quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Odisséia Antropofágica - A Palavra Final

"Os fracos são refeição para os fortes"

"O Kalevala, registro dos mitos sagrados finlandeses, relata como o velho Vainamoinen se feriu gravemente quando construía um barco. Ele se pôs então a tecer encantamentos à maneira de todos os curandeiros mágicos. Cantou o nascimento da causa de seu ferimento, mas não conseguia lembrar as palavras que contavam o começo do ferro, justamente as palavras que poderiam sanar o talho aberto pela lâmina de aço azul". Finalmente depois de recorrer ao conhecimento de outros magos, Vainamoinen exclamou: Agora recordo a origem do ferro! e começou a seguinte narrativa: A Água é o mais idoso dos irmãos, o Fogo é o segundo e o Ferro é o mais jovem dos três. Ukko, o grande Criador, separou a Terra e a Água e fez aparecer o sol nas regiões marinhas, mas o ferro ainda não havia nascido, Esfregou então suas palmas sobre o joelho esquerdo. Assim nasceram as três fadas que se tornaram as mães do ferro". (Mircea Eliade - Mito e Realidade)

"As árvores do Senhor estão cheias de seiva: os cedros do Líbano que Ele plantou" (Salmos 104:16)

"Sua face é como o Líbano, bela como os cedros" (Cânticos de Salomão 5:15) 

A palavra final sobre qualquer assunto é sempre temerária na medida que novas pesquisas surgem para dar continuidade e avanço em qualquer estudo. No estudo das crenças e da evolução humana sempre ocorre um novo desvelamento, uma nova instancia para ser debatida ou estudada pelos especialistas à luz de novas descobertas arqueológicas ou documentais. Os últimos oito mil anos representam uma pequena fração da jornada da marcha humana sobre o planeta. Do passado distante só podemos apreender vestígios, pegadas da rota empreendida pela humanidade até nossos dias, um mosaico com peças que se perderam para sempre. Seus ecos, no entanto, ainda repercutem nos mitos que sobreviveram até nossos dias.     

Já discorremos, nas postagens anteriores, como os hábitos alimentares dos seres humanos condicionam suas matrizes sensoriais de pensamento, a forma como observam seu meio, desenvolvem suas comunidades, estabelecem suas crenças e normas, deflagram seus conflitos, e principalmente exploram os recursos do planeta. Essa é uma das memórias inalienáveis que permaneceram gravadas nos indivíduos em suas heranças genéticas simpáticas e parassimpáticas. 

Somos aquilo que comemos afirmam os sábios. Essa metáfora nunca é entendida com a devida profundidade quando a mesa farta do consumo banaliza a ingestão do alimento. Literalmente o termo cultura está subliminarmente associado, no seu estrito sentido semântico,  como "plantação" à tudo que pode ser agricultável, acumulável, palatável, deglutível, excretável, isto é, um repositório de provisões extraídas da terra bruta transformada em cultivo ordenado e civilização domesticada.

A tecnologia é o fruto mais importante dessa relação simbiótica do homem com seu meio. É através da ferramenta que ele se estranha com seus semelhantes, os outros mamíferos superiores, que com ele possuem uma relação embrionária comum. A partir dessa estranheza o homem se permite considerar os demais seres como extensão natural de sua cultura de absorção de energia metabólica.  Por isso a relação subalterna que estabelece com esses seres que ruminam nas manadas ou fuçam e ciscam em matadouros à espera de serem sacrificados para seus deuses humanos.

O ancestral comum a todos os mamíferos placentários - como o homem, o cavalo, o cão, o macaco e a baleia - apareceu após a extinção dos dinossauros, há 65 milhões de anos, revela uma pesquisa internacional que contou com a participação de um cientista brasileiro do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

Mas nem sempre foi assim. Na pré-história as comunidades humanas viviam em estado de adoração da natureza e como predadores incipientes em sua busca diária de sobrevivência consideravam os outros predadores como seus iguais e cultuavam seus atributos de força tentando identificar-se através de cultos totêmicos que mantiveram suas reminiscencias nos brasões da heráldica, nos símbolos militares e em algumas religiões nativas ancestrais.

O Homo habilis tem cerca de 2,5 milhões de anos e o Homo sapiens sapiens desenvolveu a escrita há uns poucos milhares de anos, quer dizer que a humanidade tem 99 por cento de pré-história e um por cento de história escrita. E o que sabemos da pré-história reduz-se a 30 por cento de achados quase todos casuais. Perdemos a pista de nós próprios. É relevante que não estejamos atentos a isso.

Estima-se que 50 por cento da memória do mundo se tenha perdido. Traduzindo em números, são 650 culturas desaparecidas nos 5 continentes, 30 civilizações desmoronadas e 100 impérios extintos num período de 8000 anos. Ainda hoje o patrimônio da humanidade tem sido vilipendiado e saqueado em várias regiões em conflito no mundo e essas riquezas são vendidas nos mercados negros pelos vencedores, para quem pagar mais, perdidas para sempre. 

Com o advento da Idade do Ferro profundas modificações ocorreram no mundo. Os conflitos se intensificaram e os detentores da nova tecnologia subjugaram e escravizaram seus vizinhos mais primitivos. O ferro possui esse caráter ambivalente, pode encarnar a vitória da civilização, ou seja, da agricultura, mas também o flagelo da guerra, da destruição de culturas indefesas pela nova tecnologia vencedora. O ferreiro divide com o metal essa sacralidade ambivalente, suas ferramentas são veneradas, pois graças a elas podem ser forjados os instrumentos para arar os campos ou armas para o soberano poder ampliar suas áreas de influência e cultivo.

Thor, Taranis, Ogum, Visvakarma, Ares e Hefaistos,  são deuses associados ao ofício do ferreiro em diferentes civilizações e sítios. Para os antigos a arte de forjar ferramentas é de origem sobre-humana, quer seja divina ou  demoníaca. Resquícios de antigas mitologias da Idade da Pedra foram incorporados aos mitemas dos metais. As ferramentas de pedra ou ferro meteórico, de uso pouco comum no passado distante pela raridade, igualmente provocavam vítimas de sangue, estilhaçavam e produziam faíscas tal como o raio adorado pelas antigas civilizações. A magia multifuncional dessas ferramentas mortíferas ou benéficas, como o próprio raio, que antecede a chuva revigorante, transmigrou para as novas ferramentas forjadas de metal. O martelo, sucessor do machado dos tempos líticos, tornou-se o símbolo de deuses fortes, senhores das tempestades. As ferramentas  ou armas são forjadas pelos ferreiros divinos especialmente para os deuses. Daí se depreende porque os deuses guerreiros da tempestade, estão associados à fecundidade da terra e são quase sempre representados como deuses ferreiros. Posterior à olaria e à agricultura, a metalurgia enquadra-se num panteão bastante recente em que um deus celeste é destronado e passa à sombra para dar lugar ao macho fecundador da Grande Mãe terrestre, numa hierogamia sagrada ou por sacrifício sangrento. Da conjunção dos deuses surge a noção de procriação em detrimento da noção de criação.

Nas mitologias arcaicas os ferreiros divinos forjam as armas para deuses e heróis que farão diferença em suas lutas contra monstros e demônios. Essas armas são investidas de magia, da arte  misteriosa do ferreiro que as transforma em ferramentas mágicas. As armas que os deuses ferreiros ou ferreiros divinos forjam para os deuses Uranianos são o raio e o relâmpago. No mito cananeu, Kôshar-wa-Hasis (hábil e astucioso) forja para Baal os dois porretes com os quais abaterá Yam, senhor dos mares e das águas subterrâneas. As armas literalmente "saltam" da mão de Baal. Na versão egípcia do mito Ptah, (o deus oleiro) forja as armas que permitirão Horus vencer Seth. De maneira semelhante Tvastr fabrica as armas de Indra quando de seu combate com Vrtra. Hefaistos, o deus que ficou coxo ao defender a mãe  forja o raio que tornará seu pai Zeus vitorioso sobre Tifon. Mas a função de Kôshar-wa-Hasis não se restringe em auxiliar o deus em seu combate decisivo para conquistar a soberania do mundo. Ele é o artesão e arquiteto dos deuses, dirige a construção do palácio de Baal e aparelha o santuário das suas outras divindades familiares. Além disso, esse deus-ferreiro universal está associado à musica e ao canto. Parece existir um elo perdido, de antiguidade remota, entre a arte do ferreiro, as técnicas ocultas (xamanismo, magia, curandeirismo) e a arte da canção, da dança e da poesia.

Varuna, Odin, Tyr, Alfödr, todos deuses que conhecem o segredo do fogo, do metal, e da fusão, e por isso são deuses coxos, zarolhos, manetas, estropiados, enfermidades adquiridas na sua iniciação junto ao segredo da confecção de metais, que tais materiais podem ser liquefeitos, puros ou mesclados em ligas, e que podem se transformar em armas mortíferas ou relhas de arado. Eles devem ter sido obrigados a pagar por esse conhecimento, furtado do céu, com a perda de sua integridade física, o preço de sua ciência e seu poder, um lembrete do deus supremo para que não abusem desse poder mágico. O deus é ciumento e deixou neles sua marca para que sejam eles sempre submissos.  

O ferreiro como o metalúrgico, e antes dele o oleiro, é o "senhor do fogo". É pelo fogo que ele apressa a maturação do metal que em estado bruto, quando em repouso na caverna ou na mina é como um embrião no seio da terra que precisa ser lentamente gestado para adquirir sua nobreza natural, mas que será extraído pelo mineiro antes do fim do processo. O metalúrgico acelera o "crescimento" dos minérios, provoca o seu "amadurecimento" através da fusão num espaço de tempo humano, para ser forjado, transmutado pelo ferreiro através do calor da forja. O ferro se revela o metal de plasticidade infinita, de rapidez de manufatura para a criação de objetos que diferem de tudo do que já existia antes na natureza. A fama de "senhores do fogo" os coloca em igualdade de poder com os xamãs  e homens de medicina. Podem ser respeitados, mas também temidos e tratados como tabu, como demiurgos interditos pelos comuns. Entre os iacuto, povo da Sibéria, "o primeiro ferreiro, o primeiro xamã e o primeiro oleiro eram irmãos de sangue". O ferreiro era o irmão mais velho e o xamã o do meio. Isso explica que um xamã não pode provocar a morte de um ferreiro. Segundo os dolganes, os xamãs não podem "engolir" as almas dos ferreiros, porque esses conservam-nas no fogo. Pelo contrário o ferreiro pode apoderar-se da alma de um xamã e queimá-la no fogo.                     

O mito de cosmogonia através do desmembramento do deus para a criação do universo também é um tema recorrente ancestral na maioria das culturas do planeta. Purusha na Índia, Ymir entre os germanos e Panku na China, segundo o mito, seus corpos foram dilacerados para formar a terra e os oceanos e portanto todo o fruto da terra, seus minerais e vegetais, são partes do deus que por analogia representa o corpo humano, o macro-antropo. Portanto os antigos acreditavam que o sacrifício do deus deveria ser propiciado tanto nas minas como nas forjas para repetir ritualmente o desmembramento através de um ser humano que deveria ser previamente imolado para garantir a farta extração do mineral e a qualidade do fabrico dos instrumentos nas forjas. Essas crenças se difundiram em quase todos os continentes e são baseadas na ideia da correspondência entre o homem e o cosmo, isto é, uma vida só pode ser gerada por outra vida que se imola. Estes tipos de cosmogonias e antropogonias ancestrais trouxeram consequências relevantes de não mais se conceber uma criação ou uma fabricação sem um sacrifício correspondente. No rito de construção, por exemplo, ocorre a transferência da vida, da alma da vítima para o próprio prédio que passa a incorporar em sua estrutura o principio vital  do imolado. Outra série comum de mitos descrevem a origem de plantas alimentares através do auto-sacrifício de um deus ou uma deusa. Para garantir a subsistência do grupo, um ser divino, homem, mulher ou criança imola-se e de seu corpo ocorre a metamorfose que gera a planta nutritiva. O mitema justifica sua repetição ritual. Uma vitima é imolada e esquartejada periodicamente e os seus pedaços são assim distribuídos sobre a terra para lhe garantir a fecundidade.

É o que nos revelam os vestígios dos cultos religiosos que remontam ao neolítico, associados à fertilidade, as estatuetas que representavam deusas e o deus da tempestade associado ao touro, ao bucrânio, crenças e rituais associados com o "mistério" da germinação; a assimilação mulher-gleba-planta, ou o culto ao pilar sagrado que define o axis mundi, o centro do Universo. As duas colunas, uma com 2m e outra menor encontradas em Cascioarele, a 60 km de Bucareste, são ocas por dentro, o que indica que foram modeladas em torno de troncos de árvores. O simbolismo do axis mundi incorpora o arquétipo do pilar cósmico. A religião era articulada em torno das ideias de fertilidade ctoniana e do ciclo vida-morte-pós-existência. Os estudiosos assim constataram um universo de significados não só complexos e profundos, mas também longamente meditados, reinterpretados, e ao passar dos ciclos e das gerações, com a tendência de tornarem-se obscuros e ininteligíveis. Se torna obrigatório compreender que a grandiosa espiritualidade neolítica não é "transparente" através dos documentos arqueológicos ainda existentes. As possibilidades de interpretação semântica dos documentos arqueológicos são limitadas, e os primeiros textos expressam uma visão de mundo influenciada pelas ideias religiosas indissociáveis da Idade dos Metais e dos processos metalúrgicos, da formação da população urbana, da realeza e da criação de um corpo sacerdotal.

Os ferreiros muitas vezes ascenderam à realeza, pois o conhecimento do fabrico de armas colocava-os em posição de superioridade em relação aos demais. "Senhores do Fogo", ferreiros, xamãs, e reis fundadores viveram uma estreita relação desde a Idade do Ferro, pois a tecnologia é o diferencial, o marco, a travessia irreversível para uma nova etapa da humanidade em direção ao domínio da natureza e sua ascensão ao topo da piramide alimentar. São essas armas de ferro que implantarão seus domínios sobre outros povos e vão garantir o surgimento de uma casta tecnológica que se sobrepõe sobre os vencidos. Enquanto uns são escravizados para trabalhar nos campos ou servir às tropas, outros são literalmente devorados ou sacrificados aos deuses da forja para que as ferramentas atinjam um poder cada vez maior de eficiência e mortalidade.

O ferreiro e o ferrador atingiram mais notoriedade em suas sociedades e influência a partir da necessidade do uso dos cavalos pelos cavaleiros nômades, pastores da Ásia Central que necessitavam de cavalgaduras para realizar  suas campanhas contra os povos de agricultores. A ferradura permitiu que seus cavalos pudessem atingir maiores distâncias  e cavalgar em terrenos pedregosos com seus cascos protegidos. O impacto da presença humana no planeta intensificou-se ainda mais a partir da sua Idade dos Metais. Por volta de 8.000 a. C. haviam extensas florestas que cobriam os flancos das montanhas Tauro e Zagros e nas outras zonas altas do Médio Oriente. Mas a partir dessa época o alargamento e intensificação das economias mistas agrícola e pastoril converteram milhões de hectares de florestas em charnecas no Médio Oriente. Ao mesmo tempo, milhões de hectares de charnecas foram convertidos em desertos.

A intensificação agrícola e pastoril ajudou à propagação de vegetação de terrenos áridos às custas da cobertura anterior de plantas tropicais e semitropicais. Especialistas estimam que as florestas da Anatólia foram reduzidas de 70 por cento para 13 por cento de cobertura da área total entre 5000 a.C. e o passado recente. Só um quarto da anterior floresta do litoral cáspio se mantém, metade da floresta montanhosa úmida, de um quinto a um sexto das florestas de carvalho e zimbro das Zagros e um décimo das florestas de zimbro das cordilheiras de Elburg e Khorassan. As regiões que mais sofreram foram as tomadas por povos pastoris ou antigos pastoris. Os reflexos dessa presença deixou nas montanhas e faldas secas do litoral mediterrâneo, planalto da Anatólia e Irã um registro desolado de milênios de utilização descontrolada.

O Líbano, país ufanado pelos antigos pelos belos cedros que cobriam suas montanhas serviram como tema às façanhas do mais antigo herói conhecido, Gilgamesh, rei com super poderes que derrubou as  florestas de cedro sem piedade, e Tiro, sua antiga capital, presença constante nos relatos bíblicos, sobre a construção do templo nos tempos de Salomão que na estrutura empregou suas madeiras, riqueza cobiçada até mesmo pelos faraós do Egito, é um país pequeno com uma faixa costeira com alguns quilômetros de largura, aos pés das altas montanhas que se erguem a mais de três mil metros, na antiguidade possuía uma formosa floresta de seus cedros que ostentavam o nome do próprio país, simbolo até hoje da nação. Após rodar algumas horas por seu território hoje composto na maioria por terras estéreis chega-se nas montanhas a uma pequena floresta com um milhar de árvores. É tudo o que restou da imensa floresta, pequenos bosques que lembram um passado glorioso de riqueza e biodiversidade.  

Desde o Neolítico o homem destrói florestas deliberadamente para cultivar roças ou limpar o terreno para a caça de cervos e outros animais, para melhorar sua visibilidade sem a interferência das folhagens. Com o advento da agricultura e do pastoreio os homens deram prioridade aos campos abertos e ao desmatamento para plantio e pastagens. Os arados de ferro foram outra inovação que permitiu que grandes extensões de terreno fossem lavrados auxiliando na perda de grandes áreas de cobertura vegetal nativa por toda a Europa. A evolução do uso de arreios possibilitou que os cavalos pudessem puxar um peso maior de ferramentas agrícolas e de tiro. Esses avanços tecnológicos permitiram um lento e gradual aumento da população e um impacto ainda maior sobre as florestas do Velho Mundo.

O uso da madeira como combustível condenou as florestas que cercavam os centros urbanos. Encontraremos relatos sobre como se fornecia madeira à Paris, para aquecimento no séc. XVIII. Todas as florestas que antes existiam em volta da cidade foram exauridas. A madeira então vinha de centenas de quilômetros de distância, pelo Sena e seus afluentes abaixo. Depois as balsas eram ancoradas nos cais de Paris e distribuída a lenha para aquecimento. Com a cada vez maior dificuldade de usar a madeira como combustível houve a substituição pelo carvão de pedra, altamente poluente, seu emprego salvou as florestas da destruição final.

Além do aquecimento a madeira era largamente utilizada na indústria de transformação, de modo que onde haviam metalúrgicas houve larga destruição de florestas. Todos os minérios eram fundidos à base de carvão. Foi só no começo do séc. XVIII que pela primeira vez se fabricou aço com coque, carvão betuminoso de origem mineral. Isso ocorreu também onde existiam indústrias de fabricação de vidro. Embora o vidro tenha uma origem antiga, surgido cerca de 3000 a. C., era caro e de difícil produção até o aperfeiçoamento da arte de soprar vidro, no primeiro século da era cristã. Essa invenção levou ao estabelecimento de indústrias de vidro ao redor do Mediterrâneo e mais ao norte, na Inglaterra e em Colônia, resultando em um impacto ambiental sem precedentes na derrubada de árvores.

A construção de casas e de navios foram outras razões importantes para a derrubada de florestas. É interessante notar que as madeiras apropriadas para construir embarcações escassearam depressa na Europa ocidental. A armada francesa não conseguia encontrar o material adequado para construir suas naus desde o séc. XVII em território nacional, e teve que importar madeira da Albânia. No período da sua grande expansão naval no séc. XVI os espanhóis não dependiam só das madeiras do seu país, mas também de madeira vinda do Báltico. Na verdade o carvalho estava acabando. No séc. XVIII, no apogeu de sua supremacia militar naval, os britânicos utilizavam o carvalho que era proveniente das Américas - da Nova Inglaterra e da costa leste do continente. Quanto ao resto era utilizado teca indiana, Com o advento dos navios com casco metálico no séc. XIX deixou-se de arrasar florestas de crescimento lento com essa finalidade.

A cobertura de florestas da Europa que costumavam descer da parte norte até o Mediterrâneo hoje não mais existem. Ao sul da França, a leste de Hyéres, havia até pouco tempo atrás uma floresta de duzentos e cinquenta quilômetros quadrados denominada Forêt des Morts, resquícios da grande floresta primitiva, já destruída desde os tempos clássicos, e que simplesmente acabou na Idade Média, em grande medida pelas indústrias tradicionais de sabão e vidro de Marselha, e dos estaleiros de Toulon e Marselha. Nos quadros de Cézanne o testemunho de uma paisagem agreste e pitoresca da Provence não pode esconder suas colinas devastadas ainda em passado recente, seus rochedos expostos pela erosão da ação humana. Muitas são casos sem solução e nunca mais poderão ser reflorestadas.

Do outro lado do Mediterrâneo, na Tunísia, partindo do porto de Susa, estão localizadas as ruínas de um gigantesco anfiteatro romano, El Djem, que perde em tamanho só para o Coliseu e está hoje plantado no meio do deserto. El Djem estava situado em uma província romana chamada Frugifera ao tempo do império, isto é, lugar de onde se produz frutos. Atualmente está quase totalmente desértica, com algumas vivendas em torno da antiga construção. Do passado distante ecoam os registros de outra realidade. Homero relata sobre os altos carvalhos e pinheiros da Sicília. Já no século XX podia-se cruzar a Sicília de ponta a ponta e dificilmente encontrar uma árvore desse tipo. Houveram tentativas de reflorestamento mas o terreno erodido, a terra nua impede o crescimento das árvores. Isso ocorre também na Grécia, na Palestina, Síria, Espanha e no sul da Itália em áreas cada vez mais importantes, já fazendo parte integral da topografia e da paisagem desses lugares.

O solo é um organismo vivo. Depende de um complexo de seres vivos macro e microscópios que produzem os elementos químicos necessários para a formação da vida vegetal. É uma ténue camada que recobre o subsolo e quando é perdida o terreno se torna estéril. Os sete bilhões de habitantes do planeta dependem de uma camada de solo de aproximadamente vinte a vinte e cinco centímetros de espessura e que demora de trezentos a mil anos para crescer dois centímetros e meio. Nas florestas tropicais quando essa camada é perdida a tendencia do solo é uma desertificação irreversível. A tentativa de Ford para plantar seringueiras em áreas limpas na Amazônia foram fracassadas já que as mudas a descoberto não suportavam o sol inclemente e necessitavam da floresta para manter seu crescimento à sombra até atingir a idade adulta com capacidade de produção. O terreno limpo era rapidamente lavado dos seus nutrientes tornando as mudas fracas e presas fáceis dos parasitas que infestavam o solo.

A erosão do solo é um processo natural que ocorre normalmente, mas de forma lenta, sem a ação direta do homem O pastoreio, a derrubada da cobertura vegetal, o mau uso de métodos agrícolas agiliza a degradação do solo e deixam a terra vulnerável aos ventos e à chuva. Esse processo predatório é parte da história da presença humana no planeta nos últimos milhares de anos.

Em seu diálogo Crítias, Platão descreve a ação da erosão nos solos de sua pátria, a Ática:

"Em comparação com aquilo que existia então, restam apenas os ossos de um corpo devastado, como no caso das pequenas ilhas, tendo desaparecido todas as partes mais ricas e macias do solo, sobrando o mero esqueleto da terra. Mas no estado primitivo desse país, suas montanhas eram altas colinas cobertas de solo, e as pradarias de Peleu, cheias de rica terra, e havia abundância de florestas nas montanhas. Ainda há traços das florestas, pois, embora algumas das montanhas apenas ofereceram sustentação para ervas, há não muito tempo ainda se viam telhados de madeira cortados de árvores que ali eram bastante grandes para cobrir a maior das casas; e havia muitas grandes árvores cultivadas pelo homem, fornecendo abundancia de alimento para o gado. Mais ainda, a terra gozava do benefício das chuvas anuais, não perdendo, como agora, as águas que correm da terra nua diretamente para o mar, mas tendo abundante suprimento em toda a parte e recebendo água em si e guardando-a no solo de argila, deixava cair nas cavidades as torrentes que absorvia das alturas, fazendo aparecer por toda a parte fontes e rios abundantes dos quais ainda podem observar monumentos sagrados nos lugares em que outrora existiam as fontes; e isso prova a verdade que afirmo".

Platão e seus contemporâneos no quinto século antes de Cristo conseguiam perceber as consequências das mudanças no meio ambiente mas desconheciam suas causas e culpavam a mudança do clima e não a ação humana pelos problemas da erosão. Estava além do seu entendimento tais questões por falta de uma visão  crítica da sociedade em que estava mergulhado. Até hoje as instituições oficiais e grandes corporações utilizam de desculpas semelhantes para os graves impactos da ação do homem no seu meio. Vastas áreas na China, África, América do Sul e sul da Europa estão sofrendo esse processo de degradação irreversível que se torna mais perigoso conforme mais gente nasce e precisam ser alimentadas, o que faz aumentar ainda mais a pressão sobre as terras agricultáveis.


A equação quantidade do aumento populacional versus destruição do solo é assustadora. Apesar de muitas culturas terem encontrado soluções interessantes de preservação do meio e produção agrícola sustentável, como por exemplo os Incas, com seus cultivos em terraços e sistemas de irrigação que transformaram desertos em áreas cultiváveis, tecnologias que posteriormente foram destruídas pelos invasores europeus condenando milhões a fome inclemente em um genocídio programado. No geral a prosperidade imediata que gera o aumento da população não é garantia de sobrevivência da espécie humana. A superpopulação no passado obrigou que sociedades com relativo sucesso agrícola aumentassem cada vez mais suas produções ao custo da fertilidade dos terrenos. O insucesso por anos seguidos de safras por motivos vários, que vão de mudanças climáticas até mau uso do solo geraram verdadeiras catástrofes e extinções de civilizações inteiras que se acreditavam eternas em todo o planeta.

Atualmente vivemos uma única civilização planetária, urbana e industrializada. O ferro é apenas um dos materiais utilizados para satisfazer nossas necessidades de consumo. Metais de todos os tipos e hidrocarbonetos são extraídos dos locais mais profundos da terra. Sociedades que antes viviam em relativo atraso tecnológico hoje são verdadeiros celeiros de mão de obra barata para as grandes corporações que já não possuem pátria. As plantas industriais são responsáveis por 80% de resíduos não degradáveis no meio ambiente do planeta. A degradação do meio ambiente ocorre justamente nos países onde as condições sociais são mais precárias. As matrizes dessas corporações procuram afastar para longe das suas metrópoles do hemisfério norte processos industriais danosos ao meio, de preferencia localizá-las em regiões do planeta onde não existe regulamentação ambiental rígida para redução dos seus custos de produção. Regimes políticos tanto à direita quanto à esquerda acreditam que o aumento constante das produções nacionais e exportações refletem de forma cartesiana uma evolução de suas economias e garantem a manutenção dos seus sistemas de poder. O mundo vive uma inter-relação delicada entre meio ambiente e humanidade como nunca antes.

Um pequeno desvio da curva de crescimento da produção de alimentos X população, em termos globais pode gerar uma crise sem precedentes. Essa crise já vem ocorrendo de forma lenta e gradual. Como Platão estamos mergulhados em nossa cultura particular e portanto sem distanciamento crítico suficiente para perceber a locomotiva da tecnologia de consumo descendo lomba abaixo em velocidade ascendente em direção ao abismo. Não é por coincidência que os lugares do mundo onde por milênios se intensificou a exploração do meio vivam em conflito constante, com distúrbios sociais, guerras e revoluções. A descoberta de jazidas de hidrocarbonetos, um recurso natural não renovável, no Médio Oriente trouxe uma falsa prosperidade e um aumento demográfico consequente nessas populações. A pouca ou nenhuma infraestrutura gerada pelos mandatários desses países, quase todos criações artificiais no antigo período colonial europeu criaram uma massa de jovens sem horizontes maiores a não ser emigrar para as metrópoles que já não absorvem mão de obra e possuem uma grande população ociosa vivendo do seu passado de opulência recentemente perdida. Os recursos naturais existentes na Europa já não sustentam sequer suas populações autóctones e o fantasma da xenofobia e do etnocentrismo que se acreditava enterrado após a II Guerra Mundial ressurge como a ave fênix das chamas de uma região dividida em guetos de prosperidade e atraso social. Para os Europeus e Norte Americanos só resta garantir uma hegemonia econômica que lhes permita a manutenção de seus sistemas de poder que vem sendo ameaçados por outras nações emergentes com objetivos hegemônicos e necessidades demográficas de igual monta ou com pressões ainda maiores a médio prazo. Os alemães tem um bom termo para este tipo de economia explorativa: Raubwirtschaft (economia de saque).

Enquanto uma guerra sectária religiosa e por espaço vital no Médio Oriente travestida pelo Ocidente de "primavera árabe", com requintes de carnificina típicos desses conflitos, transcorre na surdina e com o beneplácito das grandes potências interessadas no enfraquecimento dessas sociedades, de olho nas reservas de hidrocarbonetos, na Palestina os invasores europeus dão prosseguimento ao saque dos recursos minerais, e do espaço vital dos povos autóctones em um verdadeiro conflito antropofágico que lembra os antigos herems  bíblicos. Nada de novo, pois a religião sempre foi a mola motora de todos os tipos de atrocidades. Em nome dos deuses a humanidade sempre sacrificou o direito do próximo. Na África povos que antes lutavam com lanças e flechas agora utilizam modernos fuzis e lança rojões fabricados alhures, armas que são adquiridas pela troca de riquezas minerais inestimáveis para as grandes corporações do planeta. Todos esses conflitos são considerados da "baixa intensidade" e animados pela explosão demográfica desenfreada e luta pelo espaço vital, herança do colonialismo europeu e do escravismo no continente africano. Teorias de conspiração à parte é um genocídio programado e tolerado pelos países do mundo que lavam suas mãos sujas de sangue.

O que acontecerá aos europeus e norte americanos se as regiões do hemisfério sul e Ásia não tiverem mais matérias primas excedentes exportáveis para garantir suas manufaturas ? Os primeiros sinais de fadiga dessas economias de predação começam a se fazer sentir. 

A tradição dos arianos é expansionista. Descendentes de tribos de pastores que se espalharam pela Ásia e Europa, vagamente federados se dispersaram nos fins da Idade do Bronze e impuseram sua presença entre os povos autóctones, palavras da sua linguagem, o védico, deixaram marcas nos idiomas de muitos países. Seu modo de vida se assemelhava fortemente com o dos gregos pré-homéricos, teutões e celtas e são os ancestrais os formadores dos estados na Europa e Sudoeste da Ásia. Após conquistar os povos de agricultores mais fracos, tomaram suas terras férteis e desbravaram as florestas, construindo aldeias permanentes e fundando uma série de pequenos reinos nos quais se estabeleceram como governantes dos vencidos. Essa é a lógica da cultura ariana nos últimos milhares de anos. Com sua expansão constante invadiram os demais continentes e impuseram sua cultura de predação para todos os povos sem exceção e agora vivem seus descendentes o impasse pela falta de novos espaços para conquistar e povos para subjugar antevendo o declínio de sua forma de encarar a humanidade como presa de seus valores bélicos.

A ideologia antropofágica, da economia de predação, ainda está vigente no planeta. Graças a esse pensamento ordinário de antigos nômades agora sedentários, nossa casta dominante, o mundo atravessa uma fase de extremo perigo. O aumento desmedido da população do planeta não é a afirmação da humanidade sobre seu domínio  mas um desequilíbrio biológico grave que torna sua existência em risco iminente de extinção. Para o futuro próximo governos antes democráticos irão se tornar cada vez mais autoritários para poder manter as crescentes populações em ordem. A liberdade individual está se tornando uma quimera em todos os países do mundo. Inimigos verdadeiros ou falsos irão ser utilizados para que o controle individual aumente. Os meios de comunicação, em evolução vertiginosa, deverão ser o principal alvo para esses controladores. 

Concluir esse trabalho com uma mensagem pessimista é extremamente difícil  Como todos acredito que um novo mundo é possível, mas infelizmente não o será nem na minha e nem na próxima geração. Teríamos que estar correndo o dobro que estamos correndo agora e a realidade bate a nossa porta todos os dias com suas notícias desalentadoras. A percepção do seu meio como macroestrutura interligada  e a análise de informações dele de forma cientifica é atributo exclusivo do ser humano. Como organismo senciente está no ponto mais elevado da escala alimentar do planeta, posição conquistada pela evolução de suas técnicas, as quais possuí domínio exclusivo em relação aos seus parentes, os demais mamíferos superiores que habitam esse pequeno planeta. Os valores éticos da maioria das pessoas estão se modificando aos poucos, em relação à natureza, o homem já não está sozinho e percebeu que faz parte dessa grande unidade que é a biosfera planetária. Mas o tempo urge, as mudanças deveriam ter sido implementadas ontem. Se não educarmos as populações do mundo logo a lei do mais forte será imposta novamente. Os dois caminhos que se apresentam HOJE é o caos ou a coerção. É necessária a criação de uma terceira via.

"O que a experiência e a história ensinam é isso - que as pessoas e os governos jamais aprendem nada com a história, nem agiram por princípios dela deduzidos" - (Hegel - Filosofia da História, Introdução)




Bibliografia:

1) Ferreiros e Alquimistas - Mircea Eliade - Ed. Relógio D'agua - Lisboa

2) Mito e Realidade - Mircea Eliade - Ed. Perspectiva - 2011 - 6° Ed.

3) Canibais e Reis - Marvin Harris - Ed. 70 - 1977 - Lisboa

4) A Situação Humana - Aldous Huxley - Ed. Globo - 1977