os  movimentos  da  nau,  subindo  ou  descendo  ao  sabor  das  ondas,  causavam  profundo  mal  estar  nos  cativos,  sensibilizados  pelos  maus  tratos  e  pela  péssima  qualidade  da  alimentação,  trazida  escassa  e  de  baixa  qualidade  pelos  cobiçosos  armadores.  Os  vômitos  freqüentes,  fezes  involuntárias  dos  doentes,  contribuíam  para  tornar  o  porão  um  inferno  de  carne  e  sangue  insuportável.  Ele  lembrava  no  sonho,  sozinho,  num  canto  do  porão  infecto,  chorava  quieto, já  não  falava  há  muito,  parecia  uma  eternidade aquela travessia.  Nem  pancadas  faziam  efeito  no  seu  corpo  debilitado  de  criança  subnutrida.


O  capitão  da  nau,  homem  piedoso,  pelo  bom  comportamento  da  carga,  nos  dias  de  calmaria,  instalava  uma  manga  de  pano  cosido  que  presa no mastro,  descia  do  cesto  da  gávea  em  tubo,  para  renovar  o  ar  inferior  dos  porões.  Duas  vezes  por  semana  mandava  lavar  a  coberta,  e  com  esponjas  correr  seu  interior  com  vinagre.  Diariamente  traziam  a  ferros  certa  porção  de  escravos,  que  ficava  por  poucas  horas  para  refazer  suas  energias  ao  ar  livre,  sempre  com  moderação  na  quantidade  para  evitar  um  levante  dos  cativos.  Pouco  conseguiam  em  relação  aos  adoentados  ou  moribundos,  que  eram  jogados  pela  murada  sem  nenhuma  cerimônia.  A  sede  era  tormento  constante,  a  água  servida  pelos  captores,  chegava  pouca  e  morna,  provocando  ainda  maiores  males  e  baixas  entre  os  pobres  desgraçados.  O  ritual  de  deitar  cativos  ao  mar  aumentava  com  o  passar  dos  dias.



Preocupado  com  as  crescentes  perdas,  o  capitão  decidiu  trazer  os  mais  jovens  e  as  mulheres  para  cima,  garantindo  a  sobrevivência  do  garoto  que  sonhava  acordado,  já  desfalecido  dias  seguidos,  sem  importar-se  com  nada  do  que  acontecia  a  volta.  Assim  chegou  ao  destino,  sem  nada  falar,  sofria  do  mal  do  espírito,  o  “banzo”,  agravado  ao  corpo  fraco,  esquálido,  sem  serventia  para  o  leilão,  pois  era  aparente  seu  péssimo  estado.  Foi  levado  para  o  engenho  do  capitão  para  ser  cevado  e  depois  vendido. As  mucamas  da  senzala  apiedaram-se  do  péssimo  estado  do  menino,  foram  tratando  de  suas  feridas,  e  dando  alimentos,  aos  poucos  para  evitar  empanziná-lo  pela  ingestão  excessiva  de  alimentos  depois  do  longo  jejum. Chegou  junto  com  um  lote  de  outros  escravos,  originários  de  outros  povos  e  locais  diversos,  sequer  entendiam  os  idiomas  falados,  era  uma  babel  de  palavras,  incompreensíveis  entre  si.  Só  o  medo  era  comum,  entendiam  os  gemidos  de  dor  dos  companheiros  de  infortúnio,  antigas  diferenças  tribais  foram  esquecidas  em  favor  da  luta  pela  sobrevivência.  Continuava  mudo,  calado,  olhando  longe,  sem  vontade  de  nada  falar. - Aqueles  estranhos  fingiam  importa-se  com  ele?  Não  mais  acreditaria  em  algum  vivente,  sua  mãe  se  fora,  estava  com os  orixás  como  diziam  os  mais  velhos.  Era  tudo  que  restava  na  sua  mente,  suas  lembranças  enevoadas,  como  as  cacimbas  que  desciam  sobre  a  terra  mãe,  lembrança  de  muitos  meninos  cativos,  que  escravos  cresciam  numa  terra  estranha,  sem  distinguir  outra  existência  possível.  Ficava  marcado,  como  o  próprio  ferro  em  brasa  do  senhor,  sem  lógica,  impreciso, pois  não  existe  lógica  na  escravidão.  Ao  chegar  a  idade  do  entendimento  notara  que  os  tapuias  também  eram  servos  dos  brancos,  porém  podiam  escapar  dos  maus  tratos  para  longe,  no  refúgio  da  mata,  recurso  que  os  negros,  estranhos  a  terra  não  tinham.  Os  tapuias  fingiam  indolência  quando  queriam  irritar  seus  amos  brancos,  fazendo  todo  serviço  pesado  sobrar  para  o  negro,  tocado  a  chibata  pelo  feitor.  Os  europeus  gostavam  de  descansar  seus  corpos  avantajados  nas  varandas  e  balcões  dos  casarões,  vendo  o  trabalho  interminável  de  seus  negros  e  índios,  nas  suas  roças  e  no  trato das  criações.  Faziam  todo  o  serviço  duro  e  sujo  de  domar  a  mata,  e  quem  levava  a  fama  de  trabalhador  era  o  senhor.  Quando  os  feitores  ouviam  reclames  dos  servos,  ou  ocorriam  tentativas  de  fuga  abortadas,  usavam  da  violência  para  impor  a  disciplina,  torturas,  suplícios,  que  levavam  qualquer  homem  crescido  ao  desespero  e  arrependimento.  Porém  a  vida  do  engenho  era  até  razoável,  tinham  comida  farta,  suficiente  para  todos,  podiam  nas  folgas  caçar  ou  pescar  o  próprio  sustento.  Seu  senhor,  o  piedoso  capitão,  permitia  descansarem  aos  sábados,  e  batuques  nas  festas  dos  terreiros.  Sabiam  de  outros  senhores  piores,  de  ouvir  contar,  que  maltratavam  seus  escravos,  obrigavam  o  trabalho  até  a  exaustão  mortal,  aplicando  surras  com  a  chibata  por  qualquer  miníma  falha  que  fosse.



Com  a  chegada  dos  doutores  de  além  mar,  tinha  tentado  melhorar  sua  situação,    conseguindo  graças  ao  feitor para  quem  tinha  feito  favores,  lhe  indicar  ao  senhor  para  trabalhar  junto  aos  jovens  sábios.  Era  negro  ladino,  conhecia  a  língua e maneiras  dos  brancos,  dissimulava  ser  beato  rezador,  para  não  incorrer  na  ira  dos  católicos  fanáticos,  mas  preferia  o  culto  de  sua  terra,  aprendido  com  os  mestres,  que  como  ele  viviam  o  exílio  e  a  escravidão.  Respeitava  os  santos  e  as  crenças  dos  brancos,  mas  tinha  maior  fé  nos  orixás,  mais  antigos  e  sábios.  Escutava  os  conselhos  deles  que  saíam  da  boca  da  preta  velha  que  jogava  os  búzios  em  segredo  na  senzala.  Tinham  medo  dos  padres,  nada  compreensivos  com  os  velhos  ritos  trazidos  pelos  seguidores  das  entidades  superiores que ordenavam este mundo,  conhecimentos  herdados  dos  ancestrais  no  distante  continente  africano.  A  velha  preta  era  possuída,  servia  de  cavalo,  dos  espíritos,  falava  na  antiga  língua  iorubá,  em  transe  encarnava  o zombeteiro,  entidade  que  ria  da  desgraça  dos  negros,  às  vezes  dava  conselhos,  outras  adivinhava  acontecimentos  de  mortes  ou  nascimentos  futuros,  atendia  a  todos,  sendo  temida  e  respeitada  até  pelo  supersticioso  feitor  que  acreditava  piamente  no  poder  de  seus  sortilégios e mandingas.  Ela  tinha  previsto  coisas  estranhas,  indecifráveis  a  respeito  do  seu  futuro,  seria  grande  homem,  macota,  rei  da  sua  gente.  Dizia  que  devia  seguir  pela  mata  e  aprender  com  os  doutores,  até  achar  o  próprio  caminho.  Ela  fez  um  amuleto,  dizia  conter  coisas  raras,  sagradas,  costuradas   escritas com estranhos sinais num  pequeno  pano  de  linho,  atado  em  embira  que ela dizia  devia  trazer  sempre  ao  pescoço,  tinha  o  poder  de  fechar  seu  corpo  contra  as  flechas  dos  índios  bravios  e  balas  dos  mosquetes  dos  brancos.  Deu-lhe  outras  mandingas,  umas  não  sei  quantas  beberagens,  para  afastar  as  febres  e  maus  espíritos  que  infestavam  os  sertões.



O  doutor  tinha  mandado  trabalhar  na  plantação  de  cânhamo.  Lá  tinha  roçado  o  mato,  preparado  a  terra  junto  com  os  outros  escravos,  mas  o  cultivo  não  evoluía,  a  mistura  do  terreno  não  favorecia  seu  plantio.  Ao  descansar,  embaixo  das  árvores,  enchiam  seus  rudimentares  cachimbos  com  a  diamba,  subproduto  das  mudas  de  cânhamo  trazidas do distante oriente,  que  fumavam  em  substituição  ou  como  complemento  da  aguardente.  Reconfortava  os  escravos  habituados  ao  seu  consumo.  Se  soubessem  que  fumavam  suas  culturas  de  onde  pretendiam  os  doutores  tirar  cordames  para  suas  naus,  iam  proibir  os  negros  de  usá-las,  estabelecer  novas  punições,  obrigar  penitências  aos  faltosos.  Queimavam  a  erva  em  segredo,  longe  dos  senhores.  Os  brancos  adoravam  tudo  proibir,  não  bastava  terem  roubado  seus  corpos  nas  savanas,  queriam  também  para  sempre  seus  espíritos,  presos  nos  grilhões  do  esquecimento  sobre  suas  origens  e  no  abandono  ao  culto  dos  seus  ancestrais.





Tudo  isto  Zambe  meditava  enquanto  observava  a  fumaça  do  cachimbo  subir  em  ondas  ascendentes  em  direção  ao  céu, nuvens aumentavam o mormaço do fim da tarde, iam  revoluteando incertas  como  a  vida  nestas  paragens.  A  morte  rondava  casual,  o  monarca  um  dia,  virava  pária  no  outro,  as  pestes,  cheias dos rios,  e  revoltas do gentio  cobravam  seu  preço  em  vidas,  tornando  permanente  sua  presença.  Uma  febre  malsã,  uma  mordida  de  cobra,  um  ferimento  arruinado  bastava  para  selar  o  destino  de  qualquer  um,  ainda  mais  escravo.  Tinha  sido  advertido  pela  adivinha,  a  jornada  seria  perigosa,  pior  que  seus  pesadelos,  e  padeceria  caso  esquecesse  sua  origem  e  não  perseverasse  pelo  bom  caminho.  Acabaria  como  mais  uma  ossada  perdida  sem  nome  na  mata,  como  castigo,  junto  com  outros  que  subestimaram  as  entidades  da  floresta.  Devia  deitar  oferendas  antes  de  partir,  satisfazer  seus  orixás,  pois  iria  precisar  de  toda  proteção  e  orientação    espiritual  possível.

O  corpo  adormecido,  a  boca  seca,  o  olhar  vermelho  pela  fumaça  da  erva  bandida,  os  pensamentos  voando  longe,  pouca  conversa  trocavam  entre  eles,  homens  condenados,  frustrados  na  escravidão,  mergulhados  nos  desvarios,  pouca  vontade  sentiam  de  mover-se,  só  queriam  ficar  deitados  olhando  o  céu,  cheio  de  pequenas  pedras,  luzes  brilhantes,  na  noite  até  então  clara,  nuvens  negras  chegavam,  pareciam  poderosas  naves,  caravelas  navegando  pelo  negro  céu  azul,  engolindo  os  brilhantes  no  seus  porões,  seguindo  com  sua  carga  preciosa  em  direção  ao  desconhecido  no  amplo  oceano  da  imensidão  etérea.  Trazendo  em  troca,  no  seu  bojo  torrentes  de  água  para  alimentar  as  fontes  dos  rios  que  banhavam  esta  terra,  que  na  verdade  era  água  disfarçada,  que  de  tempos  em  tempos  vinha  das  nascentes  mergulhando  tudo  e  voltava  a  ficar  seca  graças  a  força  e  a  sabedoria  dos  orixás.  Suas  memórias  seguiam  lentas,  em  quadros  sucessivos,  inebriado  sob  efeito  da  erva,  seus  pensamentos  ficavam  cheios  de  significados  misteriosos,  imagens  desconhecidas,  que  quando  surgiam  pareciam  fazer  sentido,  mas  logo  esfumaçavam  na  sua  mente  antes  que  conseguisse  concentrar  o  pensamento  para  decifrar  seu  sentido  exato  no  momento  vivenciado.

 
Grandes  gotas  desciam  das  gordas  nuvens,  iam  descarregar ali  mesmo,  sobre  suas  cabeças,  protegidas  apenas  por  um  rudimentar  tijupar.  O  vento,  antes  uma  leve  brisa,  levantava  ondas  no  rio,  que  causariam  temor  até  mesmo  a  um  marujo  veterano.  O  feitor,  apesar  da  sua  indolência  costumeira,  mistura  odiosa  de  tapuia  com  branco,  medrou  ao  ver  a  mudança  do  tempo,  raios  desciam  das  nuvens  e  a  chuva  encharcou  em  pouco  tempo  o  telhado  de  palmeira,  que  aos  poucos  foi  sendo  levado  pelo  turbilhão  de  vento.  Todos  abrigaram-se  como  podiam  da  tempestade,  até  mesmo  o  feitor,  homem  afeito  a  bebida,  quase  sempre  lerdo,  acalorado  e  que  evitava  cansar-se  em  demasia,  tinha  também  seus  dias  onde  descobria  especial  energia  para  surrar  os  negros  por  qualquer  motivo,  sempre  quando  podia  aterrorizava  as  jovens  escravas  com  suas  torturas,  estava  ele  mesmo  aterrado  pela  violência  daquelas  forças  que  sabia  não  poder  subjugar,  de repente  virou  um  santo  temente  a  Deus,  irmanado  com  os  outros  escravos  no  seu  temor.  Católico  fervoroso,  fazia  sinais  da  cruz,  e  entoava  uma  reza  como  se  tivesse  um  terço  invisível  entre  as  mãos.

domingo, 12 de setembro de 2010

Os Mongóis - Gengis Khan.

Genghis Khan
       
“A Águia e a Serpente”

“Quando o mundo era jovem, o rei de todos os seres voadores ordenou para a vespa e para a andorinha que provassem o sabor da carne de todos os seres vivos. Os dois súditos deviam regressar pela noite e informar qual a carne mais doce, mais adequada à dieta de um rei. Como fazia um dia radiante e precioso, a andorinha se perdeu, cheia de alegria, cantando e voando pelo azul céu. Por sua vez a vespa cumpriu rigorosamente a ordem e passou o dia picando a quantos encontrava para provar o gosto de seus cálidos sangues. Quando se reuniram os dois animais ao anoitecer, e antes de ir à presença de seu rei a andorinha perguntou a opinião da vespa. Esta prontamente respondeu:”Sem dúvida alguma, a comida mais doce é a carne humana”. Temendo que tal veredicto criasse problemas futuros, a andorinha com seu bico arrancou a língua da vespa, e quando o rei perguntou aquela noite, a única coisa que podia fazer o pobre inseto era zumbir incoerentemente”.
“Majestade, chegamos a conclusão que a melhor carne para um rei é uma serpente”, respondeu a andorinha, dissimulada. “E até hoje a águia e o falcão, descendentes daquele rei ancestral de todos os seres voadores, adoram comer as serpentes”.
(Fábula Mongol – Extraído e traduzido de Mitologia del Mundo – Roy Willis)


Todos os povos montados que abriram uma trilha de conquistas das estepes até as terras civilizadas travavam “guerras verdadeiras”, segundo todos os aspectos: falta de limites no uso da força, singularidade de objetivo, e nenhuma disposição para aceitar outra coisa senão a vitória total. Como ocorre entre os povos nômades, no início não tinham objetivos de ganhos territoriais imediatos a não ser adquirir riquezas para manter seu sistema de vida nomade.

Entre 1190, quando Temujin que seria chamado mais tarde de Gengis Khan empreendeu a unificação das tribos mongóis, e 1258, quando seu neto tomou de assalto Bagdá, este povo já dominava todo o norte da China, a Coréia, o Tibet, a Ásia central, a Pérsia, o Cáucaso, a Anatólia e os principados russos. Faziam incursões constantes no norte da Índia; em 1237-41, fizeram campanhas de profundidade na Polônia, Hungria, Prússia oriental e Boêmia e mandaram forças de vanguarda em direção de Viena e Veneza. Só se retiraram da Europa quando receberam a notícia da morte do filho, que deveria ser sucessor de Gengis Khan. Sob o comando de seus herdeiros os mongóis ampliaram ainda mais seus domínios até conquistar toda a China onde Kublai Khan, neto de Gengis, fundou a dinastia Yuan, que reinaria até o final do século XIV. Impuseram também controle sobre a Birmânia e o Vietnã, tentaram desembarcar no Japão onde sua imensa frota foi colhida por um tufão, que os japoneses denominaram Kamikaze (Vento Divino) e foram os sobreviventes do grande naufrágio deste exército invasor passados a fio de espada pelos samurais. Permitiram que quatro deles sobrevivessem ao massacre e forneceram condições para seu retorno com o objetivo de alertar o Khan sobre seu grave erro. Em 1526, Babur, um descendente de Gengis, dominou a Índia e fundou lá a dinastia de seu império.

A moral sexual mongol era rígida: o adultério era punido com a morte de ambos os parceiros e fazer mulheres cativas era desaprovado. Esse código de conduta eliminava as disputas antes freqüentes causada pelo seqüestro de esposas. O próprio soberano mongol quando jovem teve a esposa, Borte seqüestrada por uma tribo inimiga, os merkitas, e com o auxilio de Togril Khan em troca de um casaco de zibelina ganho de presente de núpcias ofertado como prenda ao monarca, este forneceu-lhe seus melhores guerreiros e junto a outras tribos aliadas preparou a vingança com cuidado. Após vencer os merkitas encontra grávida sua esposa. Este filho foi chamado Gutsei (o inesperado) e foi aceito desde nascido como seu legitimo herdeiro. Os mongóis, como guerreiros nômades possuíam os próprios códigos de relações entre os indivíduos, as tribos e como tratar os inimigos estrangeiros. No geral sua relação de amizade determinava rituais de comportamento bem definidos, onde qualquer ofensa era motivo para uma cruel vingança.

Alguns analistas pretendem que a este ingrediente se somava um paganismo impiedoso e inculto, não perturbado por preocupações morais monoteístas e budistas com misericórdia para com estranhos ou com perfeição pessoal, e que tais povos “primitivos” tinham predileção pelo terror. Este tipo de pensamento ainda permanece no inconsciente coletivo do ocidente e se infiltrou como análise parcial xenófoba e antropocêntrica destes povos das estepes vistos pelo ângulo europeu católico. É mais que evidente que os mongóis diferiam dos francos em um só elemento, não estavam fanatizados por padres e lutavam suas guerras de forma pragmática, sem heroísmos, razão da invencibilidade militar deste povo que difundiu o terror por vastas regiões do planeta e até hoje ecoam na memória dos povos humilhados da Europa e Ásia seus feitos de sangue.


“É preciso arrasar todas as cidades”, dizia Gengis Khan, “para que o mundo inteiro se transforme numa imensa estepe onde mães mongóis amamentarão crianças livres e felizes”. De fato, cidades prestigiosas como Bukara, Samarcanda ou Herat  foram destruídas, e suas populações dizimadas. Após sua morte em 1227 aos 67 anos, o mundo civilizado do Oriente teve afrouxada a pressão por alguns poucos anos. Na Síria o flagelo se manifestou de forma indireta. Entre as numerosas dinastias derrotadas pelos mongóis havia a dos turcos khawarezmianos, que durante os anos posteriores, do Iraque a Índia tinham substituído os seldjúcidas no poder. O esmagamento desse império muçulmano obrigou seus exércitos a fugirem para bem longe dos vencedores. Assim dez mil cavaleiros se abateram na Síria, saqueando e espoliando as cidades que encontravam pelo caminho e formando facções nas lutas internas dos aiúbidas, governantes da época. Em junho de 1244 se lançaram ao assalto de Damasco. Saquearam e pilharam as aldeias vizinhas. Após tentarem com insucesso o assédio da metrópole síria e impossibilitados de manterem um cerco prolongado se voltaram para Jerusalém, que ocuparam sem grande dificuldade a 11 de julho. A cidade é mais uma vez saqueada e incendiada, mas a população franca é poupada. Quando mais uma vez tentaram aventurar-se a conquistar Damasco são dizimados por uma aliança dos príncipes aiúbidas.

O início do processo de conquista mongol desencadeou, segundo os historiadores, uma espantosa destruição entre as comunidades urbanas que se situavam na área entre Samarcanta, até Bagdá e Deli. Era para eles um prazer destroçar as culturas superiores dos povos sedentários, só pelo fato de o ser; sem parecer ser importante para eles o desmoronar da economia e que as receitas dos impostos rareassem, devido à destruição dos sistemas de irrigação e comércio. Degolavam populações inteiras até o ultimo homem, e construíam as macabras pirâmides de cabeças cortadas, que putrificadas, com  suas fluorescências fantasmagóricas iluminavam as noites e advertiam a seus inimigos e aos povos submetidos o perigo da rebeldia.       

Desde a morte do grande conquistador Mongol, seu império se viu enfraquecido pelos conflitos de sucessão. A partir de 1251 os cavaleiros mongóis estão mais uma vez unidos sob o comando de três irmãos, netos de Gengis Khan: Mongkla, Kubilai e Hulagu. O primeiro reinou como soberano incontestável do império, e estabeleceu sua capital em Karakorum, na Mongólia; o segundo reinou em Pequim; o terceiro se instalou na Pérsia. Ambicioso, pretendia conquistar todo o Oriente muçulmano, até as margens do Mediterrâneo. Personalidade complexa estava longe de representar o personagem primitivo que alguns historiadores gostariam de retratar os povos das estepes. Apaixonado pela filosofia e pelas ciências, procurando a sociedade dos letrados, se transformava, nas campanhas militares, em uma besta sanguinária sedenta de sangue e de destruição. Deixou-se influenciar pelo cristianismo, sua mãe e sua mulher preferida e vários colaboradores que dele se aproximaram pertenciam à Igreja nestoriana. Ele, entretanto jamais renunciou ao xamanismo, religião milenar dos povos das estepes.

Contava a lenda sobre seu povo e sua dinastia: Um guerreiro valoroso ao retornar após dois anos de ausência encontrou sua mulher grávida. Interrogada, ela afirmou: “Uma noite, quando eu estava dentro da iurta (tenda) sem conseguir dormir, um raio de luz penetrou pela abertura superior e tomou a forma de um jovem de cabelos louros e olhos azuis, que tocou por várias vezes em meu seio. É dele o filho que trago no ventre”.

Esta antiga tradição que tem precedentes em várias culturas estabeleceu a origem divina de um dos ramos do povo mongol, os niroune, “os filhos da luz”. Uma das tribos que deles afirmavam descender era a dos kiyata, chefiada até 1175, por Iasugai, o Valente, nobre descendente do clã borgigin.

Ser descendente dos “filhos da luz” não era o único atributo glorioso de Iasugai. Seus antepassados “terrenos” possuíam uma tradição de heróis entre o povo mongol. Kabul é um deles. Conseguiu a união de várias tribos sob seu comando. A soldo dos Chin Combateu vitoriosamente os tártaros e manchus. Depois, em 1135, Kabul mudou de lado e passou a servir como mercenário dos Sung ( a dinastia que deu forma aos primórdios do império chinês, senhora do sul do país e em eterno conflito com os usurpadores Chin que conquistaram o norte). Após quatro anos de lutas derrotou seus antigos aliados Chin, impondo-lhes tributo em cereais e gado. Sua maior façanha, anos antes a serviço dos Chin foi quando totalmente embriagado, teve a suprema ousadia de puxar a barba do imperador sem nada lhe suceder. Iasugai é sobrinho-neto de Kabul. Guerreiro valoroso e hábil consegue reunir 20000 homens sob a bandeira do falcão, o gênio tutelar dos kiyata-borgigin. Ele conseguiu estabelecer uma importante aliança com o poderoso senhor do Gobi, Togril, Khan dos keraitas. Em sua aliança militar os dois chefes fazem correr seu sangue, “sede da alma”, unindo para sempre as duas confederações de tribos.


A morte prematura de Iasugai, envenenado em um banquete traiçoeiro oferecido por uma tribo tártara, põe por terra naquele momento o sonho de unidade entre os mongóis. O sucessor do grande Kabul nesta época só tinha treze anos, era chamado Temujin, filho mais velho de Iasugai. Os cavaleiros de seu pai negando-se a ficar subordinados a um simples menino debandam para o clã dos taitchutas, também composto por descendentes de Kabul.

O chefe taitchuta sabia que enquanto vivesse, o filho de Iasugai seria uma ameaça constante a sua liderança. Mandou atacar o pequeno acampamento onde vivia Temujin com a mãe e algumas crianças. Ele foi obrigado a abandonar às pressas as terras de seus antepassados e se abrigou no inacessível monte Burkan Kal, onde reuniu o que restara da família. Suas posses se resumiam a nove cavalos e dois carneiros.
Passou a ser caçado pelas montanhas como um animal. Sua condição de nobreza não tinha  mais valor. Aos poucos  enquanto crescia surgiram histórias sobre este jovem indomável que tinha a coragem do pai e a ousadia de Kabul. Outros jovens guerreiros foram aos poucos se agregando ao bando que fazia incursões, pequenas surtidas contra os taitchutas, poupando a vida dos que se uniam a ele.

Depois de anos de lutas intertribais e alianças de interesse com chefes mais poderosos sua reputação estava consolidada. Reafirmou o pacto com Togril Khan que seu pai havia firmado no passado mandando-lhe como presente um casaco de Zibeline que tinha recebido como prenda de casamento. Sua mãe para garantir o sucesso de sua trajetória casou com um poderoso xamã que tinha fama de ser um interlocutor direto com os deuses. Daí para diante referencias às origens sobrenaturais do chefe guerreiro serão mais freqüentes. Muitas vezes foi ferido em combate pelas flechas inimigas. Sua indulgencia com os vencidos e a divisão igual entre os guerreiros sobre o botim, que passaria ser lei entre os mongóis, fez dele um chefe admirado.


Em 1189 foi reconhecido como Khan por uma parte das tribos da Mongólia oriental. Ainda não dispunha do poder necessário para enfrentar seus antigos inimigos. Cinco anos mais tarde vai servir com seus cavaleiros ao lado dos Chin contra os tártaros. Lutou ao lado dos chineses e keraitas e recebeu sua recompensa em armas, dinheiro e o título correspondente a capitão. Suas vitórias o tornaram cada vez mais poderoso.
Temujin voltou-se então contra os taitchutas e Giamuca, antigo aliado seu que tinha passado para o inimigo por não concordar com o fim da liberdade das tribos das estepes que ele queria unificar. Num desses combates uma flecha lhe atravessa o pescoço, sufocando-o. Um de seus guerreiros passa a noite  inteira sugando-lhe o sangue da ferida para evitar que morresse. No dia seguinte novamente montado desbaratou as forças dos inimigos. Entre os prisioneiros estava o causador do ferimento. O jovem guerreiro se apresenta a ele e diz: “Se me matares, sujarás um palmo de terra; mas se me tomares ao seu serviço, terás um arqueiro que conquistará a terra, até onde sua flecha – que bem conheces – puder chegar”. Temujin tomou-o a seu serviço e o guerreiro cumpriu sua promessa. Adquiriu com a façanha, a partir daí, o nome de Gebe, a Flecha.

Contra os tártaros, que decide atacar para prevenir-se de qualquer ameaça a leste, antes da batalha, disse aos comandantes de seu exército: “Se a vitória for nossa, que ninguém se ponha a saquear nem reúna butim, pois este será dividido em partes iguais. O combatente que tiver que recuar, volte assim que possível a seu posto. Aquele que não voltar será decapitado”. Com esta medida sábia evitou a dispersão natural da horda que movida pela tradição ancestral perdia com facilidade o foco no combate por medo ou volúpia pelo saque, quando sorria ou não a vitória.

No fim do dia os tártaros deixaram de existir como grupo independente. Os prisioneiros sobreviventes foram distribuídos como escravos entre os clãs aliados. Sua horda crescia sob a sombra do estandarte do falcão que incluía um número cada vez maior de tribos.

No final do séc. XII duas confederações lideradas por Togril e Temujin unem grande parcela das tribos mongóis. Por um longo tempo Temujin aceitou o papel de vassalo de Togril. Enviou-lhe caros presentes, atendeu quando solicitado para ajudar no auxilio contra os inimigos. Várias vezes ele abriu mão de sua parte nas pilhagens para o aliado. Até o momento que conhecendo seu poderio propôs uma aliança em iguais condições para ambos. Envia um mensageiro para pedir a mão da princesa keriata para seu filho Gutsci, como era costume entre as tribos para selar acordos políticos. Togril recusa. Teme ficar em desvantagem no futuro em relação ao clã de Temujin ao aceitar o filho dele como cunhado. Giamuca refugiado em sua corte predispõe o príncipe herdeiro keraita que também teme esta aliança.

Temujin não esperou ser surpreendido. Atacou primeiro e depois recuou como era costume entre esses cavaleiros  fazer quando a sorte não estava ao seu lado, pois avaliou a superioridade numérica do inimigo e não pretendia pôr a perder seu exército numa batalha decisiva. Logo enviou emissários à Togril, lembrando a antiga aliança e acenando com a paz.

Sua posição ficou enfraquecida e ocorreu a dispersão de suas hostes motivada pelo desacordo das tribos, muitas decidiram abandoná-lo. Até mesmo alguns parentes voltaram-se contra ele. Temujin seguiu com o que restou de suas forças para o norte, e estacionou-as próximo a fronteira da Manchúria. Ali passou o verão de 1203, pacientemente preparando suas forças e firmando alianças, até sentir-se forte o suficiente para empreender nova campanha.  Quando achou que tinha refeito seu exército seus cavaleiros seguiram para o sul e caíram sobre os keraitas que foram surpreendidos em meio a um banquete tribal.

A batalha durou três dias, o céu se encheu de flechas, combates corpo a corpo ocorreram enchendo de corpos mutilados a estepe, muitos esmagados pelas patas dos cavalos guerreiros. Ao fim do embate os keraitas sobreviventes se renderam. Pouco depois chegou um presente macabro: a cabeça de Togril Khan, assassinado pelos seus quando tentava a fuga em direção ao reino vizinho dos naimanos. Para homenagear sua bravura em combate e o longo relacionamento com o antigo chefe, Temujin manda que de seu crânio seja feita uma rica taça engastada em prata que passou a utilizar nos festins como era costume entre os vencedores desde os tempos que comiam os inimigos.

Ao consolidar sua posição como chefe de uma poderosa confederação tribal, seus domínios passaram a cobrir todo o leste da Mongólia. Seu reino fazia neste momento fronteira com o poderoso reino dos naimanos, herdeiros da cultura de turcos e uigures. É nesta corte que seus inimigos vencidos foram se refugiar, seu monarca era denominado pelos chineses, na época, Grande Rei (Gengis Khan), enquanto eles consideravam Temujin apenas um comandante tribal menor. Os tambores da guerra voltaram então a soar e seus guerreiros seguiram sem deixar de sentir algum receio, pois teriam que enfrentar um exército de 80.000 cavaleiros bem treinados e experientes.

Quando os naimanos e seus aliados confrontaram os cavaleiros de Temujin, homens magros e doentes montados em cavalos decrépitos, atacaram em total desordem, certos da vitória e clamando aos seus deuses que naquele dia teriam muitos prisioneiros para o sacrifício. Diziam: “Reuniremos todos e os conduziremos ao matadouro como carneiros e ovelhas”.

Ao chegar a noite, Temugin caiu sobre eles com o grosso do exército em perfeita ordem contra inimigos afoitos cuja ordem tinha sido desfeita e que se entregava a matança das tropas que foram usadas como isca, Temujin demonstrava sua superioridade estratégica numa manobra diversionista genial. Conta a “História Secreta dos Mongóis!”, obra de autor desconhecido do séc. XIII, que o rei  naimano perguntou a Giamuca: “Quem são aqueles que nos perseguem como lobos?”. “São os quatro cães de Temujin”, teria sido a resposta. “Nutrem-se de carne humana e ficam presos a uma cadeia de ferro. Agora estão soltos, sua baba escorre, estão cheios de alegria. Chamam-se Gebe,Kublai,Gelmé,Subotai – os fiéis comandantes de Temujin”.

Terminado o combate, o rei naimano morto, suas forças completamente desbaratadas, Giamuca foi obrigado a fugir novamente e posteriormente foi aprisionado e morto. Mais um grupo das estepes se incorporou ao reino de Temujin, sua liderança era inconteste em toda a Mongólia. Os funcionários do rei morto por ordens do novo senhor preocupado com organizar seu reino confeccionaram um alfabeto mongol baseado no uigur.
Na primavera de 1206 foi convocada a grande assembléia (Kurultai) com todos os habitantes de todas as classes dos mongóis quando seriam informados os desígnios dos deuses em relação às tribos.

A assembléia foi realizada no território ancestral dos borgigin, perto das montanhas sagradas. Os sacrifícios de garanhões e éguas foram propiciados perante uma assistência devota. Xamãs interpretaram  os auspícios e proclamaram a vontade do Céu. Ao centro, encimado solitário tremulava o estandarte do gavião. O vencedor de tantos Khans deveria ser proclamado soberano supremo (Gengis Khan).

Neste momento, ao ser elevado pelos guerreiros na manta de feltro, concedeu como honra o título de mongóis, a todas as tribos ali presentes. Para eles as palavras possuem poder mágico.  Com este ritual de inspiração xamanica onde o nome de um pequeno grupo foi estendido aos demais povos ele reafirmou a unidade das tribos que passaram a incorporar uma nova alma, uma nova nação. Sua capital foi estabelecida em Karakorum, antigo centro do império turco. Seu poder se exerceu nesta época sobre 32 povos, divididos conforme sua ordem entre “os do centro, os da mão esquerda e os da mão direita”. Esta ordem foi doravante mantida na disposição das tropas que eles forneceram nas campanhas vindouras. Os povos sedentários muçulmanos e europeus passaram a correr extremo perigo com esta ultima grande invasão de cavaleiros das estepes.

Em 1226, durante uma campanha militar contra o último enclave remanescente mongol, os tangout, Gengis Khan adoeceu. Sentindo o fim próximo, chama seus generais e mostra-lhes o plano completo da conquista da China. Ordena aos filhos que vivam em paz entre si. Sua última ordem aos soldados: “Exterminem a população tangout sobre minha tumba. Suas últimas palavras dizem respeito ao respeito às leis das estepes. Os nômades devem permanecer “puros e claros como o cristal”, para concluírem a conquista do mundo.

Diz a lenda que o carro que levava o corpo de Genghis Khan, com destino a Karakorum, recusou-se a tomar essa direção – as rodas se viravam para nordeste em direção às estepes, a terra natal do grande soberano.

Em local indeterminado seu corpo foi sepultado, junto às montanhas sagradas dos borgigin. Todos os súditos encontrados ao longo do caminho foram sacrificados, conforme a tradição fúnebre ancestral, a antropofagia ritual, tradição cerimonial dos grandes senhores da Ásia, deviam os mortos servi-lo no além túmulo. Junto com ele seguem também sua tenda e seu cavalo favorito. Seu nome não deve ser mencionado, para que assim os espíritos não o perturbem.


As táticas de combate dos mongóis eram o resultado de uma tradição milenar de caça de sobrevivência e guerra entre tribos para resolver vendetas intermináveis de motivação antropofágica herdadas pelos povos das estepes desde a mais longínqua antiguidade. Seus antepassados desenvolveram e aprimoraram essas técnicas desde que puderam cavalgar animais com capacidade de tiro, velozes e com resistência para suportar longas jornadas. Cada guerreiro podia levar até cinco cavalos para percorrer grandes distancias com velocidade na época assombrosa, o que garantia a sua força grande mobilidade.

Os  Citas na antiguidade já tinham utilizado táticas diversionistas contra os persas de Dario infligindo grande derrota ao seu poderoso exército que ousou conquistar o território que estes exímios cavaleiros habitavam. Obrigando-os a longas marchas e assim promovendo o desgaste do exército inimigo, os citas recuavam para o interior sem opor resistência direta, ou tentar uma batalha decisiva, tão ao gosto de Clausewitz, que poderia ser desvantajosa. Quanto mais o exército persa adentrava no país inimigo pioravam as condições de logística do invasor em uma terra estranha. Ao procederem a uma retirada desesperada, já sem mantimentos, os cavaleiros citas partiram para a ofensiva e fizeram incursões mortais na retaguarda da coluna persa, onde seguiam os mais lentos e os mais fracos, causando a desagregação total do antes poderoso exército. Segundo conta Heródoto, Dario salvou-se por pouco de ser morto ou feito prisioneiro deixando para trás suas bestas e seus feridos. Assim também cavaleiros tártaros, turcos e outros povos da Ásia central desenvolveram e aprimoraram estes recursos e manobras a partir da observação e da assimilação dos hábitos de predadores, animais que admiravam e adoravam como seus gênios tutelares. A etologia era praticada através da tradição e do método empírico de caçadores milenares, sobreviventes que conheciam e sabiam observar a natureza selvagem das estepes.

Na observação atenta da natureza em seu confronto mortal pela sobrevivência das espécies estabeleceram suas táticas de combate herdadas e aperfeiçoadas de geração em geração. Como analogia dos movimentos da luta pela vida, os povos das estepes praticavam suas manobras de cavalaria como na luta entre o pássaro e a serpente: cada vez que o pássaro avança e ataca com o bico, a serpente desliza para trás, avançando de novo quando a ave se retira, até o pássaro chegar a exaustão pelo esforço contínuo e então ela o vence com facilidade. Assim ensinavam os mestres para os jovens guerreiros em suas caçadas equestres.

Seu treinamento militar incluia o que denominavam a "Grande Caçada", um exercício de coordenação de massa e coragem individual. O exército inteiro organizado em sua formação de batalha, cercava uma área determinada da planície escolhida. Então pouco a pouco o círculo se fechava empurrando lobos e outros animais selvagens para o centro da formação. Só quando o círculo estava bem fechado é que era dado o sinal e os guerreiros podiam usar suas azagaias e flechas para matar os animais enlouquecidos.

Os mongóis utilizavam-se amplamente do poder de fogo de seu poderoso arco composto construído com perícia por artesãos, elaborado de madeiras especiais hoje desconhecidas e fibras de animais, tinham ainda suas hostes a habilidade de moverem-se rapidamente e em silencio, e uma reputação de crueldade que os precedia, pois eram especialistas na guerra psicológica.

Todos os seus oponentes na época, europeus  e muçulmanos que utilizavam cavalaria pesada com armaduras e lanças, possuíam movimentos lentos e manobras que prestigiavam as cargas de lanceiros e preferiam o ataque frontal, e para tanto precisavam alinhar-se antes de partir para carga e marchavam mais vagarosa e deliberadamente para o campo de batalha deixando os flancos sem proteção.

Os cavaleiros medievais europeus criaram convenções de combate semelhantes aos astecas, um tipo de batalha floreada que se assemelhava às justas e competições que só os nobres participavam já que a atividade militar de cavalaria ficava restrita a eles e suas estratégias só eram eficientes quando seus pares, outros nobres também compunham o exército adversário. Combates singulares eram então comuns em meio às batalhas campais. 


Os mongóis utilizavam as estratégias de caça e procuravam criar oportunidades em dividir uma força inimiga como faziam com suas presas quando empreendiam a caçada a cavalo com o arco composto e aniquilavam a resistência dos grupos inimigos divididos com rápidas flechadas certeiras antes de tentar o corpo a corpo. Suas flechas podiam varar armaduras com relativa precisão.

Eles buscavam encurralar ou cercar os inimigos como na caçada de rebanhos de renas e alcançar uma superioridade de números pelo envolvimento do inimigo que já nessa altura do combate se comportava como uma presa ferida.

Ao enfrentar cavaleiros armados com armaduras pesadas  miravam  os cavalos dos inimigos que assim eram feridos, fazendo o cavaleiro cair e tornando-o incapaz de defesa uma presa fácil e mais vulnerável com os movimentos tolhidos pelos pesados adereços.

A cavalaria leve mongol não suportaria uma investida contra cavalaria pesada, então eles fingiam a fuga, tornando os perseguidores exaustos, e quando os guerreiros percebiam essa condição do inimigo os mongóis viravam subitamente, e de caça passavam a condição de caçador. Eram excelentes em planejar emboscadas e ataques-surpresa.

Os comandantes do exército mongol colocavam na inteligência e informação o peso maior de suas decisões e buscavam com esta tática a antecipação das estratégias dos oponentes, observando os movimentos do inimigo para empreender os próprios.  Fizeram extensivo uso de batedores e movimentos de força sincronizada para surpreender o inimigo, colocando-o sempre em desvantagem no campo.

Faziam uso pleno também do terror que foi tão intenso a ponto de ser lembrado até nossos dias pelos povos que subjugaram; se a população de uma cidade inteira que havia lhes resistido fosse massacrada, era mais provável que a próxima cidade desistisse sem sequer lutar Fato esse comprovado, pela conquista de vários territórios, sem uma única morte.


Quando faziam o sítio de uma cidade murada utilizavam especialistas estrangeiros para o manuseio das máquinas de guerra e a construção das torres de assalto. Suas hostes que incorporaram cavalaria pesada e infantaria posteriormente congregavam muitos povos que viam na guerra uma possibilidade de ganhos, uma carreira profissional lucrativa e vantajosa.

Esses eram os segredos da invencibilidade do exército mongol.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

As Cruzadas - A Seita dos Assassinos.


 

As Cruzadas vistas pelos Árabes – O Comando Suicida.

Foi, de fato, na sexta-feira 22 do tempo de Chaaban, do ano de 492 da Hégira, que os francos tomaram a Cidade Santa de Jerusalém, após sitiá-la por quarenta dias. Os que conseguiram por milagre escapar tremem ao lembrar e seu olhar fica embaçado como se vissem diante deles aqueles guerreiros louros com suas armaduras de ferro ceifando vidas com suas espadas, degolando homens, mulheres e crianças, pilhando as casas e saqueando as mesquitas.
Dois dias após a violenta chacina não havia um só muçulmano vivo dentro dos muros da cidade. Alguns aproveitando a confusão da incursão assassina fugiram pelas portas que os invasores haviam destruído. Milhares jaziam em poças de sangue pelas ruas, nas soleiras das suas residências ou nas proximidades das mesquitas. Muitos homens santos, imãs, ulemás, e ascetas sufis que haviam peregrinado para a Terra Santa em busca de um retiro piedoso onde pudessem aprimorar suas crenças foram assassinados. Os poucos sobreviventes cumpriram a terrível missão de amontoar os corpos nos terrenos baldios para em seguida atear fogueiras. Temiam ainda o destino de sofrerem o massacre impiedoso ou serem vendidos como escravos.
O destino dos judeus de Jerusalém foi igualmente terrível. Durante as primeiras horas da batalha ofereceram resistência aos atacantes no bairro onde viviam a Judiaria, que ficava situada ao norte da cidade. Mas quando parte da muralha desmoronou foram tomados pelo pânico ao ver os louros cavaleiros que ocupavam rapidamente as ruas da cidade. A comunidade inteira procurou abrigo na sinagoga principal para com suas preces apaziguar os ânimos dos atacantes. Os francos bloquearam todos os acessos ao prédio e depois empilharam feixes de lenha que deitaram fogo. Os que conseguiram escapar ao incêndio eram trucidados nos becos vizinhos, os que permaneceram morreram queimados vivos.
No início da invasão, poucos árabes perceberam imediatamente a ameaça vinda do Oeste. Alguns se adaptaram rapidamente à nova situação pensando nos lucros advindos do comércio com os estrangeiros. Os mais pobres só procuraram sobreviver, amargurados e resignados pelos novos tempos de submissão aos bárbaros estrangeiros. Alguns letrados, mais lúcidos,  buscaram analisar os novos acontecimentos e registrá-los para a posteridade. O saque de Jerusalém pelos Cruzados, em um primeiro momento não causou nenhuma reação do califado de Bagdá. Levará pelo menos meio século antes que os árabes se mobilizem contra o invasor estrangeiro.
Um viajante, cronista da época, Ibn Jobair, um árabe vindo da Espanha que visitara a Palestina um século após sua ocupação pelos francos relata escandalizado sobre alguns muçulmanos que: “subjugados pelo amor da terra natal”, aceitam viver em território ocupado. “Não há”, comentava, “para muçulmano, desculpa alguma perante Deus para sua estada numa cidade ímpia, a menos que esteja simplesmente de passagem. Em terra do Islã, encontrou abrigo para os males a que estava submetido. Contrariamente, em paisagens estrangeiras era obrigado a ouvir ofensas dirigidas ao Profeta, sujeitar-se aos impedimentos de purificação, viver entre os porcos e a tantas outras licenciosidades. Abstenham-se, abstenham-se de penetrar nessas regiões! É preciso pedir perdão e misericórdia a Deus para evitar tal erro. Um dos horrores que saltam aos olhos de quem mora no território dos cristãos é o espetáculo dos prisioneiros muçulmanos tropeçando nos grilhões, usados para trabalhos forçados quando são tratados como escravos. O mesmo ocorre com o espetáculo das cativas muçulmanas que trazem aos pés anéis de ferro. Os corações despedaçam-se a essa visão, mas piedade não lhes serve para nada”.
Ibn Al-Qalanissi, testemunha ocular das invasões dos francos relatou em sua crônica os primeiros contatos com o exército agressor. Ele tinha 23 anos em 1096 e levando em conta o ponto de vista de sua cidade, Damasco, narrou em seus registros fielmente a progressão dos acontecimentos terríveis.
“Naquele ano, começaram a chegar informações sucessivas sobre a aparição de tropas de franj (francos) vindas do mar de Mármara em grande multidão. As pessoas se amedrontaram. Essas notícias foram confirmadas pelo rei Kilij Arslan, cujo território era o mais próximo desses franj.”




O rei em questão ainda não tem 17 anos quando chegam os invasores. Esse jovem sultão turco de olhos levemente puxados desde julho daquele ano já sabe que uma imensa turba de estrangeiros se dirige para Constantinopla. Ele desconhece seus objetivos, mas teme o pior.
Seus domínios abrangem uma grande parte da Ásia Menor, um território recém tomado dos gregos ortodoxos. Seu pai, Suleiman, foi o conquistador dessa terra que mais tarde se chamaria Turquia. Em Nicéia, sua capital, as igrejas bizantinas ainda são mais numerosas que as mesquitas e a população em sua maioria é de gregos, enquanto que a guarnição que protege a cidade é composta por cavaleiros turcos em sua maioria. Para a população da cidade ele será sempre um chefe tribal bárbaro. O único soberano que reconhecem é o basileu Aléxis Comneno, imperador romano do oriente. Na verdade os gregos se consideram e se proclamam herdeiros do antigo império. Os árabes por sua vez os designam pelo termo rum, derivado de “romanos”. O domínio abocanhado do antigo império por seu pai é chamado, portanto de sultanato dos rum.
O basileu Aléxis, um quinquagenário, com olhos cintilantes, cheios de malícia, barba feita e modos elegantes, sempre paramentado com lindas vestes douradas e azuis, exerce verdadeiro fascínio sobre este jovem rei descendente das estepes. Ele é quem reina sobre Constantinopla, a fabulosa Bizâncio de muitas riquezas, a só três dias de cavalgada de Nicéia. Ambos os monarcas sonham em dominar estes territórios, pois a proximidade dos dois reinos é uma ameaça constante ao controle e segurança de seus domínios.
O exército bizantino em decadência, dilacerado por crises internas, já não faz frente aos cavaleiros das estepes e dependem dos mercenários estrangeiros para proteger suas fronteiras cada vez mais reduzidas pelas invasões constantes. Sempre utilizaram estrangeiros vindos do Ocidente, cavaleiros com suas armaduras pesadas ou peregrinos a caminho da Terra Santa como forças auxiliares. Vinte anos antes, um desses aventureiros, um tal Roussel de Bailleul, que conseguira estabelecer um feudo na Ásia Menor, marchou sobre Constantinopla. Em pânico, os bizantinos não tiveram outra escolha a não ser apelar para a ajuda de Suleiman. Seus cavaleiros então desbarataram as forças atacantes e foram generosamente recompensados os seus esforços em ouro, cavalos e terras pelo imperador.
Desde então, os bizantinos passaram a desconfiar dos francos, mas seus exércitos ainda dependiam de mercenários experientes para manter o controle sobre o que restara do antigo império. Não só cavaleiros cristãos, mas também turcos compunham estas forças. São estes compatriotas que alertam Kilij Arslan que em julho de 1096, milhares de francos se aproximam de Constantinopla.
É uma turba que se aproxima de Bizâncio, cavaleiros armados, infantes, mas também mulheres, crianças, velhos em andrajos, como se tivessem sido exilados de suas terras e trazem todos, costurados nas costas, faixas de tecido em forma de cruz.
O jovem sultão pede para seus pares manterem absoluta vigilância aos movimentos dos invasores e manda verificar as defesas de sua capital que dispõe de muralhas numa extensão de seis mil metros e possuí 240 torres. A sudeste, o lago Ascanios protege naturalmente a cidade com sua orla.
Os invasores francos atravessam o Bósforo, escoltados por uma frota bizantina e mesmo sob sol escaldante avança a turba ao longo da costa. Pelo caminho saqueiam as igrejas gregas que encontram e bradam que vem para exterminar os povos muçulmanos. Seu comandante seria um eremita chamado Pierre. Seus informantes contam em dezenas de milhares as forças invasoras, mas nenhum deles sabem dizer qual seu objetivo direto. Parece que Aléxis resolveu instalá-los em Citivot, um acampamento utilizado anteriormente por outros mercenários, a menos de um dia de caminhada de Nicéia.



 O sultão declara estado de alerta e seus batedores informam os movimentos dos francos. A cada manhã eles fazem incursões, em bandos de vários milhares, e em suas explorações saqueiam algumas fazendas e incendeiam outras nas vizinhanças, depois retornam ao seu acampamento onde dividem entre seus pares os pertences e alimentos saqueados. Durante um mês a rotina se repete. Nada disso atemoriza o jovem sultão e seus soldados que são veteranos de outras campanhas.
Por voltas de meados de setembro os invasores bruscamente mudam seus hábitos. Depois de esvair os recursos das redondezas a turba tomou o rumo de Nicéia, atravessando alguns vilarejos, todos cristãos, apossaram-se das colheitas recém estocadas em celeiros, massacrando sem piedade quem resistisse. Crianças de colo teriam sido queimadas vivas.
O jovem sultão é pego de surpresa. Quando chegam os informes os atacantes já se encontram sob os muros de sua capital. O sol ainda não havia atingido o horizonte quando as fumaças dos incêndios são vistas da cidade. Imediatamente ele manda uma patrulha de cavaleiros que é envolvida pelos atacantes e eles são esmagados pela força superior do inimigo. Só alguns poucos sobrevivem e voltam para a cidade, feridos pelo combate. Com o orgulho ultrajado e temendo a perda de prestígio manda organizar suas tropas para o combate, mas seus emires o dissuadem pois a noite se aproxima e os inimigos retiram-se para seu acampamento. A vingança deve esperar.
Duas semanas mais tarde, incentivados pelo seu primeiro sucesso os ocidentais repetem a façanha. Dessa vez, o filho de Suleiman avisado com antecedência segue passo a passo os movimentos dos inimigos. Uma tropa de cavaleiros francos seguidos pela turba andrajosa composta de milhares de saqueadores esfarrapados, pega a estrada para Nicéia e depois num movimento, contornando a aglomeração, dirige-se para leste e toma de surpresa a fortaleza de Xerigordon.
O jovem sultão parte com suas tropas, cavalga em marcha acelerada em direção ao pequeno baluarte onde, para comemorar sua vitória, os francos, como bárbaros que são, embebedam-se, pois são incapazes de perceber que caíram numa armadilha mortal. Pois o baluarte apresenta um segredo que só os soldados turcos conhecem bem, mas os estrangeiros inexperientes desconhecem, a única fonte de água se situava fora das muralhas, bastante longe do acesso dos sitiados. Assim os cavaleiros turcos tiveram que somente cercar a fortaleza, bloquear seus acessos e esperar que a sede fizesse o serviço por eles.
Para os sitiados começa o suplício. Chegam a beber o sangue de suas montarias e até mesmo a própria urina. Podem ser vistos das muralhas, nestes primeiros dias de outubro, mendigando ao céu algumas gotas de chuva. Nada acontece, até mesmo Deus se nega a lhes reduzir a tortura. Após uma angustiosa semana um cavaleiro chamado Renaud, chefe da expedição, oferece a capitulação com a condição que lhe seja poupada a vida. Kilij Arslan exige que renunciem publicamente à sua religião e fica não pouco surpreso quando o franco se diz pronto a se converter ao islamismo, mas também se propõe a lutar ao lado dos turcos contra as forças católicas. Vários dos seus pares também se convertem e são enviados como prisioneiros para as cidades da Síria e da Ásia Central. Outros menos afortunados ou intransigentes são passados ao fio da espada.
O jovem sultão se enche de orgulho pela primeira vitória. Ponderado, concede aos seus um prazo para que dividam os despojos de guerra e ordena que fiquem de alerta a partir do dia seguinte. Os francos perderam cerca de seis mil homens, mas os restantes ainda são seis vezes mais numerosos, devem aproveitar a oportunidade para uma vitória decisiva. Para tanto designou dois espiões gregos para o acampamento de Citivot e envia através deles notícias da vitória de Renaud que teria conseguido dominar a própria Nicéia e que dividia o saque entre seus comandados sem intenções de partilhar seu sucesso com mais ninguém.
Num primeiro momento os rumores causam o efeito desejado. Grupos se formam. Injurias são proferidas contra Renaud e seus homens. Logo tomam a decisão de marcharem em direção de Nicéia para participar de seu saque. Entretanto, neste ínterim, chega um homem sobrevivente de Xerigordon, revelando o infortúnio da expedição e a verdade sobre a sorte de seus companheiros. Os dois gregos pensam ter fracassado em sua missão. Os mais sábios entre os francos pregam a calma para a turba, mas depois de um primeiro momento de consternação logo a exaltação dos mais fanáticos volta. A multidão se agita e clama vingança por seus mártires. Os mais prudentes, que hesitam, são chamados de covardes. Os mais enlouquecidos obtêm a atenção da multidão, e a partida é marcada para o dia seguinte. Os dois espiões apesar do contratempo, triunfantes alertam seu senhor para que prepare a emboscada.
Arslan


Na madrugada de 21 de outubro de 1096, as forças ocidentais partem do acampamento. Os turcos não estão longe. Eles passaram a noite nas colinas que são próximas de Citivot. Os homens do sultão estão posicionados, escondidos. O próprio sultão observa o movimento ao longe da coluna que levanta enorme nuvem de poeira. Algumas centenas de cavaleiros sem armaduras vão à frente seguidos de uma multidão de infantes em desordem. A marcha já se estende por uma hora quando o sultão escuta o clamor que se aproxima. O sol que se ergue por trás de suas forças ajuda para torná-los invisíveis ao inimigo. Com a respiração em suspenso ele dá sinal aos seus comandantes para que fiquem alerta. Sinais silenciosos são repassados para as tropas. Os arqueiros preparam seus arcos, retesando-os lentamente. Mil flechas chovem num longo e mortal assobio. Os cavaleiros na vanguarda desabam das montarias. Depois os infantes, tomados de pânico e surpresa são derrubados aos milhares. Quando se inicia o corpo a corpo os invasores já estão derrotados. Os que ficaram na retaguarda fazem uma retirada desordenada em direção ao acampamento, onde os que ainda repousavam são acordados pelo alarme. Um velho padre celebra um ofício religioso, as mulheres preparam a comida no bivaque. A chegada dos fugitivos com os turcos no encalço espalha o terror. Alguns tentam se esconder em um bosque próximo e são rapidamente alcançados. Outros buscam refúgio numa velha fortaleza junto ao mar. Não querendo assumir riscos desnecessários o sultão renuncia ao seu sitio. A frota bizantina mais tarde irá resgatá-los. Dois a três mil homens escaparam da morte certa com este subterfúgio. Pierre, o heremita, que se encontrava em Constantinopla há alguns dias se salva. Mas seus seguidores pagam um preço elevado pela aventura. As mulheres mais jovens são distribuídas entre os cavaleiros turcos, como manda a tradição guerreira, para servirem aos emires ou serem vendidas nos mercados de escravos. Alguns rapazes mais formosos têm o mesmo destino. Os outros francos, cerca de vinte mil sofrem o extermínio.
Kilij Arslan rejubila pela fácil vitória sobre inimigos que diziam ser tão temíveis. Suas perdas são insignificantes. Ele vive um de seus maiores triunfos. Inebriado pelo sucesso passa a ignorar as informações que recebe da chegada, no inverno seguinte, de novos grupos de francos que aportam todos os dias em Constantinopla. Suas preocupações estão voltadas para os seus vizinhos, outros príncipes turcos que ameaçam as fronteiras do seu reino. Ele e seus conselheiros acreditam poder vencer novamente e a qualquer tempo os estrangeiros enviados pelo basileu Aléxis.
As lutas intestinas minavam este império. Vindos da Ásia Central as hordas de cavaleiros nômades de longos cabelos trançados, os turcos dominaram em poucos anos toda a região que se estende do Afeganistão ao Mediterrâneo. Desde 1055, o califa de Bagdá, sucessor do Profeta e herdeiro do antigo império abássida presta honras como um figurante aos invasores das estepes. De todos os cantos do império árabe são os seus emires que ditam a lei. Pela primeira vez em trezentos anos, todo o Oriente muçulmano está unido sobre uma única dinastia que afirma sua vontade de levar ao Islã sua antiga glória. O império romano do Oriente está em seus últimos extertores. A Ásia Menor sua mais importante e vasta província caiu nas mãos dos invasores e até Constantinopla, a capital do império não está mais segura. Seus imperadores não cansam de enviar delegações à Roma para pedir ao papa que declare a Guerra Santa contra o ressurgimento do Islã.
Já Kilij Arslan, herdeiro seldjúcida não se ilude com a aparente unidade de seu império. Seu pai acabou perdendo a vida num combate de chefes. Com a morte de Suleiman, assassinado por um de seus parentes invejosos, após haver conquistado a Ásia Menor e a vasta Anatólia, sem a ajuda dos irmãos, seu filho, o príncipe, com apenas sete anos, foi enviado e mantido a força em Ispahan, na Pérsia, enquanto as conquistas paternas eram divididas, sob o argumento de que sua vida corria perigo. Entre seus primos não existia solidariedade alguma. É preciso matar para sobreviver. Quando conseguiu a liberdade, em fins de 1092, graças a uma das intermináveis contendas tribais, seu domínio ficava restrito aos muros de Nicéia. Tinha ele então apenas 13 anos.


Depois, aos poucos, por meio da guerra, do crime e da astúcia pode recuperar aos poucos uma parte do legado paterno. Ele já com pouca idade podia se considerar um veterano, pois havia passado mais tempo na sela de sua montaria do que em seu palácio. No entanto, quando os francos chegavam na região, nada ainda está definido entre ele e seus primos. Na Ásia Menor seus primos seldjúcidas que governam a Síria e a Pérsia estão mergulhados em contendas, porém continuam ainda poderosos rivais.


Quando os francos aportavam em Constantinopla, Kilij Arslan se encontrava envolvido em uma campanha contra um estranho personagem denominado Danishmend, “o Sábio”, um aventureiro letrado de origem desconhecida que reinava nos desolados planaltos da Anatólia. Este guerreiro vai se tornar em um herói de uma epopéia célebre que descreve a ocupação de Malatya, cidade da Armênia situada a sudeste de Ancara. Danishmend cerca a cidade, e o jovem sultão não aceita a idéia de que alguém que se aproveitou da morte do seu pai para ocupar o Nordeste da Anatólia, possa alcançar uma vitória que lhe dará prestigio e ficará marcada para sempre pelos autores da narrativa como o marco da islamização da futura Turquia. Determinado a impedir o feito segue com seus cavaleiros e acampa nas cercanias de Malatya. Com sua estratégia pretende intimidar o inimigo e promove escaramuças, cada vez mais mortais contra suas forças.
Em abril de 1097, o confronto de forças parece inevitável. O jovem sultão se prepara para o embate. O grosso de suas tropas está às portas de Malatya quando chega um emissário defronte a sua tenda. Ofegante declara a mensagem, os francos mais uma vez atravessaram o Bósforo, mais numerosos que no ano anterior. Kilij Arslan permanece imperturbável. Não havia ele derrotado os francos antes? Envia alguns destacamentos de cavalaria para reforçar as defesas da capital e para tranqüilizar seus habitantes e sua esposa, a sultana, prestes a dar a luz. Pretende estar de volta logo que tiver terminado com Danishmend.
Nos primeiros dias de maio, em meio as refregas, na batalha de Malatya, chega um novo mensageiro, ofegante de cansaço e medo. Os francos desta vez sitiaram Nicéia. Não são mais bandos de saqueadores esfarrapados, mas um verdadeiro exército de cavaleiros bem equipados e armados com suas couraças. E desta vez junto com eles seguem as tropas do basileu. Após consulta demorada aos seus emires resolve ir ver Danishmend, que é homem honrado e informa as tentativas de conquista dos rum e seus mercenários cristãos, assim como a ameaça que agora pesa sobre todos os muçulmanos na Ásia Menor. Antes mesmo de saber a resposta despacha uma parte de seu exército ás pressas para a capital. Após alguns dias um acordo é concluído e Kilij Arslan marcha sem demora rumo oeste.
Quando atinge as proximidades de sua capital observa estarrecido que seu legado, a soberba cidade, encontra-se sitiada por um poderoso exército. Máquinas de guerra e torres de assalto são preparadas para o ataque final. Seus emires são taxativos, a cidade está perdida. Nada mais resta a não ser recuar para o interior do país antes que seja tarde demais. Antes de desistir de sua capital ele insiste em tentar uma última investida ao sul, onde os sitiantes parecem mais fragilmente guarnecidos. A batalha começa na madrugada de 21 de maio. Ele se joga ao combate com suas forças tentando abrir uma brecha nas linhas do inimigo no corpo a corpo e a luta dura até o cair da noite. As perdas são pesadas para ambos os lados, mas as posições permanecem inalteradas. O sultão não insiste. Poderia prolongar o cerco por mais algum tempo, mas se insistisse numa batalha decisiva colocaria em jogo a existência do próprio sultanato. Como descendente dos cavaleiros das estepes sabe muito bem que é hora de recuo estratégico para manter o que restou de sua tropas intacto para um futuro combate. São delas que emana seu poder e não da posse de uma cidade. Logo terá uma nova capital, Konya, localizada mais para o leste. Esta fronteira seus descendentes irão conservar até o séc. XIV. Nicéia nunca mais será sua.
Antes manda uma mensagem aos defensores da cidade. Devem agir conforme seus interesses e buscar um acordo de capitulação diretamente com o basileu. É preciso entregar a cidade para Aléxis Comneno e não para seus auxiliares francos. Tanto a guarnição turca como a população grega sabe, em função dos acontecimentos anteriores, que só podem esperar a barbárie por parte dos francos e suas forças. São iniciadas as negociações com o basileu que postou suas tropas a oeste de Nicéia. Os homens do sultão ainda sonham com o retorno de reforços em sua salvação. Mas Aléxis ameaça, os ocidentais se preparam para o assalto final, e então não poderá garantir mais nada. Os negociadores ficam aterrorizados. Vislumbram sua cidade saqueada, os homens massacrados e as mulheres violentadas. Os defensores resolvem colocar sua sorte nas mãos do basileu que estabelece as condições da rendição.
Cavaleiro Turco


Durante a noite de 18 para 19 de junho, soldados do exército bizantino, turcos na sua maioria desembarcam do lago Ascanios na cidade e em silêncio rendem a guarnição sem luta. Quando amanhece as cores dos estandartes azuis e ouro do imperador tremulam sobre as muralhas. Os francos são obrigados a renunciar ao assalto. No seu exílio forçado, Kilij Arslan recebe a boa nova, os dignatários do sultanato foram poupados e sua jovem esposa acompanhada do seu recém nascido é recebida com honras reais em Constantinopla, para desgosto dos francos.
A jovem mulher do sultão é filha de Tchaka, um famoso emir aventureiro que tinha sido aprisionado pelo povo rum quando efetuava incursões de saque na Ásia Menor. Impressionara seus captores com a facilidade que aprendeu o grego, que após alguns meses de aprendizado falava com perfeição. Tornara-se aos poucos próximo da corte imperial e era visitante assíduo do palácio a ponto de ser agraciado com um título de nobreza. Seu objetivo oculto era se tornar imperador de Bizâncio.
Assim que readquiriu sua liberdade foi se instalar num porto perto de Esmirna, no mar Egeu e com a ajuda de um armador grego, construiu verdadeira frota de naves de guerra: bergantins leves, naus a remo, dromons, birremes ou trirremes, ao todo uma centena de embarcações. Numa primeira etapa ocupou várias ilhas gregas e impôs sua autoridade ao longo da costa do Egeu. Assim formou seu império marítimo e proclamou-se basileu, organizando seu palácio em Esmirna aos moldes da corte imperial bizantina. Lançou então sua frota contra Constantinopla. Aléxis teve que fazer enormes esforços para afastar esta nova ameaça turca de sua fronteira.
Pelo fim do ano de 1092, momento da volta do exílio de Kilij Arslan, passou pela cabeça de Tchaka que o jovem sultão filho de Suleiman poderia ser um importante aliado em sua busca de tomar Constantinopla. Propôs-lhe então a mão da filha para firmar a aliança. A conquista de Constantinopla com suas muralhas inexpugnáveis parecia loucura para o jovem príncipe preocupado em afirmar seu poder sobre os emires e recuperar os domínios perdidos do pai. Convidou então o sogro para um banquete e tendo-o embebedado, apunhalou-o com as próprias mãos. O filho de Tchaka assumiu o poder em seu lugar, mas carecia do brilhantismo e da ambição do pai e, portanto contentou-se em gerir seu emirado marítimo. Até o dia em que apareceu a frota dos rum ao largo de Esmirna, trazendo a bordo sua própria irmã. Ela é a mensageira das más novas. Nicéia havia sido tomada pelo basileu e um poderoso exército franco apoiado pela frota imperial deverá atacar Esmirna caso ele não se exile com sua irmã em algum lugar da Anatólia, junto com o esposo dela.
Ele imediatamente aceita a proposta e o emirado de Esmirna deixa então de existir. No dia seguinte a queda de Nicéia, toda a costa do mar Egeu e boa parte das ilhas gregas escapam das mãos dos turcos. É só o começo para os rum e seus auxiliares francos.
Em seu refúgio nas montanhas Kilij Arslan prepara a resistência. Passa a recrutar tropas e proclama o Jihad, relata Ibn al-Qalanissi. O cronista de Damasco informa que todos os turcos foram conclamados e numerosas tropas responderam voluntariamente ao seu chamado.
Estabelece o sultão uma aliança com seu antigo inimigo, Danishmend que também se sente ameaçado pela presença dos francos e o avanço dos rum. Muçulmano fervoroso e excelente estrategista, ele prefere enfrentar o inimigo nas terras de seu vizinho antes que tentem invadir as suas e sem demora chega com milhares de cavaleiros ao acampamento do sultão. Preparam os planos da campanha satisfeitos ao perceber seu grande exército de cavaleiros que cobrem as colinas. Se preparam para enfrentar o inimigo assim que surgir a ocasião propícia.
Seus informantes infiltrados entre os inimigos dizem que o objetivo dos francos é alcançar a Palestina. Seu itinerário é conhecido, descer para sudeste, em direção a Konya, única cidade importante ainda nas mãos do sultão. Neste percurso conhecido estarão com seu flanco desguarnecido e poderão ser mais facilmente atacados. É perto de Doriléia, distante quatro dias de caminhada de Nicéia, onde a estrada penetra num vale pouco profundo que esperam organizar a emboscada. Escondidos pelas colinas seus cavaleiros poderão surpreender os ocidentais.


Nos últimos dias de junho de 1097, o sultão é informado que os francos acompanhados de uma pequena tropa de rum, deixaram Nicéia. Na madrugada de 1 de Julho, os inimigos despontam no horizonte. Cavaleiros e infantes avançam lentamente sem demonstrar desconfiança e aparentemente sem a preocupação de enviar batedores na vanguarda. São menos numerosos do que fora anunciado.
Kilij Arslan e Danishmend, o Sábio, acreditam que este combate lhes será favorável pois contam com a vantagem da surpresa, posição melhor e superioridade numérica no campo.
O sol acaba de aparecer atrás das colinas quando é ordenado o ataque. A tática dos cavaleiros turcos é tradicional e por meio século lhes garantiu superioridade militar no Oriente. Seu exército é composto de cavaleiros leves que manejam o arco composto, terrível arma de combate que sabem utilizar como ninguém. Sua estratégia é se aproximar das linhas do inimigo, disparar suas flechas mortíferas e depois se afastar a galope para dar espaço a uma nova linha de arqueiros. Até então os ataques sucessivos deixavam suas presas em agonia e quando o inimigo estava moralmente vencido partiam para o combate corpo a corpo, isto é, o desbaratamento dos sobreviventes.
Mas naquele dia algo não ocorre como o esperado. De cima do promontório, o sultão e seu estado maior observam com preocupação que seus métodos de batalha não causam o efeito usual sobre os adversários. Os francos são pouco ágeis, mas parecem não ter pressa em revidar aos repetidos ataques. Seus homens e até mesmo algumas montarias possuem espessas armaduras. Avançam lentamente protegidos das flechas. Após várias horas de combate, neste dia, os arqueiros com certeza fizeram muitas vítimas, principalmente entre os infantes mais desprotegidos. Mas o grosso de sua cavalaria permanece intacta e protegida. A estratégia do corpo a corpo, ao observar as pequenas escaramuças do combate, não deu vantagem para os turcos que foram mortos por estas verdadeiras fortalezas humanas. Fica incerto prolongar a fase preliminar do ataque já que o elemento surpresa foi perdido. A iniciativa do ataque pode acabar vindo do campo adversário.
Alguns emires já aconselham a retirada quando ao longe surge uma nuvem de poeira. É um novo exército franco que se aproxima. Aqueles contras os quais se está lutando desde a manhã representam apenas a vanguarda de ataque. O sultão não tem escolha, deve ordenar a retirada. Antes que possa dar a ordem informam-lhe que um terceiro exército franco está à vista atrás de suas linhas, sobre uma colina.
Desta vez o medo toma conta do estado maior. O sultão salta sobre seu cavalo e acompanhado de perto por Danishmend e seus emires galopa para as montanhas, deixando atrás de si o tesouro com que costuma pagar suas tropas quando em campanha. Utilizam seu único trunfo, a velocidade, sem que os pesados vencedores possam ir a seu encalço. Mas a maioria de suas forças é envolvida. Como relatou Ibn al-Qalanissi: “Os franj despedaçaram o exército turco. Eles mataram, saquearam e escravizaram muitos prisioneiros”.
Decidido a deixar passar a tempestade, como bom cavaleiro das estepes que era, Kilij Arslan desaparece na imensidão do planalto anatoliano. Ele esperará quatro anos para se vingar.
Enquanto isto, as notícias da debandada dos turcos se espalha pelo Oriente. “Quando se tornou conhecido este fato vergonhoso para o Islã, foi um verdadeiro pânico”, anotou o cronista de Damasco.
Os francos levaram ainda cem dias para cruzar a Anatólia, pois as péssimas condições do caminho, o calor escaldante do verão, impediam o rápido progresso das suas forças em uma jornada que poderia ser feita em trinta dias.
O medo e a ansiedade tomam conta das populações em seu caminho. Circulam rumores a respeito da chegada iminente destes temíveis cavaleiros. Sua demora em percorrer as longas distancias faz com que os otimistas pensem que eles talvez tenham retornado. Mas logo as ilusões são totalmente dissipadas. Informações cada vez mais precisam chegam e a partir de setembro pode-se acompanhar a progressão dos francos de aldeia em aldeia.
Em 21 de Outubro de 1097 estão a um dia de caminhada de Antióquia, a maior cidade da Síria. Uma pequena nuvem de poeira pode ser vista ao longe. A prudência ordena que as pesadas portas da cidade sejam imediatamente cerradas. O reclame dos mercadores cessa, as mulheres fazem preces, populares seguem para suas casas temendo o pior.
“Quando o senhor de Antióquia, Yaghi Siyan, foi informado de que os franj se aproximavam, decidiu então expulsá-los pois ele temeu um movimento de sedição por parte dos cristãos da cidade”.
Um historiador árabe Ibn al-Athir, mais de um século depois, relatará os eventos após o início da invasão franca, baseada nos testemunhos dos contemporâneos aos acontecimentos:
“No primeiro dia Yaghi Siyan ordenou aos muçulmanos que saíssem para limpar os fossos que cercam a cidade. No dia seguinte, para a mesma tarefa, só mandou cristãos. Ele os fez trabalhar até a noite e, quando quiseram entrar, ele os impediu, dizendo: ‘Antióquia é sua, mas é preciso que a deixem para mim até que eu tenha resolvido nosso problema com os franj’. Eles lhe perguntam então: ‘Quem protegerá nossos filhos e nossas mulheres?’, ao que o Emir respondeu: ‘Cuidarei eu deles no seu lugar e tempo’. Ele protegeu efetivamente as famílias dos expulsos e não permitiu que se tocasse num fio de cabelo de suas cabeças”.
As condições de defesa da cidade são inexpugnáveis. Só uma traição de dentro das muralhas poderia levar a sua destruição. A fortificação possuía doze mil metros de extensão e contava com menos de trezentos e sessenta torres em três níveis diferentes. Sua estrutura de alvenaria, construída em pedra talhada e tijolo, subia a leste o monte Habib-na-Najjar, cujo topo encimava uma cidadela de difícil acesso cercada de altos muros. A oeste segue o rio Oronte, que os sírio chamam al-Assi, “o rebelde”, pois as vezes parece correr ao contrário do Mediterrâneo no sentido do interior. Seu leito lambia na época as muralhas de Antioquia e constituía um obstáculo natural a qualquer investida de atacantes. Ao sul as fortificações encimavam um vale cujo declive era tão íngreme que servia como prolongamento da muralha. Isto tudo tornava seu sítio quase impossível pois os sitiados podiam manter contato com o exterior e receber abastecimento sem problemas.
Dentro das suas muralhas existiam plantações, pois antes da conquista muçulmana a cidade fazia parte do império romano e tinha em torno de duzentos mil habitantes. Em 1097 a cidade não conta mais de quarenta mil habitantes, e vários bairros que tinham sido despovoados foram transformados em campos e pomares. Apesar da perda de esplendor para os visitantes e invasores parece ainda uma cidade que impressiona. Mesmo vindos de metrópoles como Bagdá ou Constantinopla não se podia deixar de ficar deslumbrado pela cidade que se perdia de vista, com seus longos minaretes, igrejas e lojas sob as arcadas, com mansões luxuosas suspensas nas encostas arborizadas que subiam para a cidadela.
Era com a traição que Yaghi Siyan se preocupava, pois num ponto qualquer da grande muralha alguém poderia deixar aberta uma porta de uma torre ou desguarnecer uma ameia e facilitar o acesso dos atacantes. Isto já havia ocorrido no passado. Nesta época os cristãos ortodoxos se encontravam entre dois fogos. Por um lado eram vistos como inferiores pelos ocidentais e colaboradores dos sarracenos e por outro eram vistos com desconfiança pelos seus compatriotas muçulmanos que viam neles aliados naturais dos invasores. Para o emir, a expulsão dos cristãos é um ato extremo, mas que não se reveste de discriminação religiosa, pois eles são, querendo ou não, os membros de uma potência estrangeira inimiga, Constantinopla, à qual Antioquia por muito tempo se viu vinculada e ainda era objeto de cobiça pelo antigo império.

 De todas as cidades, Antioquia foi a ultima a cair sob o domínio turco seldjúcida. Em 1084, ela ainda estava vinculada a Constantinopla e com a chegada dos francos era fácil imaginar que os rum pretendessem através deles restaurar o império. Treze anos mais tarde o emir acreditava que esta cumplicidade poderia existir entre os cristãos locais. Com a expulsão deles passa a controlar pessoalmente os mantimentos da cidade e inspecionar as fortificações, punindo com severidade os negligentes. Espera ganhar tempo até que cheguem reforços. No verão havia mandado seu filho alertar os outros emires sobre o perigo que pairava sobre a cidade. Ibn al-Qalanissi nos informa que o filho de Yaghi Siyan relatou sobre a Guerra Santa, mas na época a Jihad nada mais era que um slogan a ser utilizado para satisfazer os interesses dos emires ou salvá-los de dificuldades.
Neste outono de 1097 nenhum outro dirigente se sente ameaçado pela presença dos francos, com exceção do próprio Yaghi Siyan. Se os mercenários do basileu pretendem retomar Antioquia nada é mais normal pois a cidade sempre esteve sobre a esfera de influência rum. Acreditavam que os bizantinos não iriam além. E a dificuldade do emir que sempre promoveu a discórdia, derrubou alianças e provocou ciúmes entre eles, não é um mal obrigatoriamente.
Ele no fundo sabia que pouco podia esperar dos vizinhos, que eles protelarão sua ajuda ao máximo e obrigarão que clame por socorro para que pague suas intrigas e traições do passado. Contudo imagina que não chegarão ao ponto de entregá-lo de mão beijada aos mercenários do basileu.
Quando os francos chegaram na região a vida política da Síria está convulsionada pela “Guerra dos Dois Irmãos”, estranhos personagens que parecem saídos de um conto de estórias. Eles são: Redwan, rei de Alepo, e seu irmão menor Dukak, rei de Damasco, que se odeiam tanto que nem uma grave ameaça externa poderá reconciliá-los. Em 1097, Redwan tem pouco mais de vinte anos, mas segundo os cronistas, já é cercado por uma aura de mistério. Encontrava-se segundo contam sob o domínio de um “médico-astrólogo”, membro da seita dos Assassinos que estava recém sendo formada. Ele é acusado pelos inimigos de utilizar os préstimos desses fanáticos para eliminar seus opostos através de assassinatos, traições e feitiçaria. Redwan, homem pequeno, magro, o olhar severo e ás vezes assustado, provoca em todos desconfiança, mas é no seio da própria família que ele é mais odiado. Quando assumiu o trono mandou estrangular dois de seus irmãos mais jovens temendo futuras disputas. Um terceiro escapou por pouco das mãos de seus escravos. Esse sobrevivente é Dukak que tem boas razões para odiar o irmão. Após sua fuga, ele se refugiou em Damasco, onde foi aclamado como rei pela guarnição. Dukak era inconstante, influenciável, colérico, de saúde frágil temia e vivia obcecado pela idéia de ser assassinato pelo irmão. Estar envolvido com estes dois príncipes semiloucos não é tarefa fácil. Alepo, uma das cidades mais antigas do mundo encontrava-se a menos de três dias de viagem de Antioquia. Redwan então era o vizinho mais próximo de Yaghi Siyan. Dois anos antes da chegada dos francos Yaghi Siyan deu sua filha em casamento para Redwan, mas logo compreendeu que este perigoso genro cobiçava seu poder e começou a temer pela própria vida. Assim como Dukak estava obcecado pela seita dos Assassinos. O perigo comum aproximou os dois homens e é para o rei de Damasco que Yaghi Siyan se volta para pedir auxilio contra os francos que se aproximam.
Mas Dukak tem outros planos, pois imagina ser perigoso se aproximar de Antioquia e colocar seu exército próximo de Alepo, permitindo que seu irmão possa atacá-lo pela retaguarda. Yaghi Siyn envia seu filho Chams ad-Dawla – “O Sol do Estado” - para persuadir seu aliado. Este jovem ardente, apaixonado e que nunca desiste acedia Dukak e seus conselheiros usando de adulações e ameaças veladas para convencê-los para enviar auxilio ao pai. Só em dezembro de 1097, dois meses após o cerco da cidade, que o rei de Damasco aceitou de mau grado seguir para o norte com seu exército. Conforme avançava com suas forças mais tenso ficava o jovem rei. Em 31 de dezembro, com dois terços do trajeto já percorrido, ele se depara com uma pequena tropa franca que saqueava as redondezas. Apesar da nítida superioridade numérica e ter conseguido cercar o inimigo, Dukak vacila e não ordena o ataque perdendo a vantagem da iniciativa. Isso deixa seus estarrecidos inimigos por momentos sem ação até perceberem com que facilidade podem desvencilhar-se do inimigo. Quando o dia termina não há vencedor ou vencido, mas muitos damascenos jazem no campo de batalha sem vida. Isto bastou para desencorajar o rei que imediatamente ordena a retirada para Damasco.
Ao chegar a noticia em Antioquia aumenta o desespero dos defensores. Mas nos primeiros dias de 1098 é no acampamento dos sitiantes que reina a confusão. Os espiões de Yaghi Siyan, cristãos que foram expulsos e procuravam proteger as famílias na cidade ou desafetos dos rum, infiltrados entre os inimigos informavam que as provisões dos atacantes eram escassas. Contavam-se centenas de mortos e a maior parte das montarias tinham sido abatidas para saciar os combatentes. A expedição que se chocou com o exército de Damasco justamente tinha ido à busca de carneiros, algumas cabras e pilhar os celeiros dos camponeses da região. A moral dos invasores estava cada dia mais minada por várias calamidades. Uma chuva caia sem cessar, justificando o apelido dado pelos sírios a Antioquia de “mijona”. O acampamento dos francos estava cheio de lama. A terra não parava de sofrer pequenos tremores, fenômeno que conviviam seus habitantes sem problemas , mas que para os invasores era um sinal da ira divina. Ouvia-se das muralhas o grande rumor das preces, quando os atacantes se reuniam para invocar a bondade divina. Acreditavam, com suas consciências perturbadas, terem incorrido na punição de Deus. Chegaram a expulsar as prostitutas do bivaque, fechar as tabernas e proibir os jogos de azar entre as soldadesca para acalmar a cólera do Senhor. As deserções acontecem todos os dias, inclusive entre os nobres.
Estas notícias servem de alívio para os defensores que quando podem fazem incursões fora das muralhas para enfrentar o inimigo no corpo a corpo. Como escreveu Ibn al-Qalanissi, “Yaghi Siyan manifestou uma coragem, uma sabedoria e uma firmeza admiráveis”. Acrescenta ainda levado pelo entusiasmo: “A maioria dos franj pereceu. Se eles tivessem permanecido tão numerosos como quando chegaram, teriam ocupado todo o Islã”. Apesar de exagerado o comentário rende uma merecida homenagem ao povo desta cidade e sua resistência heróica, que conseguiu sozinha suportar o assedio e a invasão estrangeira durante longos meses.
Em janeiro de 1098, em função da covardia de Dukak, o emir foi obrigado a contragosto a se voltar para Redwan. Novamente é seu filho que recebeu a incumbência de humilhar-se ao rei de Alepo e exortá-lo pelos laços de parentesco e em nome do Islã que socorra a cidade sitiada. O jovem suportou todos os sarcasmos e sabia bem que seu cunhado não era sensível a esse tipo de argumentos de ordem sentimental. Se pudesse deixaria Yaghi Siyan e sua cidade a própria sorte. Mas os acontecimentos recentes não estavam contribuindo para que mantivesse sua neutralidade. A falta de víveres do exército invasor obrigava aos atacantes em promover saques nas redondezas de Alepo e então Redwan pela primeira vez sentiu a pressão pesar sobre seu próprio território. Resolveu então mobilizar suas forças. Chams triunfou em seu intento e avisou seu pai sobre a data da chegada do exército alepino e sugeriu a estratégia de uma incursão externa, em massa, da guarnição da cidade para que os atacantes se vissem cercados de ambos os lados.
Novamente as esperanças voltavam para os sitiados pelo inesperado auxilio de onde menos se esperava o socorro. Todos os habitantes de Antioquia, ansiosos se perguntavam se seria o fim dessa batalha que já durava cem dias.
A 9 de fevereiro de 1098, quando começava a tarde, os guardiões postados na cidadela avistaram a aproximação do exército salvador. Seus batalhões contam vários milhares de cavaleiros, enquanto os ocidentais não contam mais que 700 ou 800 perfilados em linha, tais foram as calamidades que se abateram sobre os cavaleiros e suas montarias. Os sitiados esperavam o imediato início das hostilidades, mas as tropas engalanadas de Rewan pararam e começaram a montar suas tendas. As ordens de combate ficaram adiadas para o dia seguinte. A estratégia dos sitiados foi organizada com precisão. Yaghi Siyan confiava em seus homens que tantos esforços já tinham efetuado até ali.
Redwan aterrorizado pelo que se contava sobre as táticas de combate superiores dos francos, e apesar da sua inquestionável superioridade numérica, buscou uma posição que acreditava ser defensiva para seus exércitos. Em vez de desdobrar suas forças, ele obrigou seu acantonamento numa estreita faixa de terra entre o Oronte e o lago de Antioquia. Quando chegou a madrugada, os francos, que não tinham alternativa , atacaram o acampamento e pegaram os alepinos em desvantagem de posição, de repente cercados entre os dois acidentes naturais, sem espaço para suas táticas de arqueiros montados. As montarias empinavam e espezinhavam os cavaleiros caídos, a desordem se instalava no campo alepino. Suas tradicionais estratégias de combate não funcionavam em um espaço exíguo. O corpo a corpo se iniciou dando clara vantagem aos cavaleiros protegidos por pesadas armaduras. Seguiu-se uma verdadeira carnificina. O rei e seu exército tentavam escapar do cerco em desordem absoluta.
Já próximo às muralhas da cidade, desde o início do dia, o combate seguiu uma trajetória diferente. Com a saída maciça das forças defensoras, os sitiantes se viram obrigados a recuar. Os combatentes de Yaghi Siyn se revelaram ferozes e estavam em excelente posição. Pouco antes do meio dia, quando começavam a investir sobre o acampamento dos francos receberam a notícia da debandada do exército alepino. Desolado o emir ordenou a retirada para dentro das muralhas. Quando recém se recuperavam do insucesso da surtida, os defensores ouviram as gargalhadas e apupos dos sitiantes enquanto terríveis troféus conquistados pelos cavaleiros ocidentais, as cabeças mutiladas dos alepinos foram jogadas pelas catapultas sobre a atemorizada cidade. Um silencio mortal tomou conta da urbe.
Yaghi Siyn sentiu o cerco fechar-se sobre sua cidade. Após a debandada dos dois príncipes mais próximos nada mais restava esperar da Síria. Restava-lhe um único recurso: o governador de Mossul, o poderoso emir Karbuka, que tinha a desvantagem de estar a mais de duas semanas de caminhada de Antioquia. Mossul é a capital da Mesopotâmia, região fértil conhecida pelos seus frutos suculentos e ao tecido fino que ela exportava a musselina. Quando da chegada dos francos já se explorava uma outra riqueza que o viajante Ibn Jobair descreveu deslumbrado dezenas de anos mais tarde: as fontes de nafta. O precioso líquido marrom que fará a fortuna e trará a cobiça de novas “cruzadas” para esta parte do mundo islâmico.
“Nós atravessamos uma localidade chamada al-Qayyara (a betumeira), próxima ao Tigre. À direita do caminho que leva a Mossul, há uma depressão de terra, negra com se estivesse sob uma nuvem. Ali, Deus fez jorrar fontes grandes e pequenas que dão betume. Às vezes, uma delas lança pedaços de betume, como uma ebulição. São construídos tanques nos quais ele é cultivado. Em trono dessas fontes, há um lago negro em cuja superfície bóia uma espuma negra e leve, que ele joga sobre as bordas e que, ali se coagula sob a forma betuminosa. Esse produto tem a aparência de uma lama muito viscosa, lisa, brilhante, exalando um forte odor. Pudemos assim observar com nossos próprios olhos uma maravilha de que havíamos ouvido falar e cuja descrição pareceu-nos muito extraordinária. Não longe dali, nas margens do Tigre, há uma outra grande fonte cuja fumaça avistamos de longe. Dizem-nos que nela se ateia fogo quando se quer tirar betume. A chama consome os elementos líquidos. O betume é então cortado em pedaços e transportado. Ele é conhecido em todos os países até a Síria, Acre e em todas as regiões costeiras. Allah cria o que quer. Que Ele seja louvado!”.
Os que moravam em Mossul atribuíam ao líquido preto virtudes terapêuticas e nele mergulhavam quando estavam doentes. O betume servia ainda para calafetação na construção civil e para cimentar tijolos dando um aspecto de mármore preto polido nos muros dos Hamãs. Mas seu uso militar, como combustível em armas incendiárias, era o que trazia sua maior utilidade.
A posição estratégica de Mossul desempenhava no início da invasão franca, como ainda desempenha, papel importantíssimo. Seus governadores influíam diretamente nos assuntos da Síria e para o seu governante da época, o emir Karbuka era a oportunidade para estender a influência de seu poder sobre a região ameaçada. Sem maiores hesitações ele prometeu reunir um poderoso exército islâmico para combater os infiéis. Novas esperanças acudiram os moradores de Antioquia.
Esse personagem era um antigo escravo seldjúcida, que para os emires não representava nada de degradante. Os príncipes turcos tinham como costume designar seus escravos mais fiéis e mais dotados para funções e postos da maior responsabilidade. Os chefes militares quase sempre eram escravos, chamados mamelucos, sua autoridade era tal que nem precisavam ser oficialmente alforriados. Antes que estivesse concluída a ocupação franca, todo o Oriente muçulmano passou a ser governado por sultões mamelucos. Já em 1098, os mais influentes governantes eram escravos ou filhos de escravos.
Karbuka era um dos mais poderoso comandantes escravos. Oficial autoritário, de barba grisalha, possuía o título turco de atabeg, que em tradução literal quer dizer “pai do príncipe”. Neste império cercado de traições, combates e assassinatos, os membros da família real nem sempre sobreviviam e deixavam muitas vezes herdeiros entre os subordinados. Eram na maioria das vezes tutores, pais adotivos dos legítimos príncipes, pois desposavam as mães viúvas deles. Eram, portanto os verdadeiros detentores do poder e muitas vezes transmitiam aos filhos legítimos o poder. O herdeiro do trono então passava a uma condição de refém, uma marionete nas mãos do “tutor”. Mas perante o público mantinham as aparências e seus exércitos eram comandados por crianças de três ou quatro anos que “outorgaram” o poder ao atabeg.
 Exatamente foi o que aconteceu nos últimos dias de 1098, quando cerca de 30 mil comandados reúnem-se na saída de Mossul. Foi lido pelo oficial do dia as ordens de marcharem contra os infiéis, neste jihad, sob as ordens de uma criança de colo que “delegou” o comando das tropas para o atabeg.
Segundo um historiador da época, Ibn al-Athir, ao saber da notícia do deslocamento de tropas de Mossul os francos foram tomados de pânico, pois estavam enfraquecidos e suas provisões eram mínimas. Os defensores da cidade por outro lado tomaram alento. Mais uma vez prepararam uma saída assim que o socorro chegasse. Mais uma vez Yaghi Siyan exortou os seus para que tivessem fé e inspecionou suas defesas e depósitos de alimentos para calcular sua capacidade de continuar resistindo ao assedio.
As condições de defesa vinham piorando sensivelmente. O bloqueio da cidade estava mais rigoroso, o reabastecimento de víveres mais precário. Seus informantes tornaram-se poucos no acampamento e rareavam as notícias sobre o inimigo. Aparentemente os francos perceberam que tudo o que era discutido no acampamento chegava ao conhecimento de Yaghi Siyan. Resolveram tomar severas providências. Os agentes remanescentes do emir viram matarem um homem, assá-lo no espeto e comerem sua carne, aos gritos de que fariam o mesmo com todo espião apanhado. Aterrorizados, na maioria fugiram e Yaghi Siyan já não soube muito mais a respeito dos movimentos dos inimigos. Como bom militar pressentiu uma situação inquietante.
Karbuka estava preocupado. Antes de partir de Mossul foi informado que uma tropa de francos ocupara Edessa, a ar-Ruha dos árabes, grande cidade armênia que estava situada ao norte da estrada que vai de Mossul a Antioquia. O atabeg não podia deixar de pensar que ao se aproximar da cidade sitiada teria seus inimigos a retaguarda. Não estaria arriscando suas tropas demais? No início de maio ele avisou seus principais emires, marchariam primeiro para o norte para estacionar forças em Edessa e depois seguiriam para Antioquia sem arriscar sua posição lá. Alguns protestam, lembraram a situação angustiosa de Antioquia. Karbuka os faz calar e insiste nas novas ordens. Seu exército então tomou novo rumo em direção aos atalhos montanhosos que levavam à Edessa.
A situação da cidade armênia era de fato preocupante. Os raros muçulmanos que conseguiram fugir trouxeram notícias dos acontecimentos. Um chefe branco, chamado Baudoin, chegou com várias centenas de cavaleiros e mais de dois mil infantes. Thoros, um velho príncipe armênio apelou ao mercenário que viesse reforçar a guarnição de sua cidade contra os constantes ataques dos guerreiros turcos. Logo de apenas mercenário ele exigiu ser designado como herdeiro legitimo de Thoros. Homem idoso e sem filhos viu-se obrigado a aceitar as exigências do franco. Uma cerimônia então foi encenada dentro da tradição da casa armênia.
Thoros que trajava uma veste branca muito larga, e Baudoin, nu até a cintura, veio introduzir-se debaixo da roupa de seu “pai” a assim colou seu corpo ao dele. Depois foi a vez da “mãe”, ou seja, a mulher de Thoros, contra a qual, entre o vestido e a pele nua, Baudoin veio esgueirar-se, para diversão da assistência. Esse ritual, apropriado para crianças era um tanto estranho e impróprio quando o “filho” era um adulto grande e peludo.
As noticias causavam hilaridade entre os soldados muçulmanos, mas estremeciam ao lembrar seu final trágico. Após alguns dias da cerimônia “pai e mãe” são espancados pela multidão instigada pelo “filho”, que assistiu suas mortes com prazer, sem transparecer nenhuma repulsa. Logo proclamou-se conde de Edessa e colocou seus companheiros de armas em todos os postos importantes na administração e guarnição da cidade.
Karbuka organizou o sítio da cidade a contragosto de seus emires. Eles sabiam que os três mil soldados francos não sairiam para dar combate a forças com notável superioridade numérica, em compensação suas forças eram mais que suficientes para impedir a tomada da cidade e o cerco poderia durar meses. Enquanto isso Antioquia abandonada a própria sorte poderia não suportar mais o assedio que já durava meses. Após três semanas de cerco infrutífero sob os muros de Edessa, o atabeg acaba finalmente reconhecendo seu erro e ordena que suas forças marchem a passo acelerado para Antioquia.
Em Antioquia a esperança da chegada de socorro dos primeiros dias de maio deu lugar ao desespero e a confusão. Não se compreendia porque as tropas de Mossul demoravam tanto a chegar. A 2 de junho, um pouco antes do pôr do sol as sentinelas avisam que os francos reuniram suas forças e se dirigiram para o nordeste. Os emires imaginam que o atabeg se aproximava com suas forças e os francos foram ao seu encontro. A cidade respirava novamente. Amanhã Karbuka libertará a cidade e o pesadelo irá acabar pensa a população, exausta mas confiante.
Pelas quatro horas da manhã ao sul da cidade uma corda roçou sobre a superfície pedregosa da muralha. Um homem do alto de uma torre fez sinais com a mão. Passou toda a noite de vigília para cometer sua traição. Chamava-se Firuz , conhecido fabricante de couraças encarregado da defesa das torres, dirá Ibn al-Athir. Muçulmano de origem armênia, homem que até há pouco tinha sido de confiança de Yaghi Siyan e compartilhava do convívio de sua família. Um pouco antes de sua traição havia sido multado por ter praticado negócios ilícitos e resolveu buscar vingança contra o emir. Entrou em contato com os sitiantes e disse-lhes que controlava o acesso de uma janela que se abria sobre o vale e estava disposto a liberar a entrada dos inimigos. Para garantir sua lealdade enviou-lhes o filho com refém. Por sua parte foi-lhe prometido ouro e terras em paga pelo serviço. A ação ocorreu na madrugada do dia 3 de junho. Na véspera para enganar a vigilância da guarnição fazem o movimento de retirada.
“Quando o acordo foi concluído entre os franj e esse maldito fabricante de couraças”, contará Ibn al-Athir, “eles treparam em direção a esta pequena janela, abriram-na e fizeram subir muitos homens por meio de cordas. Depois de passar mais de 500 fizeram soar o clarim na madrugada, hora em que os defensores encontravam-se esgotados depois de uma longa vigília. Yaghi Siyan levantou-se e perguntou o que estava acontecendo. Responderam-lhe que o som do clarim vinha da cidadela que certamente havia sido tomada”.
Os sons vieram da torre das Duas Irmãs. Mas Yaghi Siyan, na certa, esgotado pelos muitos meses de apreensão, não se deu ao trabalho de verificar. Acreditou estar tudo perdido e cedendo ao pavor, ordenou que abrissem uma das saídas da cidade e acompanhado por alguns guardas, o instinto de guerreiro das estepes falou mais alto e foge cavalgando em direção incerta. Desvairado cavalgou durante horas, incapaz de recuperar-se. Após 200 dias de resistência, o senhor de Antioquia desabou. A sua fraqueza censurada pelo historiador não pode ser evocada sem emoção:
“Ele pôs-se a chorar por ter abandonado a família, os filhos e os muçulmanos e, perdido em sua dor, caiu do cavalo sem consciência. Seus companheiros tentaram levantá-lo, mas ele não se sustentava mais em pé. Estava morrendo. Deixaram-no e se afastaram. Um lenhador armênio que passava por ali o reconheceu. Cortou-lhe a cabeça e levou-a para os franj em Antioquia”.
O incêndio se propagou pela cidade e o sangue correu pelas suas calçadas. Homens, mulheres e crianças tentaram fugir pelas ruelas lamacentas, mas os ocidentais os alcançavam sem esforço e degolavam seus pescoços imediatamente. Pouco a pouco vão silenciando os gritos das vitimas imoladas, logo o som das cantorias desafinadas dos saqueadores já embriagados se fizeram ouvir. Ao meio dia o luto envolveu a antes esplendorosa cidade.
Em meio aos acontecimentos só Chams ad Dawla manteve a cabeça fria e com alguns combatentes se entrincheirou na cidadela que dominava a cidade. Os francos tentaram várias vezes desalojá-lo, mas a cada surtida são rechaçados com muitas perdas. Bohémond, o mais importante dos chefes francos, um gigante de cabelos louros longos, foi ferido num desses ataques. Como estratagema de disuassão enviou mensagem ao filho do emir para que capitulasse e lhe seria dado salvo conduto para fora das muralhas. O jovem recusou com altivez a oferta. Antioquia é sua herança e por ela lutará até o fim. Não lhe faltavam as provisões nem flechas afiadas para serem lançadas contra os atacantes. Coroando o monte Habib-na-Najjar sua posição era inconquistável, suas muralhas não podiam ser vencidas sem a perda de muitas vidas pelos atacantes.
Os cavaleiros desistiram de atacar a cidadela, se contentando em estabelecer um cordão de segurança ao seu redor e três dias após a queda de Antioquia ouviram-se os gritos de alegria de seus ocupantes, pois avistaram as forças de Karbuka que despontavam no horizonte. Os gritos de Allah Akbar chegam até a cidade num rumor ininterrupto. Os francos de sitiantes passaram então a condição de sitiados.
Chams ficou feliz mas ainda não entendeu a razão da tanta demora por parte dos muçulmanos que permitiram o massacre dos habitantes da cidade. Ao tomar contato com os emires da expedição de socorro foi informado sobre os males que Karbuka, o comandante era responsável, sua arrogância, incapacidade de comando e covardia.
Uma verdadeira conspiração encabeçada pelo rei Dukak, de Damasco, que se unira às tropas de Mossul quando estas atravessaram a Síria. O exército dos muçulmanos era uma força heterogênea onde prevaleciam os interesses pessoais dos príncipes. As ambições territoriais do atabeg não eram segredo. Dukak não levou tempo para convencer seus pares do perigo que representava Karbuka. Caso viesse a sair vitorioso nenhuma cidade da Síria estaria livre do seu poder. Por outro lado, se vencido, o perigo que pesava sobre as cidades Sírias seria afastado. A ameaça dos francos era então um mal menor. Que os rum restabeleçam seu poder com a ajuda de seus mercenários e recuperem sua cidade. Continuava impensável que os francos pretendessem estabelecer seus feudos na Síria. Como dirá Ibn al-Athir, “o atabeg indispôs de tal forma os muçulmanos com sua pretensão que eles resolveram traí-lo no momento mais decisivo da batalha”.
Na manhã seguinte a sua chegada Karbuka convoca Chams para comunicar-lhe que o comando da cidadela lhe foi tirado. O filho de Yaghi Siyan ficou indignado após todos os esforços, toda a bravura que demonstrou contra os cavaleiros francos. O atabeg foi irredutível. Ele é o chefe maior e exigiu ser obedecido.
Chams percebeu então que todo seu esforço tinha sido em vão. Seu consolo foi saber que a situação do inimigo estava pior. Segundo Ibn al-Athir, “após ter conquistado Antioquia, os franj permaneceram doze dias sem comer nada. Os nobres se alimentavam de suas montarias, e os pobres, de restos e ervas. Os franj conheceram outras fomes nos últimos meses, mas sabiam que estavam livres para saquear os arredores e trazer algumas provisões. E as reservas de Yaghi Siyan, com as quais contavam, estão praticamente esgotadas. Aumenta o número de deserções”.
Entre esses dois exércitos enfraquecidos, uns pela fome e outros pelas desavenças de poder, que se enfrentavam em junho de 1098 nas cercanias de Antioquia, o Céu parecia duvidar a quem proteger, quando então um acontecimento extraordinário vem mudar o rumo dos acontecimentos. Os ocidentais envolvidos pela exaltação mística que só a fome pode trazer acreditavam que tinha acontecido um milagre. Conta Ibn al-Athir no seu relato onde não há espaço para o maravilhoso.
“Entre os franj, havia Bohémond, o chefe de todos, mas havia também um monge extremamente astuto que lhes garantiu uma lança do Messias, que a paz esteja sobre ele, estava enterrada no Kussyan, um grande edifício de Antioquia. Ele lhes disse: ‘Se vocês a acharem, vencerão; senão é morte certa’. Anteriormente ele enterrara uma lança no solo do Kussyan e apagara todos os rastros. Ordenou-lhes que jejuassem e fizessem penitencia por três dias; e depois, ele os fez entrar no edifício com seus valetes e operários, que cavaram em todos os lugares e acharam a lança. Então o monge exclamou: ‘Rejubilem-se, pois a vitória é certa!’. No quinto dia, saíram em pequenos grupos de cinco ou seis. Os muçulmanos disseram a Karbuka: ‘Deveríamos nos colocar perto da porta e abater todos aqueles que saem. É fácil, pois estão dispersos!’. Mas ele respondeu: ‘Não! Esperem que estejam todos do lado de fora e nós mataremos até o ultimo!’.”
Sua ordem não é de todo absurda. Com tropas que não podia confiar comandadas por emires que aguardam qualquer momento para proceder sua defecção ele não podia manter o sitio por muito tempo. Se os francos estavam partindo para a iniciativa não se devia assustá-los com um ataque antes do tempo. O que faltou Karbuka prever foi que sua aparente hesitação era o que seus inimigos internos queriam para botar tudo a perder. Enquanto os francos continuavam impunemente suas manobras, aos poucos as deserções começam do lado muçulmano. Acusavam-se uns e outros de covardia e traição. Sentindo perder o controle das suas tropas Karbuka solicitou uma trégua ao inimigo. Foi a gota que faltava para ficar totalmente desmoralizado perante os seus. Assim os francos com sua segurança reforçada, sem nem mesmo responder aos seus apelos investem ao ataque, obrigando-o a lançar sobre eles uma fileira de cavaleiros arqueiros. Neste momento Dukak e outros emires se afastaram tranquilamente com suas tropas. Ao ver a sorte mudar rapidamente o atabeg ordena a retirada que logo degenera em debandada total.
O poderoso exército muçulmano desmanchou-se sem ter desferido sequer um golpe contra o inimigo. O historiador de Mossul não exagera: “Os próprios franj temiam um ardil, pois ainda não acontecera um combate que exigisse tal fuga. Assim eles preferiram renunciar a perseguir os muçulmanos. “ Kaburka retornou então são e salvo para Mossul com o que restou de suas tropas. Todas suas ambições de poder se esvaíram para sempre perante Antioquia. A cidade antes esplendorosa passou para as mãos dos francos que ali iriam permanecer ainda por muito tempo.
Daqui para diante não existiu mais nenhuma força capaz de deter o avanço dos invasores.


 Nesta altura da narrativa chegamos ao ponto onde ocorre uma intersecção com o assunto central desta obra.
Nos meses que marcaram o início de 1098, os habitantes de Maara viviam pacificamente ao abrigo de sua muralha circular. Seus vinhedos, campos de oliveiras e pés de figos lhes garantiam razoável prosperidade. Os negócios da cidade eram mantidos pelos seus notáveis que viviam em sua modesta frugalidade sob a autoridade nominal de Redwan de Alepo. Por aqueles dias estavam preocupados com a batalha de Antioquia que ocorria a três dias de caminhada a noroeste de sua comunidade. Após a vitória dos francos alguns vilarejos na redondeza foram saqueados e até então Maara havia sido poupada. Algumas famílias mais prudentes buscaram refugio em localidades mais seguras como Alepo, Homs ou Hama. Perto do final de novembro do mesmo ano, seus temores se viram confirmados. Milhares de guerreiros francos cercavam a cidade. Alguns cidadãos conseguiram escapar ao cerco mas a grande maioria ficou confinada atrás das muralhas. Maara não possuía guarnição mas mantinha uma milícia urbana que foi engrossada às pressas por jovens inexperientes e sem experiência militar alguma. Durante duas semanas mantém corajosa resistência contra os temíveis cavaleiros bárbaros. Até colméias de abelha arrojaram das muralhas contra os atacantes.
“Ao vê-los tão tenazes, contou Ibn al-Athir, os franj construíram uma torre de madeira que atingia a altura da muralha. Alguns muçulmanos, tomados de pavor e desmoralizados, pensaram que poderiam se defender melhor protegendo-se nos edifícios mais altos da cidade. Deixaram então os muros, desguarnecendo assim seus postos. Outros seguiram seu exemplo e um outro ponto da muralha foi abandonado. Logo, a muralha toda ficou sem defensores. Os franj subiram por meio de escadas, e quando os muçulmanos os viram no topo da muralha perderam toda a sua coragem”.
Quando desceu a noite de 11 de dezembro os francos ainda não ousavam penetrar na cidade. Os notáveis de Maara, amendrontados, entraram em contato com Bohémond, para chegar a um acordo. O novo senhor de Antioquia comandava pessoalmente os atacantes. O chefe franco deu garantias de vida se os combates cessassem imediatamente. Segundo o acordo deixariam para trás algumas construções. Acreditando nas palavras do francos as famílias se reuniram em suas casas e porões da cidade ainda agarradas a esperança em relação aos sentimentos nobres do cavaleiro vencedor.
Na alvorada os francos se abateram sobre a cidade e começou a carnificina. Durante três dias mataram mais de cem mil pessoas pela espada, e fizeram inúmeros prisioneiros conta Ibn al-Athir. Números que hoje são considerados excessivos para alguns historiadores. Estimou-se em menos de dez mil as vitimas. Mas é seu destino nas mãos dos francos que causou horror indescritível em todo o Oriente.
“Em Maara, os nossos faziam ferver os adultos em caldeira, fincavam as crianças em espetos e as devoravam grelhadas”. Esse relato foi confessado pelo cronista franco Raoul de Caen. Nas localidades próximas a Maara ficaram as lembranças do que viram e ouviram naqueles funestos dias. Poetas locais propagaram e a tradição oral fixou nos espíritos daqueles povos uma imagem difícil de ser esquecida. Um cronista Ussama Ibn Munqidh, nascido três anos antes desses acontecimentos na cidade vizinha de Chayzar, escreveu um dia:
“Todos aqueles que se informaram dos franj viram neles animais que possuem a superioridade da coragem e do ardor no combate, mas nenhuma outra, assim como os animais tem a superioridade da força e da agressão”.
Uma mistura de medo e desprezo se apossou dos árabes na época das invasões, pois possuíam uma cultura superior em função dos anos anteriores de expansão territorial e econômica. No período de conforto e estabilidade que se seguiu acabaram perdendo sua combatividade perante seus agressores, homens bestializados pelo fanatismo religioso e pela fome permanente da Europa medieval. Jamais os turcos os deixarão esquecer o canibalismo dos ocidentais que será fartamente registrado em sua literatura épica. Invariavelmente os francos vão ser retratados como antropófagos.
Os chefes dos francos afirmarão no ano seguinte numa carta oficial dirigida ao papa: “Uma terrível fome assolou o exército de Maara e o colocou na cruel necessidade de se alimentar dos cadáveres dos sarracenos”. Mas esta é uma explicação fácil demais. Naquele inverno os francos se comportaram de forma que só a fome não pode explicar. Bandos fanatizados se espalharam pelos acampamentos clamando bem alto que queriam devorar a carne dos sarracenos. Reuniam-se à noite em volta às fogueiras onde preparavam suas presas em regozijo. A esse respeito temos a palavra do cronista franco Albert de Aix, que participou pessoalmente da batalha de Maara, que descreveu o horror: “Os nosso não repugnavam em comer não só a carne dos turcos e dos sarracenos mortos como também a carne dos cães!”.
Todos os que se encontravam na rota da Cidade Santa procuraram precaver-se do flagelo que se abateu sobre a região. Os mais pobres preferiram a companhia de leões, lobos, ursos e hienas e buscaram esconderijo nos bosques vizinhos. Outros procuraram refúgio na fortaleza mais próxima e os com mais meios fugiram para o interior do país.
O suplicio da cidade de Abul-Ala só teve fim a 13 de janeiro de 1099, quando centenas de francos armados de tochas lavraram as ruas pondo fogo casa por casa. Sua muralha foi demolida pedra por pedra. A resistência maior na Síria então acabou, as populações estavam paralisadas pelo terror. Quando os invasores, deixando atrás de si apenas ruínas fumegantes, retomaram sua caminhada para o sul, os emires sírios se apressaram em lhes enviar emissários com ricos presentes para assegurarem a boa vontade dos estrangeiros e proporcionar toda a ajuda que estavam a necessitar para que suas forças fossem para bem longe dali.
Logo no mesmo ano, em junho, Jerusalém foi tomada pelos francos. Ibn al-Athir informou: “A população da Cidade Santa foi morta pela espada e os franj massacraram os muçulmanos durante uma semana. Na mesquita de al-Aqsa, eles mataram mais de 70 mil pessoas”, E Ibn al-Qalanissi, acrescentou sem precisar números em seu relato: “Muitas pessoas foram mortas. Os judeus foram reunidos na sua sinagoga e os franj os queimaram vivos. Eles destruíram também os monumentos dos santos e o túmulo de Abraão - que a paz esteja com ele!”.
O que mais causou espanto para os defensores muçulmanos da Cidade Santa, foi que antes de iniciarem os combates com a cidade cercada, padres realizaram uma procissão em volta das muralhas, fato inusitado e espantoso, impensável até mesmo para o mais devoto crente do Islã. Quando tomaram os lugares santos do cristianismo proibiram os ortodoxos, maronitas, coptas e armênios de rezarem missa nos locais como era tradição até então. Para encontrar a relíquia da cruz do Cristo que havia sido escondida pelos ortodoxos torturaram os padres até atingir seu intento.
O autor Amin Maalouf que colheu estes relatos na obra homônima a este capítulo que foram aqui resumidos foi bastante discreto e comedido em suas observações. Nas notas que incluiu ao final da obra podemos observar alguns detalhes importantes que devem ser destacados.
Os relatos sobre canibalismo cometidos pelos exércitos francos em Maara, em 1098, são numerosos e concordantes nas próprias crônicas francas da época. São encontradas até o séc. XX, detalhados por escritores europeus em diversas obras. No séc. XX, em compensação, esses relatos, em razão da criação de uma idéia de missão civilizadora cristã dos cruzados foram deliberadamente ocultados nas pesquisas dos historiadores ocidentais em obras sobre o assunto.
Ib al Athir foi natural de Mossul e viveu entre 1160 e 1223 servindo como auxiliar na administração do reino seljúcida. Nascido em Damasco Ibn al-Qalanissi viveu entre 1073 e 1160 sendo portanto contemporâneo aos acontecimentos por ele relatados. Ocupou altas funções administrativas na sua cidade. O texto original de sua obra existe apenas em uma edição francesa de 1908.
A origem dos seljúcidas informa o autor, ainda é cercada de mistério. O epônimo do clã, Seljuk, tinha dois filhos chamados Mikael e Israel, o que faz supor que a dinastia que unificou o Oriente muçulmano a partir das estepes tinha origem cristã ou judaica. Após sua islamização, os seljúcidas trocaram alguns de seus nomes. Em particular, Israel assumiu a forma turca de Arslan.
No início os turcos formavam dentro do império árabe uma casta de soldados escravos que foram adquirindo autonomia e poder cada vez maior, a ponto de influir na política de Bagdá e definir as sucessões dos Califas.
A conversão dos seljúcidas à maneira sunita do islamismo representou uma mudança histórica tão importante quanto à conversão de Clóvis, rei dos bárbaros francos, ao catolicismo quase cinco séculos antes.
Em Maara, antes da chegada dos francos, o povo tinha orgulho de sua cidade ter sido o berço de uma das maiores figuras da cultura literária árabe. O poeta Abul-Ala al-Maari, morto em 1057. Homem cego, livre pensador, ousara atacar os costumes religiosos de sua época, sem se preocupar com as rígidas proibições estabelecidas. Era preciso ser audacioso para escrever:
“Os habitantes da terra dividem-se em dois grupos,  
Os que têm um cérebro e não tem religião,
E aqueles que têm religião, mas não têm cérebro”.
É dele também o verso:
“O destino nos destrói como se fossemos de vidro,  
E nossos cacos jamais se soldarão”.
Escreveu Philip Wylie:
“Onde quer que os homens tenham se defrontado com doutrinas contrárias, uma violenta aversão separou os dois grupos. De um lado e do outro cada qual continuava convencido de que o campo adversário estava errado, composto de pagãos, descrentes e bárbaros, quase todos assaltantes e criminosos. Foi assim que nasceram, regularmente, as guerras santas”.
E arremata Goethe:
“Em todos os banquetes oferecidos pelo Diabo, é em última instância o ódio sectário que age com a maior eficácia, chegando aos limites do horror”.
Nas guerras que se seguiram após a invasão e tomada de Jerusalém entre os cruzados e os muçulmanos, a maré da vitória tendeu ora para um lado ora para outro durante quase um século. Tropas comandadas por Saladino, um capaz guerreiro curdo das montanhas do norte do Irã que havia sido designado para o comando dos muçulmanos pelo Egito, em 1187 conseguiu uma vitória para os muçulmanos retomando Jerusalém dos francos. Constantinopla foi arrasada pela quarta cruzada e nunca mais seria a mesma pela destruição causada pelos católicos. Em 1228, Frederico II, rei da Prússia retomou Jerusalém e estabeleceu um condomínio entre cristãos e muçulmanos. As cabeças de ponte ocidentais, apesar dos esforços e envio de mais soldados, foram encolhendo até sua total extinção. Enquanto isto, do leste uma nova ameaça surgiu das estepes. A partir de 1220, grande parte da Ásia central e da Pérsia se encontrava já nas mãos de estranhos povos das estepes. Estes conquistadores viviam das pilhagens e tinham absoluto desprezo pela civilização dos povos sedentários. Em 1258 tomaram Bagdá e mataram o último dos califas abácidas. Eles vieram do Oriente e eram chamados mongóis.
Saladino
 Comandos Suicidas –
Ibn al-Kachab salvou Alepo em 1125 da dominação franca e foi responsável, mais que qualquer outro, para preparar o caminho de resistência contra a dominação imposta pelo ocidente. No entanto o cádi não viu seus esforços alcançarem resultados. Num dia de verão de 1125 quando saía da Grande Mesquita de Alepo, após a oração da tarde, um homem fingindo-se de asceta pula sobre ele e enfia-lhe um punhal no peito. É a vingança dos Assassinos. Ibn al-Khachab fora inimigo mortal da seita, derramara o sangue dos seus seguidores sem piedade ou arrependimento. Não ignorava que mais cedo ou mais tarde seria colhido por um seguidor e pagaria com a própria vida. Há um terço de século, nenhum inimigo deles conseguiu escapar com vida.
A seita foi criada em 1090 por um homem sensível à poesia, estudioso dos últimos progressos da ciência. Hassan as-Sabbah nasceu por volta de 1048 na cidade de Rayy, próximo ao local onde seria criado posteriormente o burgo de Teheran. Conforme reza a lenda, teria sido o inseparável companheiro de Omar al-Kayyam, também um homem ilustrado, poeta conhecido e com interesses em matemática e astronomia. O que se sabe hoje com precisão são as motivações que levaram este homem brilhante a consagrar sua vida à organização da seita.
Quando nasceu Hassan, a doutrina xiita, a qual pertence, era dominante na Ásia islâmica. A Síria pertencia aos fatímidas do Egito, e a dos buaiídas, também xiíta dominava a Pérsia e influía diretamente na política e na lei em pleno coração de Bagdá junto ao califa abássida. Mas durante a juventude de Hassan, a situação inverteu-se completamente. Os seldjúcidas turcos, defensores da ortodoxia sunita, se abateram sobre o império árabe e estabeleceram a primazia de sua visão do Islã e o xiísmo passa a ser apenas tolerado e às vezes perseguido pelos sunitas dominantes.
Os Ismailitas, seita muçulmana que surgiu entre os xiítas no século IX, esperavam a vinda de um Messias, o Mahdi, que estabeleceria um reinado de justiça sobre a terra e pessoalmente vingaria os crentes contra os opressores da estirpe de Ali. Também possuíam uma visão teológica e esotérica própria derivada da cabala judaica ou do neopitagorismo: sustentavam que Deus havia criado o Universo através de uma de divindade emanente, que denominavam Razão Universal, que por sua vez deu origem a Alma Universal, geradora da Matéria primeira, do Espaço e do Tempo. Estes cinco princípios divinos, atuando em conjunto, teriam sido a origem do Universo. A causa final do homem era voltar a sua fonte primordial para atingir a união perfeita com a Razão Universal. Para facilitar este Caminho acreditavam que a Razão Universal e a Alma Universal haviam encarnado entre os homens e as encarnações mais recentes seriam os imanes descendentes de Ali, criador do xiísmo.
Estas idéias que no futuro iriam influenciar as seitas secretas esotéricas européias foram sistematizadas por Abdallah ibn Maimun, persa natural do Khuzistão. Segundo ele afirmava, desde o principio do mundo teria havido seis períodos religiosos, caracterizado cada um deles por uma encarnação da Razão Universal, acompanhada por um profeta: Adão e Set, Noé e Sem, Abrão e Ismael, Moisés e Aarão, Jesus e Pedro, Maomé e Ali. A religião derradeira e mais perfeita era a do Imã Ismail, descendente direto de Maomé; e o privilégio da revelação desta religião ao mundo foi de Abdallah.
Os pregadores Ismailitas difundiram e alcançaram muitas conversões no mundo muçulmano. Os cármatas, os drusos e a seita dos Assassinos são divisões desta crença. Os fatimidas que governavam o Egito foram seus seguidores. Ainda hoje subsistem seus adeptos no Irã, na India e em Zanzibar e seu chefe supremo é o Aga Khan.

Hassan cresceu rodeado pelas disputas religiosas e insurge-se contra esta situação. Por volta de 1071 vai buscar refúgio no Egito, ultimo baluarte do xiísmo. Mas logo descobre que também lá a dinastia fatímida é ainda mais manipulada e se encontra enfraquecida. No Cairo ele aproximou-se de outros fundamentalistas descontentes que desejavam como ele reformar o califado xiíta e vingar-se do domínio seldjúcida.
Assim tomou corpo um verdadeiro movimento de resistência, tendo por chefe Nizar, o filho mais velho do califa egípcio. Tão piedoso quanto tenaz, o herdeiro do trono não tem a menor vontade de viver uma vida de prazeres nem servir de marionete nas mãos de um vizir seldjúcida. Quando seu velho pai falecer, o que não devia demorar, com a ajuda de seus aliados uma nova era de domínio xiíta deveria prosperar. Foi estabelecido um plano no qual Hassan tinha importante papel como seu artesão. O militante persa irá instalar-se no coração do império seldjúcida para preparar o terreno para Nizar impor seu poder quando assumisse o trono.
Ruínas de Alamut

O sucesso de Hassan ultrapassou todas as expectativas, mas seus métodos não ortodoxos de combate são bem diferentes daqueles imaginados pelo virtuoso Nizar. Em 1090, Hassan se apossa de surpresa da fortaleza de Alamut, verdadeiro “ninho da águia”, situado na cadeia montanhosa de Elbruz, perto do mar Cáspio, em uma região quase inacessível. De seu santuário inviolável, Hassan começa a criar sua organização político-religiosa cuja eficácia mortal e espírito de disciplina servirão de exemplo nos tempos vindouros para a criação de sociedades secretas e organizações terroristas até nossos dias.
Seus adeptos, como em todas as organizações similares, quando da admissão foram classificados de acordo com suas qualidades, nível de instrução, coragem, confiabilidade, de noviços até o grau de grande mestre. Subordinados ao "Velho da Montanha" estavam os "grandes priores" que ocupavam a função de governadores provinciais, os "priores" ou missionários, os  iniciados e por fim os  fedais que não eram iniciados nos mistérios mas praticavam as missões mais perigosas e atentados. Abaixo deles estavam os noviços e os simpatizantes do povo. Eles recebiam treinamentos físicos intensos e doutrinação esotérica islâmica. A sua arma de terror preferida era o assassinato. Os membros eram enviados até seu alvo, uma personalidade escolhida para ser assassinada, individualmente ou em pequenas equipes de dois ou três conforme a importância da missão. Geralmente, eles aproximavam-se da sua vítima em número de três. Se por acaso dois punhais fracassem, haveria ainda um terceiro a completar o serviço. Atuavam em qualquer lugar - nos mercados, nas ruas estreitas, dentro dos palácios Eles geralmente se disfarçavam de mendigos, mercadores ou ascetas em peregrinação, circulavam insuspeitos na cidade onde morava a vitima e buscavam conhecer seus hábitos para planejar de forma adequada e eficiente o atentado. A ação planejada em segredo era sempre executada em público, diante do maior número possível de pessoas. Por esta razão a mesquita quase sempre era o local escolhido e o dia preferido era a sexta-feira, geralmente ao meio dia. Para Hassan, o homicídio não serve apenas para livrar-se de um adversário, mas também é um instrumento político valioso, uma dupla lição ao público, do castigo de quem é morto e do sacrifício resignado do executante, denominado “fedai”, isto é, “Comando Suicida”, porque quase sempre ele era morto após a ação.
Alguns estudiosos afirmam que o termo Assassinos viria de "Assass" – o seja, "os fundamentos" da fé islâmica. Mas muitas são as versões sobre essa nomenclatura, como nome da seita teria dado origem a palavra "assassino" e outras derivações semelhantes em várias línguas européias. Desde Marco Polo que se acredita que o termo provém de "haxixe" ou que o nome da erva haxixe tem origem no de "haschichiyun", que significa "fumador de haxixe". Algumas fontes cristãs medievais relatavam que os Assassinos teriam por hábito consumir esta substância antes de perpetuarem os seus ataques, induzindo-lhes a visão beatifica do Paraíso. Contudo, as fontes ismailitas não fazem referência a qualquer prática deste tipo, sendo esta lenda resultado de relatos de Marco Polo e de outros viajantes europeus no Médio Oriente. Nada se sabe com certeza a respeito, pois suas práticas secretas foram fielmente mantidas pelos seus adeptos ficando difícil distinguir o fato da lenda ou foram destruídas pelos seus inimigos.
Ele induzia seus adeptos a uma visão das miríades do paraíso através das drogas e de encenações sobre os mistérios ocultos do Islã para encorajá-los ao martírio com se fazia em Eleusis nos cultos de iniciação gregas? Usava de produtos hipnóticos para mantê-los sob seu poder? Dava-lhes um excitante para que melhor cometessem o ato? Ou mais que tudo tinha fé no seu treinamento e doutrinação para atingir seus objetivos? Talvez contasse com todos esses elementos para angariar a fidelidade absoluta dos comandados. Até hoje ficaram em aberto estas questões, mas que tornaram Hassan uma figura poderosa, enigmática e imortal.
Seu sucesso fulminante, já em 1092, só dois anos após a fundação da seita e no auge do poder Seldjúcida, foi por si só uma epopéia. O pilar do renascimento do poder sunita, o turco que organizou durante trinta anos o Estado em expansão, é um velho vizir e seu nome já evoca sua obra: Nizam el-Muk, a “ordem do reino”. A 14 de outubro de 1092, ele é apunhalado por um adepto da seita. Quando Nizam El-Muk foi apunhalado, o estado se desintegrou, o império seldjúcida nunca mais encontrou sua unidade. Sua história não foi mais de conquistas territoriais, intermináveis guerras de sucessão minaram o ímpeto dos invasores turcos. No Cairo seus antigos companheiros tinham o caminho aberto para derrotar os inimigos. Era a vez de Nizar demonstrar seu valor. Mas lá a insurreição fracassa. Al-Afdal, o herdeiro assume o poder no lugar do velho vizir morto em 1094 e esmaga os aliados de Nizar, que acabou emparedado vivo.

Hassan se viu perante uma situação imprevista. Ele não renunciou aos seus objetivos de restaurar o califado xiíta, mas compreendeu que deveria esperar uma nova oportunidade para atingir seus objetivos. Com os acontecimentos decidiu mudar sua estratégia enquanto estabelecia novas células para solapar o Islã oficial e aniquilar seus representantes religiosos e políticos. Seu esforço concentrou-se em estabelecer um espaço autônomo para seus movimentos. Na época o melhor lugar para atingir seu intento era a Síria fragmentada em vários estados minúsculos e cheios de rivalidades entre eles. Bastou infiltrar seus adeptos nas diversas cidades e promover as disputas, jogando uma cidade contra a outra, um emir contra o irmão, para sobreviver enfraquecendo aos poucos o inimigo até o dia que o califado fatímida xiíta pudesse assumir novamente sua posição de poder.
Hassan despachou para a Síria um pregador persa, uma figura enigmática, um médico astrólogo que se instalou em Alepo e conseguiu a confiança de Redwan. Os adeptos chegaram em massa secretamente, pregando sua doutrina e criando novas células. Para conservar sua liberdade de ação prestaram pequenos favores ao rei seldjúcida, mataram alguns de seus adversários abrindo caminho para aumentar ainda mais seu poder. Quando morreu o médico astrólogo em 1103, a seita, sem demora, instituiu um novo conselheiro persa para Redwan, Abu Taher, o ourives. Rapidamente sua influencia ultrapassou seu antecessor. Redwan ficou sobre seu total controle e segundo se conta qualquer favor do rei precisava da aquiescência de um seguidor da seita infiltrado na corte.
Exatamente em razão do seu poder eram odiados pela população. Ibn al-Khachab, em particular, exigia sem parar que se pusesse fim a suas atividades. Ele os acusava de tráfico de influência e terem simpatias pelos francos invasores, no que tinha razão. Quando da chegada dos francos, a seita estava começando a infiltrar-se na Síria, eram chamados batinis, “os que aderem a uma crença diferente daquela que adotam em público”. Um nome que insinuava que eram muçulmanos apenas na aparência. Os xiítas não nutriam simpatias nenhuma pelos Assassinos, pela sua ruptura com o califado fatímida que ainda permanecia apesar de enfraquecido, como o protetor titular dos xiitas no mundo árabe.
Detestados e perseguidos por todos os muçulmanos, os Assassinos viram na chegada dos francos que derrotaram vários exércitos seldjúcidas e a al-Afdal, assassino de Nizar uma nova oportunidade de atingir seus objetivos. Esta era a razão da relutância de Redwan em enfrentar os inimigos francos. Os conselhos que recebia dos batinis influenciavam suas decisões.
Aos olhos de Ibn al-Khachab, a conivência entre os Assassinos e os francos valia por uma traição. Ele agiu com presteza. Quando ocorreram os massacres que se seguiram a morte de Redwan, em 1113, os batinis foram perseguidos de rua em rua, de casa em casa. Alguns foram linchados pela multidão, outros foram jogados de cima das muralhas. Cerca de duzentos membros da seita morreram assim, inclusive Abu Taher, o ourives. Entretanto muitos escaparam para junto dos francos ou dispersaram-se pelo país.
Apesar de Ibn al-Khachab ter expulsado os Assassinos de seu principal baluarte na Síria, sua trajetória mortal recém havia começado. Tirando as lições de seu fracasso suas táticas mudaram. O novo enviado de Hassan na Síria, um propagador de idéias de origem persa chamado Bahram, decidiu trabalhar na surdina e evitar qualquer ação espetacular que chamasse a atenção sobre a seita e voltou-se novamente para um trabalho detalhado e eficiente de infiltração e organização.
Bahram, segundo contam os cronistas da época, “vivia no maior segredo e em retiro absoluto, trocava de roupas e de trajes, se bem que circulava nas cidades e praças fortes sem que ninguém suspeitasse de sua identidade”.
Após alguns anos organizando suas intrigas, ele dispunha de um serviço poderoso e eficaz e resolveu sair aos poucos da clandestinidade. Por conveniência buscou uma poderosa proteção para substituir Redwan. O vizir Tahir al-Mazdaghani, entendeu-se com Bahram, apesar de não pertencer à seita, veio em seu socorro para auxiliar na conspiração assassina.
Mesmo com a morte de Hassan as-Shabab, na sua fortaleza em Alamut, em 1124, a atividade dos seus adeptos cresceu. O assassinato de Ibn al-Khachab não foi um fato isolado. Um ano antes desta morte, outro importante líder da resistência contra os francos, o cádi dos cádis de Bagdá, esplendor do Islã, Abu Saad al-Harawi, foi atacado por batinis na Grande Mesquita de Hamadhan. Eles o mataram a punhaladas, depois escaparam, sem deixar indícios ou rastros, e sem que ninguém fosse em sua perseguição, tão grande era o terror que espalhavam entre o povo. O crime causou revolta em Damasco entre os fiéis, onde al-Harawi viveu muitos anos. Entre os cléricos a hostilidade contra os Assassinos cresceu. Os melhores entre os crentes temiam se manifestar tal era o grau do perigo. Os batinis passaram a eliminar quem lhes opunham e apoiar quem aprovava seus desmandos. Ninguém mais ousava censurá-los em público, nem emir, nem vizir, nem sultão!

 Em 26 de novembro de 1126, al-Borsoki, o poderoso senhor de Alepo e Mossul sofre com a terrível vingança dos Assassinos.
Conta Ibn al-Qalanissi: “E no entanto o emir estava vigilante. Ele trazia uma armadura de malhas onde não podia penetrar a lâmina do punhal nem a ponta do sabre e cercava-se de soldados armados até os dentes. Mas o cumprimento do destino não pode ser evitado. Al-Borsoki fora, como de hábito, à Grande Mesquita de Mossul, para cumprir sua obrigação de sexta-feira. Os fascínoras lá estavam vestidos à maneira dos sufis, rezando num canto sem despertar nenhuma suspeita. Repentinamente pularam sobre ele e lhe deram vários golpes sem conseguir furar sua cota de malhas. Quando os batinis viram que os punhais não tinham efeito sobre o emir, um deles gritou: ‘Golpeiem em cima, na cabeça!’. Com seus golpes, eles o atingiram na garganta e feriram-na rasgando-lhe o pescoço. Al-Borsoki morreu como um mártir e seus assassinos foram executados”.
A ameaça do terror corroia as estruturas do mundo islâmico num momento em que este necessitava toda a sua energia para fazer frente aos invasores do Ocidente. Logo após a morte de Al-Borsoki, seu filho assume o poder e é também assassinado. Em Alepo, quatro emires disputam o controle da cidade e Ibn al-Khachab não mais existe para manter a coesão do estado. No outono de 1127, enquanto a anarquia imperava na cidade, os francos postam suas forças em volta das muralhas. Em Antioquia reinava o jovem filho de Bohémond, um gigante louro que chegou de sua terra para reivindicar as posses conquistadas pelo pai. Ele tinha o mesmo nome que o pai e principalmente o mesmo caráter bárbaro do antecessor. Os alepinos pagaram tributo para evitar o pior e os mais derrotistas já imaginavam que mais cedo ou mais tarde ele acabaria virando o seu futuro soberano.
Em Damasco a situação não era melhor. O velho e doente atabeg Toghtekin não exercia controle algum sobre os Assasssinos. Eles criaram milícias armadas, a administração do reino estava em suas mãos, o vizir Mazdhagani era um adepto da seita devotado de corpo e alma, mantinha estreitos contatos com os inimigos do Islã em Jerusalém. Da parte dos invasores francos, Baudoin II não mais escondia seu interesse de coroar sua carreira de conquistador com a tomada de Damasco. Sómente a presença do velho Toghtekin ainda impedia que os Assassinos entregassem a cidade aos francos. O tempo estava se escoando rapidamente para os damascenos. No início de 1128, o velho atabeg já era uma sombra do homem que tinha sido, emagreceu a olhos vistos e não mais conseguia se levantar. Em volta de seu leito as intrigas corriam soltas. Seu filho Buri foi designado como seu sucessor. O corpo cansado do atabeg foi sepultado em 12 de fevereiro. Para os habitantes da cidade a queda de Damasco era apenas uma questão de tempo.
Para Ibn al-Athir não se tratava de uma mera disputa pelo poder, mas de salvar a metrópole síria das mãos dos invasores. “Al-Mazdhagani escrevera aos francos para propor entregar-lhes Damasco se eles aceitassem ceder-lhe em troca a cidade de Tiro. O acordo estava concluído. Haviam até combinado um dia, uma sexta-feira”. O plano seria coordenado a partir da chegada inesperada das tropas de Baudoin II aos pés das muralhas de Damasco. As portas da cidade estariam abertas e sob controle de Assassinos armados, enquanto outros comandos estariam encarregados de guardar os acessos à Grande Mesquita para impedir que os dignatários e comandantes militares pudessem sair até sua completa ocupação pelos francos. A razão dessa traição segundo o cronista seria motivada pelo sentimento de insegurança crescente dos batinis em Damasco. Os Assassinos e seu aliado al-Mazdaghani sentiam-se ameaçados e hostilizados pelos seus residentes e pelos aliados de Buri, o sucessor do atabeg. Também conheciam as idéias dos francos em dominar a cidade a todo o custo. Preferiram com a troca colocar seus adeptos em condições de a partir do porto de Tiro enviar seus pregadores e matadores para o Egito fatímida, seu objetivo inicial estabelecido por Hassan as-Sabbah.
Lembrando um século depois estes acontecimentos Ibn al-Athir escreveu:
“Com a morte de Toghtekin desaparecia o ultimo homem capaz de enfrentar os franj. Estes pareciam então em condições de ocupar a Síria toda. Mas Deus, na sua infinita bondade, teve piedade dos muçulmanos”.
“O vizir al-Mazdaghani se apresentou, como fazia diariamente, no salão das rosas, no palácio da cidadela, em Damasco”. Contou Ibn al-Qalanissi. “Estavam lá todos os emires e chefes militares. A assembléia tratou de vários assuntos. O senhor da cidade, Buri, filho de Toghtekin, trocou pontos de vista com os presentes, depois cada um se levantou para voltar para sua casa. Segundo o costume, o vizir devia partir após todos os outros. Quando ele se pôs de pé, Buri fez um sinal para um de seus companheiros e este golpeou al-Mazdhagani várias vezes com o sabre na cabeça. Depois ele foi decapitado e seu corpo foi levado em dois pedaços até a porta de ferro, para que todo mundo pudesse ver o que Deus faz com aqueles que se valeram da falsidade”.
Logo a notícia se espalhou pelo mercado, em seguida uma caçada teve começo. Imensa multidão erguendo espadas e punhais se espalha pelas ruas da cidade. Todos os batinis, seus parentes, amigos, assim como os suspeitos de terem simpatias por eles foram perseguidos em suas casas e sem piedade foram degolados. Seus mestres foram crucificados nas ameias das muralhas. Vários membros da família de Ibn al-Qalanissi tomaram parte ativa nos acontecimentos. Pode-se imaginar que este cronista com 57 anos na época e que ocupava uma alta posição no estado, junto com a população, talvez tenha feito parte no justiciamento. Seu tom iria revelar muito quanto ao seu estado de espírito: “De manhã, as praças estavam livres dos batinis e os cães uivantes disputavam seus cadáveres”.

Os acontecimentos posteriores deram crédito à tese da conspiração da seita. Seus poucos sobreviventes ao massacre em Damasco buscaram refúgio na Palestina, e proteção junto a Baudoin II, recebendo dele Banias, uma poderosa fortaleza situada ao pé do monte Hermon e que controlava a estrada que ligava Jerusalém a Damasco. Algumas semanas mais tarde, um poderoso exército franco marchou em direção à metrópole síria. Reúnia cerca de 10 mil cavaleiros e infantes, vindos não só da Palestina, mas também de Antióquia, Edessa, Trípoli, assim como reforços oriundos de Europa e que proclamavam bem alto suas intenções de tomar Damasco. Entre eles estavam os mais fanáticos, pertencentes a uma ordem religiosa criada na Palestina dez anos antes, a Ordem dos Templários.
Buri, que ao chegar ao poder era considerado fraco e titubeante, conseguiu derrotar por duas vezes os inimigos que ameaçavam Damasco. Primeiro os Assassinos e depois os exércitos de Baudoin II.
Um dia chegaram a Damasco dois homens vestidos à moda turca, com capotes e solidéus pontudos. Eles diziam procurar um trabalho como mercenários, um salário fixo, e o filho de Toghtekin, temerariamente, contrata-os para sua guarda pessoal. Em 1131, numa manhã quando o emir volta de seu hamam para o palácio, os dois homens pulam sobre ele e o ferem no ventre. Antes de serem executados confessam que o senhor da fortaleza de Alamut enviou-os para vingar seus irmãos que tinham sido exterminados.
Os cuidados médicos que se poderia obter em Damasco na época eram os melhores do mundo. Dukak havia fundado um hospital, um maristan; um segundo foi construído em 1154. O viajante Ibn Jobair, que os visitou alguns anos mais tarde escreveu sobre seu funcionamento:
“Cada hospital tem administradores que organizam registros onde estão inscritos os nomes dos doentes, as despesas necessárias aos seus cuidados e sua alimentação, assim como diversas outras informações. Os médicos vão lá a cada manhã, examinam os doentes e ordenam a preparação de remédios e alimentos que possam curá-los, segundo o que convém a cada individuo”.
Após a visita da junta de médicos e sua intervenção na ferida provocada no emir, Buri se sentiu melhor, insistiu em montar a cavalo e, manteve sua rotina normal recebendo os amigos para conversar e beber. Os excessos lhe foram fatais, sua ferida sangra. Ele morreu em junho de 1132, após treze meses de sofrimentos atrozes. Os Assassinos mais uma vez cumpriram sua sina.
Em agosto de 1157 um violento tremor de terra abala a Síria, particularmente em Chayzar uma das cidades que mais sofreram com o sismo toda a família do emir morreu soterrado no palácio juntamente com sua familia, dando quase um fim a sua estirpe e matando a maioria dos dignatários da cidade que se encontravam lá para a festa de circuncisão do filho do monarca. O emirado dos muquiditas simplesmente deixou de existir. Será a oportunidade para vários grupos armados saquearem as cidades que tiveram suas muralhas desmoronadas. Chayzar será imediatamente atacada pelos Assassinos e depois pelos francos, antes de ser retomada pelo exército de Alepo. A relação estreita entre a seita e os invasores corria sem maiores problemas.
A queda definitiva do califado xiíta no Egito em 1771, após dois séculos de um reinado glorioso, atinge em cheio as aspirações dos Assassinos que desde o tempo de Hassan as-Sabbah ainda esperavam a restauração do poder fatímida no Egito para inaugurar uma nova era de ouro do ismailismo. Vendo que seus sonhos se dissipavam para sempre, seus adeptos buscaram traçar uma nova estratégia e seu chefe na Síria, Rachideddin Sinan, “o velho da montanha”, envia uma mensagem à Amaury, rei dos francos em Jerusalém, para anunciar que ele e seus partidários estão prontos para converterem-se em massa ao cristianismo. Nesta época, os Assassinos possuiam ainda várias fortalezas e aldeias na Síria central, onde levavam uma vida relativamente pacifica. Há anos renunciaram às operações espetaculares e buscavam a discrição de sua seita entre os comuns. Rachideddin ainda dispõe de seus sicários perfeitamente treinados, assim como pregadores devotados de sua cisma, mas muitos adeptos da seita se transformaram em camponeses insuspeitos. São eles obrigados a pagar um tributo regular à Ordem dos Templários, com quem tinham estreitas relações.




Prometendo a conversão ao rei cristão, os batinis pretendiam se isentar do dízimo cobrado pelos Templários, que só era exigido aos não cristãos. Os Cavaleiros de Cristo, que não dirigiam descuidadamente seus negócios, seguiram com preocupação esses contatos entre Amaury e os Assassinos. Assim que o acordo estava prestes a ser concluído, eles decidiram interceder de forma decisiva para mudar o rumo dos acontecimentos. Ao retornar de uma entrevista com o rei, num dia de 1173, os enviados de Rachideddin foram emboscados e massacrados pelos Templários. Desde aquele dia não se falou mais em conversão dos Assassinos.
Com a ascensão de Saladino ao poder no Egito e sua tentativa de dominar Alepo, em 1174 ele se propõe a ser o “protetor” de as-Saleh, sucessor de Nureddin no trono daquela importante metrópole e que era na época um jovem adolescente. Em dezembro de 1174 ele sitia a cidade “para proteger o rei as-Saleh da influência nefasta de seus conselheiros”, mas desiste da empreitada pela forte resistência da população insuflada pelo jovem rei.
Para tentar acabar com esta ameaça permanente, os conselheiros do rei decidiram recorrer aos serviços dos Assassinos. Entraram em contato com Rachideddin Sinan, que imediatamente aceitou o encargo. Foi Saladino o coveiro da dinastia fatímida no Egito e “o velho da montanha” não perderia esta oportunidade caída dos céus de cumprir com sua vingança. O primeiro atentado ocorreu no início de 1175; Assassinos penetraram em seu acampamento, e ao se aproximarem de sua tenda um emir lhes reconheceu a intenção e barra a sua entrada sendo gravemente ferido. Os guardas acorreram e depois de um combate encarniçado, os batini foram finalmente massacrados. Uma segunda tentativa ocorre em 22 de maio de 1176, quando Saladino novamente em campanha na região de Alepo recebeu uma visita inesperada. Um Assassino invade sua tenda e lhe vibra violenta punhalada na cabeça. O sultão, que era homem precavido, estava de sobreaviso desde o ultimo atentado e usava uma touca de malhas debaixo do seu barrete turco. O matador se atira ao pescoço da vitima. Mas ainda ali havia uma proteção. Saladino traz uma longa túnica de tecido espesso cuja gola é reforçada por malhas. Um de seus emires chega então, agarra o punhal com uma mão e com a outra castiga o batini, que caí. Mal Saladino se refez do primeiro ataque, um segundo matador se jogou sobre ele, depois um terceiro. Mas seus sentinelas acorreram e os assaltantes foram imediatamente massacrados. Yussef saiu aturdido da tenda, desvairado, titubeante, não acreditava estar ainda vivo.
Quando voltou a si, decidiu fazer uma campanha militar até o covil dos Assassinos, na Síria central, onde Sinan controlava uma dezena de fortalezas. A mais temível entre elas, está localizada no cimo de um monte escarpado que Saladino resolveu sitiar. Mas o que se passou nesse mês de agosto de 1176 no país dos Assassinos sem dúvida permanecerá um mistério para sempre. Uma versão, a de Ibn al-Athir, diz que Sinan enviou uma correspondência ao tio de Saladino, jurando matar todos os membros da família reinante. Vindo tal mesagem dessa parte, sobretudo após as duas tentativas que forma frustradas, a ameaça não podia ser ignorada. O cerco a Massiaf teria sido então suspenso.
Mas uma segunda versão dos acontecimentos vem de um relato dos próprios Assassinos. Ela foi relatada, como propaganda dos poderes do culto, num dos raros escritos deixados por um de seus adeptos, um certo Abu-Firas. Segundo a narrativa, Sinan, que tinha se ausentado da fortaleza que foi sitiada, teria vindo espreitar com dois companheiros numa colina próxima o movimento das tropas dos sitiantes. Saladino teria então mandado seus batedores em grande número para aprisionar o mestre da seita. A tropa teria cercado Sinan, mas ao tentar se aproximar de sua presa, seus membros teriam ficado paralisados por uma força misteriosa. Diz-se que o “velho da montanha” então lhes pediu que avisassem o sultão pois queria encontrá-lo pessoalmente e em particular, e aterrorizados voltaram para contar ao seu mestre o que tinha acabado de suceder, e que Saladino, prevendo que nada de bom iria resultar disso, mandou espalhar cal e cinza para detectar qualquer movimento suspeito em volta de sua tenda. Ao cair da noite postou sentinelas com archotes para iluminar as redondezas de onde dormia. De noite acordou sobressaltado e ainda pode vislumbrar um vulto que saía da sua tenda que acreditou ser o próprio “velho da montanha”. O misterioso visitante deixou sobre o leito um bolo envenenado com uma mensagem que dizia: Estás em nosso poder. Então Saladino, até então invencível, teria deixado escapar um grito de terror e os sentinelas acorreram jurando não terem visto nada. No dia seguinte ordenou para seus homens levantar acampamento e voltou a toda pressa à Damasco desistindo para sempre de seu intento.
Esta narrativa pode ser apenas uma lenda criada pelos batinis, mas uma coisa é certa Saladino, que tinha pouca tolerância com heréticos, desta vez resolveu abrir uma exceção e doravante mudaria sua política em relação a seita e até mesmo buscaria seu favores quando foi preciso, evitando assim que seus inimigos muçulmanos e francos utilizassem seus serviços.
Com a morte de Saladino e a ascensão de seu irmão ainda envolvido com as velhas disputas pelo poder, os francos tentaram colocar um pouco de ordem em seu território fragmentado. Antes de abandonar o Oriente, o rei Ricardo Coração de Leão confiou o reino de Jerusalém, do qual Acre era sua capital após a derrota dos cruzados e a perda da Cidade Santa, a um de seus sobrinhos o conde Henrique de Champagne. Para reorganizar seu enfraquecido Estado, Henrique de Champagne buscou aliados e ratificou uma antiga aliança com a seita dos Assassinos. Seguiu até uma das suas fortalezas, al-Khaf para ir ao encontro do seu grão-mestre. Neste tempo, Sinan, “o velho da montanha”, tinha morrido fazia pouco, mas seu sucessor exercia o mesmo poder inconteste sobre os comandados da seita. Para provar o seu controle absoluto ao visitante ordenou que dois adeptos se atirassem das muralhas, o que eles fizeram sem hesitação. O grão-mestre pretendia seguir com a demonstração macabra mas interrompeu-a pelas súplicas do atemorizado franco. Um acordo foi firmado. Para honrar o convidado perguntaram se não tinha um desafeto que gostaria de assassinar. Henrique agradeceu, prometendo que quando necessitasse ia recorrer aos seus serviços. Pouco tempo depois ele mesmo morreria por acidente, defenestrado de seu próprio palácio em Acre.


Das origens deste contato estreito entre duas ordens de sectários religiosos, a Ordem dos Templários e a seita dos Assassinos, uma nova idéia foi gerada que envolvia terror, segredo e tradições esotéricas de mistérios que iriam custar aos templários mais tarde as fogueiras da inquisição. Alguns estudiosos encontraram semelhanças ou influências da Ordem dos Templários, com o catarismo e o ismailismo dos Assassinos, e levaram em conta os resquícios da lenda templária presentes em alguns graus na Franco-maçonaria esotérica ou na Rosacruz, irmandades que sobreviveram até nosso dias.
Alamut

Foi assim que Hassan influenciou indiretamente com sua seita de Assassinos as confrarias e as sociedades secretas medievais, que posteriormente deram origem a franco-maçonaria. Tais sociedades secretas perseguidas no seu início pela Igreja Católica, foram inspiradoras dos cabornários, anarquistas, positivistas maçons e outros movimentos secretos que nos séculos XVIII, XIX e XX incendiaram a Europa e o Novo Mundo e como reduto exclusivo das oligarquias dos burgos, com suas idéias iluministas e racionalistas, tomaram de assalto o poder absolutista europeu.
Vista de Alamut

No final de 1257, Hulagu, neto de Gengis Khan, com suas hordas de mongóis a caminho de Bagdá, destruiu em sua passagem, intencionalmente ou não, o santuário dos Assassinos em Alamut, onde uma biblioteca de valor inestimável foi perdida para sempre. Desapareceram importantes informações sobre sua doutrina e atividades tornando-se a seita uma lenda de terror no Islã. Nesta oportunidade o ultimo “Velho da Montanha” foi morto junto com doze mil de seus seguidores. A seita ainda sobreviveu na Síria mas foi destruída e dispersada pelas tropas do Sultão mameluco do Egito. Dizem que sobrevive ainda em algumas partes da Síria, Pérsia e índia.


Texto extraído e adaptado de:    -"As Cruzadas Vistas pelos Árabes"
                              Autor: Amin Maalouf
                             
                                          - "Diccionario de Religiones"
                                            Autor: Edgar Royston Pyke