terça-feira, 27 de novembro de 2012

Que Animal Somos ?





Tinha prometido não retornar mais ao assunto da Odisséia Antropofágica por acreditá-lo esgotado como estudo, uma análise da violência humana e suas causas através de seus hábitos alimentares onívoros e antropofágicos. Ao fazer contudo uma retrospectiva da obra percebi algumas lacunas no meu ensaio, como pensamento original. Foi quando caiu em minhas mãos o livro "O Animal que Logo Sou" de Jacques Derrida, o grande pensador francês, que discorre em uma aula ministrada sobre a condição humana e sobre a perplexidade de estar nu perante um gato, quando instintivamente ele sente vergonha perante o olhar casual do animal para sua nudez e sente vergonha de sentir vergonha de seu gato. Na verdade, conforme apreendi na sua aula magistral, que desde o Velho Testamento até nossos dias, historicamente, todos os filósofos e teólogos Ocidentais, sem exceção, colocaram nossos semelhantes, os animais, em condição inferior a nós e subalterna aos nossos desejos e sujeitos às nossas vontades, como relação evidente ao fato de estarmos no ponto mais alto da cadeia alimentar, ideia hoje em dia consubstanciada em uma sociedade industrial vertiginosa. Seu argumento é contundente:

"Ninguém mais pode negar seriamente e por muito tempo que os homens fazem tudo o que podem para dissimular ou para se dissimular essa crueldade, para organizar em escala mundial o esquecimento ou o desconhecimento que alguns poderiam comparar aos piores genocídios (existem também os genocídios animais: o número de espécies em via de desaparecimento por causa do homem é de tirar o folego). Da figura do genocídio não se deveria nem abusar nem se desembaraçar rápido demais. Porque ela se complica aqui: o aniquilamento das espécies, de fato, estaria em marcha, porém passaria pela organização e a exploração de uma sobrevida artificial, infernal, virtualmente interminável, em condições que os homens do passado teriam julgado monstruosas, fora de todas as normas supostas da vida própria aos animais assim exterminados na sua sobrevivência ou na sua superpopulação mesmo. Como se, por exemplo, em lugar de jogar um povo nos fornos crematórios e nas câmaras de gás, os médicos e os geneticistas (por exemplo, nazistas) tivessem decidido organizar por inseminação artificial a superprodução e supergeração de judeus, de ciganos, e de homossexuais que, cada vez mais numerosos e mais nutridos, tivessem sido destinados, em um número sempre crescente, ao mesmo inferno, o da experimentação genética imposta, o da exterminação pelo gás ou pelo fogo, Nos mesmos abatedouros....Todo mundo sabe que terríveis e insuportáveis quadros uma pintura realista poderia fazer da violência industrial, mecânica, química  hormonal, genética, à qual o homem submete há dois séculos a vida animal." (Jacques Derrida - Cerisy - 1997)

O discurso do mestre que finaliza com uma definição de um pathos de compaixão, ainda reprimida, uma voz minoritária, que fraca pretende se fazer ouvir como um direito aos sem direitos e se choca contra ondas culturais e econômicas avassaladoras, verdadeiro tsunami  de poder emanado do grande deus canibal que impõe como um leviathan sua força persuasiva através dos meios e telas do marketing mundial com grandes orçamentos de propaganda. Muitos ditos especialistas de plantão, matéria paga, poderão tentar arrogar a necessidade de alimentar as massas com a proteína animal produzida nas linhas de produção em série. Mas infelizmente esse argumento não se sustenta levando em conta o imenso gasto energético para alimentar e manter os grandes rebanhos e o custo ambiental inestimável do impacto da criação de pastagens em áreas que antes ocupavam florestas e cerrados e a difusão de gases do tipo estufa.

Mas a questão que se levanta não é mais econômica, mas sim ética. A questão primordial da aula é: "Eles podem sofrer?" Ele se refere aos animais é claro. Segundo o neurocientista Philip Low em parceria com o físico Stephen Hawking e outros cientistas, a partir de sua pesquisas, assinaram um manifesto afirmando que todos os mamíferos, aves e outras criaturas, incluindo polvos, tem consciência. Ele e mais 25 pesquisadores entendem que as estruturas cerebrais que produzem a consciência em humanos também existem nos animais. "As áreas do cérebro que nos distinguem de outros animais não são as que produzem a consciência", afirma Low. Isso quer dizer que esses animais sofrem. É uma verdade inconveniente: sempre foi fácil afirmar que animais não têm consciência. Agora, temos um grupo de neurocientistas respeitados que estudam o fenômeno da consciência, o comportamento dos animais, a rede neural, a anatomia e a genética do cérebro. Não é mais possível dizer que não sabíamos.

Como podemos interpretar esses dados em nosso cotidiano? Fazem justamente duzentos anos que os campos em todo o planeta vem sendo esvaziados paulatinamente de seus povos originários. O êxodo promovido pelo processo econômico para os grandes centros urbanos e a dominação de grandes áreas para a expansão das monoculturas desenvolvem um novo tipo de criação, a de humanos, alimentados pela ração produzida nos campos dos latifúndios da agroindústria. O processo de domesticação dessa criação humana é subliminal e intenso. O não-poder das pobres bestas que aguardam melancólicas no abatedouro para servir de repasto se estende aos homens tangidos para os centros urbanos, onde permanecem melancolicamente servindo aos novos senhores do curral da polis onde as multidões vão perdendo a condição de garantir a própria suficiência  como arte perdida de uma cultura que ao fim do processo canibaliza o próprio homem na condição de mão de obra barata e dispensável. Esse não-poder submete o ser humano à mesma condição das aves, porcos e bovinos que são destroçados nas fábricas para alimentar as multidões tangidas para as quadras infestadas de cada vez mais gente. E quando não forem suficientes os campos e as criações ? Num mundo superlotado com sete bilhões de viventes, em futuro próximo, quem servirá e quem será servido na hecatombe?

Bem vindo à casa de doces - 


Outra lacuna importante de minha pesquisa histórica sobre o comportamento predador humano diz respeito à Inquisição, que de santa não tinha nada. É sintomático que o recente papa que renunciou seja fruto desse meio obscuro, como ex-militante ativo, da Congregação para a Doutrina da Fé, que ainda sobrevive nas entranhas da Igreja Católica, e hoje cumpre seu faustoso ostracismo, como rebento tumoroso extirpado de um corpo moribundo, um sistema monárquico teocrático em franca decadência, como se apresenta a Igreja Católica hoje. Sempre tive profundo desprezo sobre essa parte da história humana com a mesma intensidade do desprezo que voto aos nazistas. Talvez por essa razão me afastei do assunto como é normal nos afastarmos quando os dejetos sujam nossa travessia na rua. Mas percebi que virar as costas para as atrocidades dos papistas e reformadores do cristianismo seria o mesmo que considerar levianas as suas faltas contra a espécie humana. Fui beber na fonte daqueles que sabem mais do que eu sobre o assunto, como por exemplo, Carlo Ginzburg em sua "História Noturna", ou Marvin Harris em "Vacas,porcos,guerras e bruxas", ou "A Caminho da Fogueira" de Michael Kunze que colecionam relatos estarrecedores da condição humana enquanto presa e predador.





A maioria das pessoas acredita que a Inquisição é fruto das trevas da Idade Média. Pretendem com isso exorcizar da mente no passado distante o tanto de crueldade humana, do homem contra o próprio homem, que se ilude sobre o argumento da religião da bondade, da imposição da fé em Cristo, que nada mais pregou a não ser o amor ao próximo. Com certeza é a distorção mais nefasta, de uma falsa razão teológica, que se impôs como verdade absoluta em meio a uma humanidade, em sua grande maioria, na época, imersa na peste, nas guerras, e na fome constante, para a manutenção do poder do estado que era projeção do poder religioso e portanto infalível na sua justiça e guardião dos costumes de uma elite e clero dominantes. Foi assim que pessoas foram acusadas de feitiçarias, perseguidas, torturadas em processos que foram uma caricatura canhestra de justiça e depois condenadas pela simples suspeita, na aplicação extemporânea da "doutrina do domínio do fato", e jogadas nas fogueiras como carne, para libertação de suas almas impuras da inevitável presença demoníaca de satã. Assim primeiro os leprosos, depois os judeus e mais adiante qualquer um que aparentasse diferir do credo oficial ou estivesse na condição de marginal na sociedade de então podia ser imolado nas fogueiras, verdadeira benção para alguns depois das violentas sessões de tortura escruciante nas masmorras. A heresia e o paganismo, termo que etimologicamente (paganus) significa aquele que vive em uma aldeia ou meio rural, e portanto afastado das influências homogeneizadoras do catolicismo imposto pela Igreja, e zelosos das velhas tradições milenares do culto à fertilidade da terra representada pela deusa tectônica de cada região, eram comportamentos que precisavam ser eliminados pelos novos senhores da fé.





Para escapar aos horrores, pais denunciavam os filhos, e seus filhos corroboravam as denuncias, firmavam falsas confissões e imploravam o suplício final para fugir daquele tormento interminável. Na maioria das vezes eram acusados de envenenar os poços, matar as criações com sortilégios, praticar rituais onde crianças eram assassinadas e devoradas em rituais antropofágicos em louvor à satã. Tais relatos de canibalismo comuns na época podem ter sido tirados de situações limite onde pessoas transtornadas pela miséria e a fome se alimentaram de carne humana ou praticaram a necrofagia para sobreviver. Nos contos infantis permanecem suas lembranças, como no conto de Hansel e Gretel (João e Maria), crianças que são deixadas a própria sorte na floresta por seus pais pela absoluta miséria e falta de recursos para alimentá-los e que encontram uma velha canibal que os atraem e pretende cevar o menino preso em uma jaula enquanto utiliza os serviços de sua irmã. Verdadeiras ou não são essas  as reminiscencias macabras colhidas pelos irmãos Grimm nas aldeias do interior da Alemanha que permaneceram vivas até nossos dias. 


Mas qual o nexo da constatação da Inquisição medieval com a exploração econômica dos abatedouros industriais de animais? Afinal que animal somos? Somos vorazes onívoros, filhos dos deuses que inventamos desde os primórdios dos tempos? Somos seres sociais e sectários que vivem conflitos permanentes com o meio e com o próximo que chamamos de animais e lhe negamos a humanidade quando se tratam de estranhos? E apesar dos genocídios e morticínios sazonais, dos milhares de mortos de todos os campos de batalha da terra, a população humana cresce descontrolada e cobre com sua presença todo o planeta. Que animal somos ? A questão permanece sem ser respondida... está no ar.