segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Ser Onívoro II – A Cultura de Massa e o Almoço dos Campeões




Conforme já escrevemos no início deste ensaio em 2010 os hábitos alimentares de nossos ancestrais influenciaram diretamente como observamos o mundo hoje. Suas permanências na nossa dieta influenciaram a forma como percebemos e exploramos o planeta. Quando entabulamos o permanente debate sobre como é desafiador criar uma sociedade mais igualitária, para a maioria das pessoas as questões ideológicas e religiosas, a moral e a ética ou a política são colocadas em primeiro plano para aqueles que possuem uma formação humanista.  A equação parece não fechar, nem fazer sentido em relação a idealização de uma sociedade igualitária ao constatarmos a realidade dos fatos cotidianos da condição humana e seu comportamento como indivíduos dentro da competitiva sociedade global.  Dizem que é difícil ensinar novos truques a um cão velho. E podemos considerar que esse ponto de vista até certo ponto sofismático no caso dos caninos é uma interpretação válida para os predadores de uma forma geral. O comportamento atávico do predador condiciona seu hábito alimentar e no caso do ser humano condiciona sua cultura como um todo. Quero dizer com isso que depois de ser despojado de suas roupagens efêmeras que são suas crenças e suas pretensões pseudo filosóficas o homem comum só tem uma preocupação que é saciar sua fome. Essa obviedade é do conhecimento dos profissionais de comportamento que integram as grandes empresas de propaganda. É essa pulsão básica que lhes proporciona os grandes volumes de verbas publicitárias de onde tiram seu principal faturamento.

Pretendo afirmar portanto que os alimentos transmitem de forma abrangente e significativa mensagens simbólicas. Ampliando a máxima de Claude Lévi-Strauss, alguns alimentos são “bons para pensar” e outros são “maus para pensar”. A comida deve suprir o estomago coletivo para então alimentar a mente coletiva que sustenta e recria a cultura humana. Mas o que aparece primeiro, as mensagens e significados ou as preferencias e aversões ?



O ser humano em sua evolução deixou de ser herbívoro, para se tornar um supercarnívoro e depois um onívoro fenomenal. A fabricação e o aperfeiçoamento de ferramentas, o incremento da agricultura e pecuária, bem como de técnicas cerâmicas e metalúrgicas nasceram do empenho de grupos humanos para garantir sua sobrevivência alimentar. Cada sociedade desenvolveu sua própria dieta conforme foram sucedendo as transformações do seu meio geográfico e atualmente ocorre em função da globalização dos meios de comunicação uma tendência para a homogeneização dos hábitos de consumo baseados na proteína animal como base alimentar e na agroindústria e indústria de embalagens para produzir e condicionar os alimentos consumidos.

Mas a exploração da proteína animal não é o único produto em ascensão no mundo globalizado. O homem do séc. XXI possui várias extensões tecnológicas que funcionam como seus membros para atingir longas distâncias, comunicar-se e sentir-se inserido no mundo globalizado, onde o obsoletismo forçado e o avanço vertiginoso da tecnologia exige um upload constante, uma atualização de hardware promovida pelos grandes conglomerados tecnológicos que ultrapassam qualquer critério ideológico e que exigem uma exploração crescente de recursos naturais em todo o mundo. A tecnologia é uma faca de dois gumes, por um lado cria novas ferramentas para o desenvolvimento humano e por outro aprisiona o homem em uma dependência que se aproxima de uma drogadicção.  Então o consumo destes produtos de forma desenfreada, como define o termo, é como o alimentar-se, aprimorar em escala infinita esses membros artificiais a custa do meio ambiente planetário.

Para tanto grandes parcelas de insumos tem sido retirados em todas as partes do mundo para suprir uma crescente demanda de “alimentos” para as “próteses”, para fazer funcionar todos os apetrechos, a que o homem contemporâneo se escravizou, para sentir-se inserido em sua sociedade tecnológica. Minerais e outros materiais raros retirados do coração do planeta são indispensáveis para manter suas estruturas ou pseudópodes tecnológicos funcionando em escala funcional crescente de consumo desenfreado. O sentido biológico dessa expressão ratifica a realidade de que mesmo que o homem comum pretenda ficar protegido através de suas ferramentas ele ainda é em larga medida um animal vivendo e pensando em seu meio natural. Sua fina couraça de civilização técnica não o protege dos hábitos alimentares desenvolvidos nos últimos milhares de anos e que são condicionados e afirmados pela sua economia de exploração.

Australopítecos

O que significa Ser Onívoro ? Para podermos responder essa questão temos que observar a natureza a nossa volta. Alguns mamíferos superiores como os Lobos, os Ursos e Porcos possuem alimentação variada e podem se alimentar tanto de vegetais quanto de carne. No caso do ser humano os estudiosos consideram o fato de sermos onívoros recentes, como nossos primos os chimpanzés  e  isso aconteceu devido ao sistema digestivo do ser humano ser bem parecido com o dos herbívoros – intestino longo e acidez maior, saliva com enzimas digestivas, mas por outro lado adquirimos em comum com os onívoros a flora intestinal variada. Somos, portanto seres onívoros influenciados pelo nosso meio que, no caso humano, se traduz na construção de uma cultura particular que desenvolveu para sobreviver em ambientes diversos a partir de sua própria estrutura biofísica e seus ciclos circadianos*.

*Nota do Autor: O hipotálamo é a mais primitiva porção do encéfalo dos mamíferos que age eletroquimicamente sobre os neurônios do sistema límbico envolvido principalmente no controle das emoções. Também controla a temperatura corporal, a fome, sede, e os ciclos circadianos, quer dizer, o período de aproximadamente um dia (24 horas) sobre o qual se baseia todo o ciclo biológico de qualquer ser vivo influenciado pela luz solar. O ritmo circadiano regula todos os ritmos materiais bem como muitos dos ritmos psicológicos do corpo humano, com influência sobre, por exemplo, a digestão ou o estado de vigília, passando pelo crescimento e pela renovação das células. Essa pequena porção cerebral, o hipotálamo controla a temperatura corporal, o apetite e o nível de água no corpo, além de ser o principal centro da expressão emocional e do comportamento sexual.


Características de Comportamento dos Seres Onívoros:

- Voracidade 

Os animais onívoros possuem hábitos alimentares que os distinguem de outras espécies. A luta pela sobrevivência estabeleceu um comportamento de agressividade voraz para com o alimento que define com certeza como pulsão de prazer na sua apreensão e consumo.  Konrad Lorenz, o mestre da etologia escreveu sobre como era possivelmente o comportamento de nossos ancestrais: “A vida do homem era então dura e difícil. Como caçador e carnívoro, dependia dos azares da caça. Estava quase sempre faminto, sem ter nunca certeza de satisfazer essa fome. O homem que vivia num clima tropical, evoluindo aos poucos para zonas temperadas, certamente sofreu com isso. Com suas armas primitivas, devia viver num estado permanente de alarme e angústia. Nesse contexto, muitas atitudes que hoje consideramos desprezíveis ou culposas eram perfeitamente justificáveis. Uma estratégia inspirada pelo instinto de conservação transformava necessidade em virtude e mandava que comessem o mais possível toda vez que capturavam um animal de bom porte. A sabedoria consistia em se empanturrar. O mesmo se dava com o pecado mortal da preguiça. Obter um pedaço de carne custava tal esforço que era preciso cuidar para não despender mais energia do  que o necessário. Os perigos que ameaçavam o homem constantemente eram tais que correr um risco inútil parecia insensatez. E uma prudência próxima da covardia era praxe em todas as circunstâncias.”

Alguns estudiosos acreditam que o sucesso comercial dos supermercados em relação às antigas vendas de bairro ou armazéns que tinham atendentes se deve ao fato da necessidade do comprador  em  coletar nas estantes os produtos  e com isso garantir maior prazer na compra dos itens alimentares como seus ancestrais faziam nas estepes. O número de pessoas com sobrepeso no Ocidente atualmente permite constatarmos o quanto a voracidade é responsável pela superalimentação na sociedade de consumo visando proporcionar a satisfação do prazer oral e sentimento de segurança para certos indivíduos como suporte contra a ansiedade, doença comum da sociedade industrial contemporânea.
  
A grande pesquisadora de Chimpanzés em campo Jane Goodall que realizou por anos  pesquisas na reserva de Gombe na margem oriental do Lago Tanganica pode observar certa vez um chimpanzé velho e forte, que havia capturado um antílope, quase tão grande como ele próprio. Satisfeito com sua proeza sentou-se no chão e começou a banquetear-se , dando mostras visíveis de prazer. Mantinha a enorme presa segura sob o braço esquerdo e, após cada mordida, comia algumas folhas de “salada” arrancadas de um ramo que segurava na outra mão. Quando ficou satisfeito, limpou as mãos lambuzadas em grandes folhas, como fossem guardanapos.

A razão de segurar tão firmemente sua presa era um bando de chimpanzés famintos ao seu redor que esperavam a ocasião para abocanhar algum pedaço. Nenhum deles tinha o menor direito a qualquer bocado, nem sequer os machos de hierarquia superior. O chefe do bando nesse caso perde autoridade quando se trata o alimento  da presa de um caçador. Assim todos ficam acocorados ao redor do chimpanzé que se delicia e mastigando em seco, estendem a mão aberta como mendigando, num gesto tipicamente humano. Só uma fêmea que carrega sua cria de poucas semanas tem precedência e obtém permissão de pegar um naco que melhor lhe apetecesse. Todos os demais têm que esperar até que o proprietário da caça lhes coloque algum pedaço dentro da mão estendida. Quando um macaquinho de quatro anos torna-se demasiadamente insistente, pela falta de comportamento, levou uma bofetada do caçador. Um  deles, menos chegado ao dono da iguaria, recebeu um osso descarnado. Nada coube tampouco  a um velho macaco rabugento, de uns quarenta ou cinquenta anos de idade que, julgando não estar sendo observado, tomou a liberdade de servir-se por sua própria conta. Foi apanhado em flagrante. Não pelo dono da carne mas por um dos vizinhos que, para conquistar as boas graças do caçador, encarregou-se de dar uma bela surra no ladrão.
      
- Canibalismo 

Os antigos cronistas que descreveram os hábitos antropofágicos das tribos sul americanas destacaram o furor e a voracidade das mulheres ao consumirem as carnes dos inimigos abatidos nesses rituais e compararam o frenesi delas com as cerimônias em orgias omofágicas das mulheres gregas, no devoramento de animais vivos (cabritos, touros e pavões reais), que representavam Dioniso. Acreditam que em seus primórdios tais ritos eram realizados com vitimas humanas. Nada melhor para representar a morte e ressurreição de um deus que uma vitima humana.

O comportamento canibal pode ser comum entre os onívoros, mas a maioria deles come a carne da própria espécie quando já estão mortas ou por engano. As duas únicas exceções observadas entre as espécies animais são os porcos e os seres humanos quando famintos. Estudiosos de nutrição sabem que é a carne humana a mais nutritiva para o ser humano, pois possui todos os nutrientes necessários para a sua alimentação.

Como já vimos existem duas formas estabelecidas de antropofagia ritual, o exocanibalismo, quando se come o inimigo aprisionado de outra tribo, costume comum entre os antigos ameríndios,  polinésios e melanésios e também recorrente entre os pastores das estepes da Ásia e o endocanibalismo que é o ritual de morte de algum ente querido que através da diluição de seus ossos ou da exumação do seu corpo, que após um tempo, o ente querido é comido ou ingerido num ritual fúnebre de assimilação de suas qualidades de força e valor vital. Ambos os costumes estão relacionados diretamente a ideia do herói, do “bem amado”, do cultivo das qualidades do guerreiro inimigo ou parente, seu valor, sua coragem que deve ser absorvida pelo algoz ou ente amado. Até mesmo sua descendência pode ser garantida através do intercurso sexual da vitima antes do sacrifício com as mulheres núbeis da tribo que irão chorar de forma simbólica como parte do ritual de morte o devoramento do cativo.

Se considerarmos a guerra como uma forma de caça organizada para conseguir carne, os custos excedem muito os benefícios. Embora os humanos sejam animais de grande porte, capturar uns poucos custa um esforço enorme. As presas encontram-se tão alertas, são tão esquivas e se acham bem informadas sobre a caça como os caçadores. E como presas possuem outra característica única: diferente dos tapires, peixes, lagostas são menos atrativos conforme maior são seu número em relação aos caçadores. Isto se deve a que os humanos são a presa mais perigosa do mundo e têm grandes possibilidades de matarem seus caçadores como a história nos ensina.

Mas os que praticavam a antropofagia ritual na guerra não eram caçadores de carne humana, mas guerreiros dedicados a perseguir, matar e torturar aos seus semelhantes como resultado de sua cultura intergrupal. Portanto não podem atribuir-se seus costumes a caça propriamente dita, mas a guerra enquanto ritual humano como já vimos antes. A perpétua vingança que os Tupinambás, Hurões e Iroqueses tinham com seus inimigos não tinha por objetivo conseguir carne humana, mas a obtinham como efeito colateral do conflito, como atividade ritual intergrupal que integrava seu conflito com os vizinhos. Tradição que era correspondida entre captor e cativo. Assim pois consumir a carne dos prisioneiros de guerra era um ato racional a partir da perspectiva da relação custo benefício e uma alternativa prudente, do ponto de vista nutricional, para evitar-se o desperdício de uma fonte de alimento de origem animal perfeitamente adequada. Como fonte adicional de proteína animal, a carne dos cativos era sem duvida bem recebida entre as mulheres, que padeciam mais da “fome de carne” que os homens. Isto explicaria o destacado papel que desempenhavam as mulheres tupinambás e iroquesas nos rituais e banquetes canibais, como explica Marvin Harris. Mas não podemos deixar de recordar que o papel feminino nas tribos ameríndias não é absolutamente passivo. A mulher na tribo incita o guerreiro para que cumpra seu papel de provedor, mas principalmente de defensor da aldeia. A participação feminina no cruento banquete promove o moral nos guerreiros, na certeza de sua missão cumprida, no ritual de vitória, ao conseguir desbaratar os inimigos, quase sempre atacados em emboscadas nas matas ou surtidas noturnas nas aldeias, de onde proveem os cativos a serem devorados. Assim seus rituais reforçavam as relações da comunidade e com as comunidades vizinhas aliadas e serviam para estimular entre os mais jovens os atributos necessários do guerreiro, sem culpa, ao torturar e matar seus inimigos em terríveis rituais de sangue que era correspondido igualmente pelas vitimas, frutos da mesma cultura e meio.

http://odisseiaantropofagica.blogspot.com.br/2014/07/vinganca-e-dadiva-lei-do-eterno-retorno.html

O jesuíta Antônio Blazquez em 1557 descreveu como ocorriam estes rituais de morte. Após quatro anos vivendo no Brasil Blazquez escreveu:”os índios encontravam sua felicidade em matar a um inimigo, para depois, por vingança, comer sua carne..., não há outra carne que gostem mais”

“Entraram na praça seis mulheres desnudas cantando a sua maneira, gesticulando e movendo-se de tal forma que pareciam demônios; iam cobertas dos pés a cabeça com algo que parecia escaravelhos feitos de penas amarelas; nas costas levavam um cacho de plumas semelhantes a crinas de cavalo e, para animar o festejo, tocavam flautas feitas com as tíbias de seus inimigos morto.(...) Levavam a cabo todas essas ocorrências sete ou oito dias antes de matá-los. Como naquele momento haviam sete prisioneiros para matar, lhes fizeram correr e atiraram pedras e frutas neles enquanto as mulheres os aprisionavam com cordas atadas ao pescoço; embora o prisioneiro não queira, fazem-no atirar frutas, desafiando-lhe(...) Os cativos estão convencidos de que participando nestas cerimônias são valentes e fortes, e se por temor a morte negam-se a participar, chamam-lhes débeis e covardes; e portanto fugir é na sua opinião uma grande desonra. Os cativos, quando estão a ponto de morrer, fazem coisas que se não houvesse visto não poderia crer...”
  
Tal comportamento, hoje considerado tabu entre os povos civilizados, só ratifica, de forma freudiana, o quanto  pode ser natural o ato extremo de alimentar-se do próximo, quando em situações limite, como acidentes de avião onde os homens ficam presos em regiões inóspitas, ou em naufrágios a deriva no oceano, ou em grandes cercos em cidades em guerra quando as provisões esgotam-se, quando se permite ao homem serem ultrapassados os limites culturais em função da urgência na sobrevivência de alguns.

No campo de batalha a carne do inimigo pode ser o suprimento necessário para o bando guerreiro poder manter o conflito. Os hurões e iroqueses não se restringiam em levar os inimigos para serem torturados e devorados em suas aldeias. Existem relatos que consumiam uma quantidade muito maior de carne humana quando estavam em meio a campanha, enquanto estavam longe de seus povoados, como resultado das batalhas campais que mantinham com seus inimigos. Nestas batalhas eles se viam obrigados a comer as carnes dos mortos como rações de combate. Por exemplo, depois da batalha contra os franceses que teve lugar em 17 de Janeiro de 1693 perto de Schenectady, Peter Schuyler, alcaide de Albany, informou que seus aliados iroqueses “de acordo com sua bárbara natureza”, esquartejaram, assaram e devoraram aos inimigos mortos. Cadwallader Colden, historiador e governador de Nova York, que interrogou Schuyler sobre o incidente, confirmou e ampliou estas informações. Colden escreveu:

“Os índios comeram os cadáveres dos franceses que encontraram...Schuyler (como ele mesmo me afirmou), que naquele momento ia com os índios e foi convidado a beber um caldo que haviam preparado alguns deles. Schuyler bebeu até que os índios mergulharam no pote de cozimento e tiraram a mão de um francês, coisa que pôs fim ao seu apetite.”

Sendo os moicanos aliados dos ingleses contra os franceses, nem Colden nem Schuyler tinham interesse em tornar relevante a selvageria dos costumes iroqueses. Os franceses sabiam que seus aliados hurões também usavam carne humana como rações de combate conforme seus relatos. Jacques Devonville, governador de Nova França, informou que os hurões, após uma batalha que travaram contra os senecas em 1687, devoraram os mortos vencidos: “Presenciamos o doloroso espetáculo das habituais crueldades dos selvagens. Estes esquartejaram aos mortos, como nos açougues, para que coubessem no pote. A maior parte abrindo-lhes ainda  quentes, para que podessem beber seu sangue.”

O consumo dos guerreiros caídos para garantir as rações de combate foi uma prática comum entre as sociedades tribais em diferentes partes do mundo. O bem documentado caso dos maories da Nova Zelândia fornece alguns detalhes importantes. As partidas de guerreiros maories levavam consigo, propositalmente, pouca comida. Viviam do ambiente, de onde era possível, para aumentar sua mobilidade e o fator surpresa no ataque. Durante a marcha “esperavam com ânsia os víveres de origem humana e falavam do doce que era a carne do inimigo”. Os maories cozinhavam os mortos no campo de batalha e a maioria dos cativos depois dela. Se havia mais carne que podiam comer a desossavam e a colocavam em cestos para consumir durante a viagem de volta. Algumas vezes se perdoava a vida aos escravos, até que eram imolados e devorados num banquete posterior.

Segundo o antropólogo Andrew Vayda: “Independemente de que os maories acreditassem praticar a vingança, conseguir mana, adquirir alimento ou receber prazer mediante a digestão, o fato era que a carne humana tinha valor nutritivo. Este fato fez do canibalismo uma prática útil em tempos de guerra.”

Estes costumes possuem raízes profundas nos povos de todos os continentes, como fator arquetípico de todas as guerras iniciadas pelo ser humano e portanto o individuo comum não deve iludir-se ao imaginar que num conflito onde as pessoas são apenas mortas e enterradas em valas comuns seja menos cruel que outro onde o inimigo é devorado em algum ritual antropofágico.
      
- Territorialismo 

O massacre de um indivíduo ou de um bando vizinho pode ser proveitoso para o animal, se com isso ele puder se apossar do território, dos alimentos ou das fêmeas do vizinho. Mas os ataques também envolvem certo risco para o atacante. Muitas espécies animais não têm meios para matar seus pares e, dentro das espécies que os têm, algumas se contêm. Contudo nas espécies sociais onívoras como primatas, suricatos, suínos e lobos, o assassinato pode adquirir a forma de ataques coordenados de membros de um bando contra membros de um bando vizinho, isto é, são promovidos massacres ou guerras. Sua forma e magnitude varia de acordo com a espécie.

- Sectarismo ou Tribalismo  

Já foi dito que “um chimpanzé equivale a nenhum chimpanzé” e que “um babuíno sem o seu bando equivale a um babuíno morto”. Ambas as espécies de primatas dependem de seus grupos para sobreviverem ao seu meio e com os humanos não é diferente. Para defesa ou ataque a organização social é mais eficiente.

Entretanto um chimpanzé comum tem tanta chance de ser morto como qualquer ser humano.  Especialmente esclarecedor e bem documentado, foi o extermínio de um bando de chimpanzés comuns estudado por Jane Goodall, que foi cometido por outro bando entre 1974 e 1977 em Gombe. Ao final de 1973 os dois bandos estavam em situação equivalente: o bando Kasakela, ao norte, tinha oito machos adultos e ocupava 15 quilômetros quadrados, e o bando Kahama, ao sul, tinha seis machos adultos e ocupava 10 quilômetros quadrados. O primeiro incidente fatal ocorreu em Janeiro de 1974, quando seis dos adultos Kasakela, um macho adolescente e uma fêmea adulta deixaram para trás os mais jovens, viajaram para o sul e depois se moveram em silêncio até surpreenderem um macho Kahama chamado Godi. Um macho Kasakela jogou Godi no chão, sentou-se na sua cabeça e agarrou suas pernas, e os demais passaram dez minutos batendo nele e mordendo-o. Finalmente um dos atacantes deu o golpe de misericórdia atirando uma grande pedra e o bando partiu. Apesar de conseguir se levantar, Godi ficou seriamente ferido, sangrava e tinha marcas de furos. Ele nunca mais foi visto e provavelmente morreu dos ferimentos.

No mês seguinte, os machos Kasakela e uma fêmea novamente viajaram para o sul e atacaram o macho Kahama Dé, que já se encontrava debilitado por algum ataque anterior ou doença. Os atacantes puxaram Dé de uma árvore, o pisotearam, morderam e espancaram, depois arrancaram pedaços da sua pele. Uma fêmea Kahama que estava no cio foi obrigada a seguir para o norte com os atacantes. Dois meses depois, Dé foi visto ainda vivo, mas esquálido, com a espinha e a pelve protuberantes, sem alguns dedos das mãos, sem uma parte de um dedo do pé e com o escroto reduzido a um quinto do tamanho normal. Depois disso não foi mais visto.

Em Setembro de 1975 a fêmea Kahama Madame Bee foi gravemente ferida após pelo menos quatro ataques não fatais no ano anterior. O ataque foi feito por quatro machos Kasakela adultos, enquanto um macho adolescente (inclusive a filha raptada de Madame Bee) observavam. Os agressores morderam, golpearam, estapearam e arrastaram a chimpanzé, pisotearam-na, pularam sobre ela, a atiraram no chão, voltaram a erguê-la e a jogaram no chão, depois a empurraram, fazendo-a despencar de uma encosta. Ela morreu dos ferimentos  cinco dias depois.

Em Maio de 1977, cinco machos Kasakela mataram o macho Charlie, do bando Kahama, mas os detalhes da luta não puderam ser observados. Em Novembro de 1977, seis machos Kasakela agarraram o macho Sniff, um Kahama, o golpearam e morderam, o arrastaram pelos pés e quebraram sua perna esquerda. No dia seguinte ainda estava vivo, mas não foi visto novamente depois disso.

Dentre os chimpanzés Kahama remanescentes, dois machos adultos e duas fêmeas desapareceram por causas desconhecidas e duas fêmeas jovens se transferiram para o bando Kasakela, que passou a ocupar o território Kahama. Entretanto em 1979, o próximo bando ao sul, o Kalande, com pelo menos nove adultos machos e portanto mais poderoso, começou a invadir o território Kasakela e pode ter sido responsável pelo desaparecimento de vários indivíduos do bando Kasakela ou por seus ferimentos.

Jared Diamond em sua obra: “O Terceiro Chimpanzé”, descreve como ineficiente o ataque dos chimpanzés contra seus semelhantes, se comparados com os genocídios perpetrados pelos homens, pelo tempo que levavam os ataques, de dez a quinze minutos de agressões que não atingiam órgãos vitais, pela sobrevivência precária das vítimas que só após algum tempo chegavam a óbito. Ele concluiu que a falta de ferramentas eficazes, no caso a falta de armas dificultava a ação violenta e tornava-a menos mortal. Outro fator que o escritor antropólogo define como demonstração da ineficiência do comportamento agressivo grupal dos Chimpanzés é o tempo transcorrido: três anos e dez meses para conseguirem o desbaratamento do grupo rival.

Em relação a estratégia usada de promover emboscadas onde vários indivíduos atacavam um solitário podemos afirmar que se assemelha ao utilizado pelas tribos de caçadores coletores, pelas descrições dos observadores, onde um individuo solitário é atocaiado por vários quando vai até o rio buscar água  ou qualquer outra atividade similar que o afasta da comunidade principal.

É evidente que apesar de tais considerações até certo ponto óbvias podemos traçar alguns paralelos com as guerras de gangues urbanas por territórios de influência e considerar também que os chimpanzés agem dessa forma agressiva possivelmente em busca de áreas de coleta de alimentos mais amplas e fêmeas jovens para procriação. Aliás tema também recorrente nas guerras humanas do passado e do presente.

Outras espécies de onívoros sociais têm comportamentos semelhantes. Suricatos, ratazanas, raposas  possuem seus territórios delimitados e são extremamente violentos quando se sentem ameaçados por grupos de semelhantes estranhos.    

- Extermínio 

A expansão humana no planeta após a última glaciação tem sido relacionada pelos estudiosos à extinção de várias espécies animais, os grandes mamíferos que proliferavam no período imediatamente posterior.  A caça de subsistência pode ter ocasionado o fim dos mamutes, rinocerontes, equinos, preguiças gigantes e outros animais de menor porte que habitavam no continente europeu e parte da América. Esse processo ainda ocorre, atualmente em escala geométrica em todos os quadrantes da Terra com o aumento desordenado da ocupação humana. O fim da biodiversidade já se avizinha para os próximos 100 anos de forma definitiva.

Pesquisadores encontraram referencias similares de extermino de espécies por povos que emigraram nos anos mil para as Ilhas de Madagáscar e Nova Zelândia, dois habitats até então preservados da presença humana. Nesses locais remotos foram localizadas ossadas de aves pernaltas com até três metros de altura, em Madagáscar lêmures do tamanho de gorilas e na Nova Zelandia águias com mais de três metros de envergadura que eram possivelmente os predadores das aves pernaltas e estas espécies foram completamente extintas, por coincidência ou não na mesma época da chegada dos humanos antepassados dos atuais malgaxes e maoris. Utensílios feitos com os ovos das aves podem ser encontrados nas escavações comprovando que humanos e esses animais ciclópicos conviveram até o completo extermínio dessas espécies que não tinham condições de defenderem-se desse novo predador fenomenal.

Junto, escondidas nas embarcações dos humanos, chegaram as ratazanas que eram desconhecidas nas ilhas e encontraram um habitat favorável para proliferação, com fartura de alimentação, e que promoveram também sua dose de extinção de espécies locais de pequenas aves e outros animais que não tinham defesas naturais  para enfrentar a voracidade desse pequeno roedor onívoro.

Os humanos, o nosso ramo de primatas, nossos antepassados diretos, começaram a domesticar cães em algum momento entre 40 mil e 11 mil anos atrás. Como isso aconteceu pouco se sabe. Mas podemos acreditar que foi o único animal domesticado sem ser tangido ou aprisionado pelo homem pré-histórico. O cão primitivo aproximou-se espontaneamente do ser humano e passou a conviver em simbiose com seus hábitos comuns de caça e posteriormente de pastoreio.  Os cientistas especulam que a aliança entre humanos e canídeos evoluiu aos poucos, a partir do momento em que os canídeos decidiram seguir os grupos humanos que migravam atrás dos grandes rebanhos, interessados em se banquetear nas carcaças de animais que os caçadores deixavam para trás. Para os humanos, essa companhia era vantajosa – além de afastar potenciais predadores, era muito melhor ter cães como aliados estratégicos. As duas espécies evoluíram juntas – os canídeos, eventualmente, ajudaram humanos a caçar melhor, o que conferiu vantagem competitiva ao Homo sapiens, quando comparados a outros grupos de hominídeos. Possivelmente as extinções dessas outras espécies de hominídeos tenham relação direta com a maior eficiência desses caçadores humanos em relação aos seus competidores mais primitivos e até mesmo ao seu extermínio.

De todos os povos que habitaram o continente eurasiano com certeza os cavaleiros Citas representaram a essência dos guerreiros que subjugaram e impuseram pela força sua cultura sobre os autóctones da região em vagas de migração sucessivas na pré-história, nas Idades do Bronze e do Ferro. Seus costumes possuem recorrências similares entre os gregos, romanos e germânicos, povos também oriundos da cultura indo ariana presente na sua difusão concêntrica por todo o continente nas ondas sucessivas de penetração.  Suas cerimonias fúnebres de culto aos manes envolviam propiciarem banquetes aos mortos. São esses costumes descritos por George Dumézil em relação aos Osetas, descendentes dos Citas: “Para seu alimento e suas comodidades, os mortos dependem das oferendas rituais que lhes fazem seus parentes ou descendentes, das comidas funerárias muito custosas, ás vezes causadoras da ruína, que propiciam no primeiro ano de dor e repetem-se depois com menos frequência.” (La Cortesana Y Los Señores de Colores- pág 141 – Fondo de Cultura Económica – México- 1989)

Para evitar-se a Vendetta, como ato de conciliação e suprema justiça, o suspeito de um crime de roubo ou adultério pode arrogar sua inocência ao invocar uma maldição para seus mortos e descendentes e para ele mesmo no outro mundo, a um castigo eterno de prover com alimento de carnes interditas (gatos, cães e burros) aos seus, caso seja culpado, através de um juramento, para escapar da vingança certa. Denominavam este ato extremo de “Oferenda Funerária Pútrida”. Para dar realidade a sua confissão de inocência o suspeito sacrificava um gato ou cão no cemitério, ou dava bastonadas no animal de tração, que tinha função de simulacrum expiatorium do objeto de sacrifício, isto é, do suplicante.

Quando um homem sofre um agravo de outro homem e quer revidar, mas tem consciência que não pode levar adiante o combate sozinho, sacrifica um boi, do qual esquarteja e coze as carnes. Estende o pelego cru do animal sobre a terra e senta em cima, com os braços para trás das costas, como se estivesse manietado. Esta é a forma mais afrontosa do suplicante exigir uma reparação. Quando a carne está cozida, os parentes e aliados, que desejam auxiliar na reparação da honra dele, tomam cada um seu pedaço de carne e pondo o pé direito sobre a pele prometem fornecer conforme a capacidade dos meios de cada, o que seja necessário, em cavalos e homens, cavaleiros e infantes. O mais pobre oferece sua própria força braçal. Colocar o pé sobre a pele equivale a um juramento. Com isso selam um “Sacramentun”  de guerra. O juramento se expressa por um ato comunal através do consumo das partes da rês sacrificada e pela ação de colocar o pé sobre a pele da vaca ou boi imolado para tal fim. Esta cerimonia possui raízes nos primórdios dos tempos e demonstra a importância do sacramento entre os povos tradicionais.

É interessante constatar que nos mitos de formação das castas entre esses povos nômades de pastores de rebanhos não se inclui o personagem do agricultor. Nem mesmo os Osetas dispõem de um personagem relevante entre seus heróis de formação ligados ao plantio da terra. De forma semelhante, entre os celtas, romanos e germânicos são os vencidos nas guerras que detêm o conhecimento e executam o plantio da terra. Os germanos continentais inclusive desprezavam a agricultura conforme registrou Cesar.

A história da humanidade no planeta está recheada de guerras de extermínio de seres humanos. É a própria historiografia clássica uma sucessão de guerras e batalhas, invasões,  formação e destruição de impérios a custa de grupos humanos vencidos, massacrados, escravizados e espoliados. A ideia de estabelecer nessa sucessão de eventos o culto aos lideres que possibilitaram sua consecução faz parte do imaginário da cultura estabelecida no mito do herói. Ainda podemos cultuar Alexandre ou Julio Cesar, até mesmo Napoleão faz parte de nossa herança histórica decorrente da cultura europeia, mas em função dos fatos ainda recentes fica difícil imaginarmos a possibilidade moral de cultuarmos a figura de Hitler, tão ruim ou pior que os outros ícones de nossa historiografia oficial. Mas, e daqui a mil anos?




Cultura de Massa -

Malinowski, num ensaio sobre o funcionalismo, define a cultura como sendo “essencialmente um aparelho instrumental por cujo intermédio o homem se encontra em condições de poder enfrentar os problemas concretos com que se depara em seu ambiente, no curso da satisfação de suas necessidades”. No caso especifico da evolução humana a cultura é uma projeção de seu comportamento onívoro em relação ao meio, tanto para as permissões quanto para os interditos.

Afinal das contas tudo é comida. Desde os banquetes antropofágicos dos Tupinambás descritos nas narrativas dos viajantes até os grandes banquetes dos reis celtas e do axioma romano do pão e circo para atender às demandas da plebe, aos grandes banquetes públicos das polis gregas, e os poltlatch dos tinglit, a tradição da cultura humana  é uma afirmação do aspecto alimentar como forma de conforto e aglutinação da sociedade e mantém suas permanências ainda hoje nas festividades sazonais que ainda cultuam os povos de todo o mundo.

Na pré-história, há 30 mil anos atrás um homem saudável com 35 anos de idade, com descendência de filhos e mulher, vivia num clã estreitamente unido, formado por parentes e amigos, trabalhava em média somente vinte horas por semana caçando carne nutritiva e sem produtos químicos enquanto sua mulher colhia frutas e legumes orgânicos e ambos viviam em relativa liberdade sexual com suas relações no grupo. Eles passavam a maior parte do tempo cumprindo suas tarefas no grupo, participando de rituais, quase toda a noite contavam histórias, batiam tambor, e cantavam as canções da tribo entre pessoas que conheciam e de quem gostavam e confiavam. Embora fossem ambos medianamente bonitos e inteligentes, os seus parceiros na tribo também eram assim. O homem era apenas medíocre, mas eles tinham excelentes relações sexuais, com ótimas preliminares, humor sadio, criatividade e gentileza. Apesar do guerreiro já ter matado mais de uma dezena  de Neandertais, era um ótimo amante, que periodicamente fazia sexo com a companheira. Toda manhã acordavam suavemente com o sol despontando no horizonte sobre a costa que pertencia ao seu clã. Com o avançar da idade, poderiam com sorte viver bem mais uns quarenta anos, a maior experiência de vida como caçador e coletora tornaria a ambos sábios e respeitados, com grande influência sobre os demais integrantes da tribo e pela progênie.

De lá para cá muita coisa mudou. Um trabalhador médio do século XXI com 35 anos de idade trabalha em um terminal de caixa, e dirige um carro que deve ainda muitas prestações, com uma inteligência mediana apenas suficiente para cumprir tal função, pois tirou notas baixas em algumas matérias da faculdade da sua cidade após anos de estudo e teve que abandonar os estudos para trabalhar. Agora está trabalhando no comércio para fazer frente as despesas de moradia e alimentação, por quarenta horas semanais em algum shopping de bairro localizado a 80 quilômetros de distância de onde vivem seus pais e irmãos. Como ele é medianamente atraente e interessante, tem alguns amigos, mas nenhuma namorada fixa em função da situação econômica precária e suas companheiras esporádicas tomam pílula para evitar engravidar quando fazem sexo com ele. Quase sempre essas relações tem curta duração e as parceiras são eventuais. Ele toma antidepressivo, sonha fazer parte de algum dos filmes de aventura e amor que se repetem com frequência na TV. Toda manhã é acordado pelo despertador ao lado de uma luminária barata em seu apartamento de menos de 50 metros quadrados. A rotina acaba com ele aos poucos. Graças aos últimos avanços da medicina viverá bem mais uns 45 anos, durante os quais cada vez mais será menos valorizado, será encarado como um fardo para o serviço social, mas pelo menos terá um computador de última geração para conversar com seus amigos virtuais em alguma rede social da moda.

Consideram os estudiosos que a cultura de massa só surgiu após a Revolução Industrial e intensificou-se ao final da II Guerra com a evolução dos meios de comunicação. A cultura de dominação de massas na verdade surgiu bem antes, como aprendizado coletivo, fruto direto do excedente de produção de alimentos da revolução agrícola, que originou a formação de processos civilizatórios em todo o mundo. Foi formado intencionalmente ou não, como ferramenta de dominação, pelas lideranças, dos grupos que se tornaram sedentários, para melhor assentar os povos que lideravam. Seus lideres formaram crenças comuns e estabeleceram dinastias de reis sacerdotes para melhor comandarem as multidões que necessitavam como mão de obra para o plantio sazonal e a construção das defesas das primeiras polis. Essa ferramenta de dominação foi por sua vez cooptada pelos povos seminômades invasores que posteriormente dominaram as concentrações humanas sedentárias para dar prosseguimento ao processo de exploração e escravização da mão de obra de uma forma mais branda e menos cruel ao processo de dominação visando evitar as potenciais sublevações. Javé, Thor, Turanis, Jupiter, Zeus, AhuraMazda, Vishnu/Indra eram deuses da guerra de povos nômades que foram sincretizados para adoração do gentio que labutava nas plantações e sustentava seus dominadores com a força braçal. Sem as suas mãos cativas na lavoura, nem exércitos, nem impérios poderiam ser construídos. Por isso os agricultores viviam em submissão permanente aos deuses e aos reis e sacerdotes que os legitimavam e eram mantidos como párias sem casta.

O processo civilizatório serviu entre os antigos para atenuar os instintos do ser onívoro em sua plenitude. Voracidade, canibalismo, territorialismo, tribalismo precisaram ser controlados para constituir a Polis, garantir a convivência intertribal e implementar o cosmopolitismo necessário para o desenvolvimento das atividades de produção, a geração dos excedentes necessários para suprir os reis sacerdotes de recursos e manter contingentes de soldados em armas, submeter mais povos e aumentar sua área de influência e comércio baseado em trocas. Na Antiguidade este comportamento imperial garantia maior segurança para a cidade estado que mantinha à distância possíveis inimigos ampliando constantemente suas fronteiras. O extermínio do outro pode ser a garantia da união das tribos da polis, da segurança do reino e o aprisionamento de mais escravos que irão trabalhar nos campos e suprir a mais valia necessária para garantir os excedentes de produção de alimentos. A religião oficial transforma o exocanibalismo em sacrifícios aos deuses de guerreiros inimigos e depois ao propiciar nos templos animais como simulacros dos homens que antes eram imolados. Com isso se garantia a paz entre os escravos que deveriam permanecer submissos aos seus captores. Antigos costumes dos cavaleiros das estepes tiveram que ser abandonados para que pudessem manter a opressão sobre os povos cativos e ao mesmo tempo evitar sua sublevação enquanto exploravam seus excedentes de produção.

Uma grande parte do que seria depois, a religião oficial da Polis, é herança dos cultos agrários. As festas coletivas têm uma origem remota no passado, na sua origem foram cultos de camponeses no próprio meio  onde se comia e bebia com prodigalidade ao serem colhidas as safras. A unidade social primordial era a tribo transformada em aldeia, que inicialmente tinha um caráter matriarcal, mas com a dominação dos cavaleiros das estepes asiáticas tornaram-se patriarcais. Com frequência elegiam um lugar sagrado, uma montanha, um bosque ou uma fonte que a tradição emprestava uma sacralidade particular. Cada grupo fornecia sua parcela de alimentos e bebidas inebriantes, e as aldeias podiam reunir seus clãs para participarem dos festejos e até mesmo jogos de força e perícia que ocorriam nos períodos de início do inverno e da primavera. Estas festas congregavam os clãs e estabeleciam uma cultura particular entre os povos e solidariedade em função de ameaças externas que precisavam ser contidas. Um costume arraigado que permaneceu associado aos eventos sazonais foi a admissão de novos membros no grupo social e bodas anuais entre integrantes de diferentes clãs.

Entre os cultos agrários da Grécia, por exemplo, era frequente a veneração de certos animais, ou mesmo plantas ou seres inanimados, que remontam ao principio totêmico e serviam para definir os diferentes clãs conforme o animal representado e para manter coesa a comunidade arcaica. O totemismo neste caso se apresenta como uma definição de parentesco do grupo social com o animal venerado, um laço de origem tornando interditos sua morte ou seu consumo. Somente quando ocorre a festividade sazonal o interdito é liberado e o animal é sacrificado e consumido durante o sacramento. Reminiscências estão presentes até hoje em nossas festividades de caráter religioso, como tiveram no passado quando o a cerimônia iniciava com o sacrifício das vitimas.

Homero descreve na Odisseia um desses banquetes públicos que contou com a presença de Telêmaco, filho de Ulisses, e de Pala Atena, filha de Zeus, que faziam uma peregrinação em busca de Ulisses que tinha sido enfeitiçado por Calipso e estava retido em sua ilha. Para o povo da cidade de Pilos tinham sido armadas nove longas mesas, cada uma comportando até 500 cidadãos. Cada grupo imolou, então, nove bois e o banquete transcorreu com muito vinho e recitações dos convivas. Também nos cultos à Dioniso, divindade de origem Oriental, com origens imemoriais que foi adotada pelos helenos, cuja natureza dos alimentos é imposta pela tradição ancestral. Assim também, numa cerimonia em honra de Hiakintos  - uma divindade pré-helênica da vegetação – que se celebrava na Argólida, os comensais serviam-se exclusivamente de cabritos.
             
Ainda vivemos o resultado desse processo milenar de submissão e escravismo dos povos agrários sedentários e a sincretização de seus costumes pelos dominadores vindos das estepes, os pastores de rebanhos, entre outras influências culturais palpáveis, do ponto de vista alimentar.  A Revolução Industrial e o Iluminismo tiraram o carácter religioso do controle social, mas mantiveram o padrão de leis e dogmas estabelecidos pela elite dominante descendente dos antigos invasores, para perpetuar a manutenção do status quo de dominação entre os lavradores e os proletários das novas fábricas do capitalismo emergente. E o consumo passou a ser a fé primária que como um culto preenche a voracidade natural do ser onívoro. Criar necessidades infinitas para manter as máquinas das linhas de produção em plena atividade foi a forma de promover a transformação da cultura de massa. Isso ocorreu até a segunda metade do séc. XX quando os pregadores e reclames foram finalmente substituídos por especialistas de comportamento de empresas de publicidade e propaganda. O alimento bruto então é transformado pela agroindústria, embalado e vendido em grandes mercados para uma população urbana que desconhece por completo o seu ciclo produtivo. Gastam-se bilhões para incentivar seu consumo em escala ascendente. Os animais antes imolados e esquartejados nos templos para serem servidos nos banquetes das polis hoje são servidos em gondolas refrigeradas em partes seccionadas irreconhecíveis do todo e embaladas nos supermercados sem o contato do individuo comum, nem o senso com a morte sofrível do animal abatido em algum distante matadouro.

Hoje o reconhecimento da marca de um determinado produto envolve investimentos bilionários em propaganda para um público alvo global. A saber, 94% das pessoas da Terra reconhecem a marca “Coca-Cola” e a maioria delas “responde positivamente” aos seus produtos, o que significa que elas pagarão um valor superior por um produto da marca comparado com outra bebida genérica equivalente. Considerando quando a população global era de 6,5 bilhões de pessoas, a ação mental da Coca-Cola equivale, em média, aproximadamente em 10 dólares por pessoa; isto é, os dois bilhões de dólares que a empresa gastou anualmente em propaganda durante tantas décadas geraram esse reconhecimento da marca que vale aproximadamente 10 dólares por cérebro humano. As outras dez maiores marcas – Microsoft, IBM, GE, Intel, Nokia, Toyota, Disney, McDonald’s e Mercedes - tinham cada uma reputação de marca (brand equity) maior que 26 bilhões de dólares em 2006, ou mais de três dólares por cérebro humano. Essas tendências podem ser consideradas ilusórias, imateriais ou até místicas, mas são suficientemente reais para sustentar milhares de profissionais de comportamento, marketing e propaganda. Não resta dúvida que com a evolução da internet e da neuroeconomia como ciência de estudo de comportamento do consumidor e quando forem aprimorados os mapas de zoneamento cerebrais tornando-os mais eficazes e sofisticados para identificar os setores onde a mente é mais influenciada por determinado estimulo de uma marca tais conceitos deixarão de parecer como fictícios e parte de mais uma teoria de conspiração para dominação global. (Darwin Vai às Compras – Geoffrey Miller)

A civilização como epigonia daquilo que chamamos de florescência  Ocidental na verdade hoje é muito mais um produto em escala da comunicação de massa de grandes conglomerados econômicos do que um fenômeno natural da comunicação interpessoal. O consumo é um fim em si e torna-se hegemônico como forma de comportamento em todo o planeta. Os templos antes dedicados às divindades agrárias agora são imensos centros de compra onde o sagrado deu lugar ao profano culto do valor monetário. Como seu fruto indireto, a exploração de recursos naturais para manterem as fábricas produzindo, os conflitos em países pobres tornam-se cada vez mais sangrentos, antropofagia velada em escala armamentista nunca vista. Multidões cada vez maiores, de migrantes e refugiados, em frágeis embarcações buscam abrigo onde irão servir de trabalhadores braçais e viverem nas periferias para servirem seus novos amos nos grandes centros urbanos do hemisfério norte, onde se concentra ainda incólume o grande capital. A Grande Migração do ser humano no séc. XXI está apenas começando. Bem vindos à gruta de Polifemo !

Cavaleiro Celta com Craneo


Bibliografia:

1) Bueno para Comer - Marvin Harris - Alianza Editorial - Madri - 1989
2) O Terceiro Chimpanzé - Jared Diamond - Edit. Record - 2010
3) A Religião e a Filosofia no Mundo Greco Romano - Otto Alcides Ohlweiler - Edit Mercado Aberto - 1990
4) La Cortesana Y Los Señores de Colores - George Dumézil - Fondo de Cultura Economica - México DF - 1989
5) O Macaco Onívoro - Lyall Watson - Edit. Expressão e Cultura - 1974
6) Vida "Inteligente" dos Animais - Vitus B. Droscher - 1978
7) Darwin vai às Compras - Geofrey Miller - Edit. Best Seller - 2012
   

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A Herança da Casa de Atreu




O Ocidente como epigonia de civilização absorveu e herdou de forma inquestionável o aparato cultural Greco-Romano em sua totalidade de organização politica, social e filosófica. Personagens lapidares de nossa cultura herdada foram sem dúvida nenhuma aqueles que atuaram nos mitos de formação da Hélade associados à obra de um pseudo Homero. Desses ecos do passado após o fim do que os historiadores denominaram de Época das Trevas, que antecederam o período Clássico grego, surgiram os mitemas de tradição micênica, que no transcorrer dos séculos,  como para nós hoje, foram absorvidos com as devidas adaptações naturais decorrentes da transliteração da tradição oral para escrita e adotadas como cultura dos povos oriundos da Ásia que vieram ocupar posteriormente a península grega como lembrança basilar que foi enxertada e vingou como rama vigorosa entre os povos da Antiguidade.

Entre todos os personagens da mitologia grega vale destacar a saga da Casa de Atreu com seus reis vingativos e corruptos, desde sua origem mitológica, a Hybris fatalista de uma dinastia que traça as origens do Peloponeso, como explicação de origem mística e secular de uma família fadada ao conflito permanente em constante luta pelo poder e que serviu de inspiração para a criação de poemas, tragédias, obras literárias de todos os tipos que chegaram até nós e mais recentemente de produções cinematográficas, por tratar-se de um drama universal que nunca envelhece, pois fala da condição humana no seu plano mais real e com evidentes conotações psicológicas sempre presentes nos conflitos humanos.



Alguns estudiosos pretendem que com a invasão dória, povo bárbaro oriundo da Ásia, e sua penetração na península, invejosos do prestigio dos soberanos Aqueus, entre todos, o mais importante, Agamenon, procuravam assim denegrir a imagem da casa real micênica. Assim pretendiam impor seu poder não só através da força das armas, mas também pela simpatia do povo a sua causa. Os temas são comuns e recorrentes às origens de ambos os povos que povoaram a hélade em função de uma raiz comum mais primitiva perdida nos primórdios da pré-história. O roubo de gado, o rapto de mulheres, a antropofagia, o fratricídio e o parricídio são uma constante nesses mitos.



A saga se inicia na figura de Tântalo, o rei da Lídia e filho do monte Tmolo. Certo dia visitaram-no os deuses do Olimpo. Pois quem tem um pai que é um monte pode dar-se ao luxo de receber tais visitantes ilustres. Mas na sua qualidade de príncipe bárbaro, Tântalo imaginou ser conveniente proporcionar aos deuses sacrifícios humanos. E fosse porque sua despensa estivesse vazia, ou porque quisesse testar a onisciência dos deuses pegou seu filho Pélope, cortou-o em pedaços, cozinhou-o em um ensopado e serviu-o no banquete às divindades, seus olímpicos hóspedes. Antes que Zeus e os demais deuses descobrissem a verdade, Deméter que estava com muita fome comeu um ombro da vitima. As demais divindades não tocaram no alimento, e após constatar-se o crime hediondo, Hermes foi incumbido de colocar as partes do menino numa caldeira mágica de onde Cloto o retirou em perfeita saúde. Mas como parte do seu ombro foi devorada por Deméter, Zeus deu-lhe outro de uma peça de marfim confeccionada por Hefáistos como a única lembrança de seu sacrifício. Tântalo foi cruelmente punido pela refeição canibalesca que servira aos imortais com a sede e a fome eterna, apesar de estar mergulhado num lago onde a água ao ser tocada sempre escapava a sua boca e numa floresta cheia de frutos que quando ele tentava colher escapavam para longe de suas mãos.

Ao final da Idade das Trevas que assolou os povos mediterrâneos pelas invasões de povos bárbaros que vieram por terra e mar do Leste, toda a cultura grega, ou melhor, a cultura micênica, entrou em franca decadência. Até mesmo a escrita foi esquecida e povos que antes habitavam as cidades foram obrigados a vagar pelos campos devastados, sem comida para sustentar-se. A antropofagia deve ter sido adotada como fórmula de sobrevivência dos mais fortes em relação aos mais fracos. O mito de Tântalo, com um sentido moral, realçava o interdito reestabelecido ao consumo da carne humana. E mais que isso, punha à vista a questão do sacrifício do primogênito, comum entre os antigos. Os povos de origem asiática tinham costumes relativos ao sacrifício de seus reis quando não mais podiam servir aos interesses do Estado. Por mais forte, inteligente, poderoso e soberano que seja um monarca, chega um dia que o tempo o atraiçoa, a idade pesa as armas em suas mãos decrépitas e, por conseguinte, o menininho que antes pulava em seus joelhos, que ele protegia e alimentava, por fim torna-se um homem adulto, mais forte que o pai, sendo naturalmente destinado a tomar seu lugar no poder. Só Zeus estava destinado a reinar eternamente, mas mesmo o deus dos deuses tinha sempre que precaver-se da própria prole. Assim o rei ao vitimar o primogênito imolado em um sacrifício aos deuses garantia mais algum tempo de permanência no trono sem sucessores.



Pélope, um rei divino, tinha do seu lado as graças e o amor de Poseidon, que lhe fazia presentes de cavalos alados e o auxiliava nas batalhas. Mas apesar da grande fortuna que herdara de Tântalo, o jovem não conseguiu manter-se no poder: invasões de bárbaros o expulsaram do reino. Cruzou os mares em busca de nova pátria durante longos anos sem conseguir abrigo. Foi o responsável pela morte do sogro, Enômao, rei da Élida, que para manter o próprio poder desafiava os pretendentes da filha, Hipodâmia, a uma corrida de carros, porque, ou estaria apaixonado pela filha ou por causa de um oráculo que adivinhara seu fim nas mãos de um genro. Ele sacrificava um carneiro a Zeus e com seu carro puxado com cavalos de Ares sempre vencia a carreira e como pena estabelecida matava os pretendentes derrotados, depois cortava a cabeça dos perdedores e pendurava-as na porta do palácio. Pretendia construir com elas uma pirâmide de crânios.  Desta vez, entretanto Hipodâmia apaixonou-se pelo recém chegado Pélops e para evitar sua morte certa corrompeu Mírtilo, o conheiro real, que concordou em cortar um dos tirantes do carro. Mesmo com a ajuda de Poseidon que lhe deu um carro com asas invisíveis aos demais e conduzido por cavalos imortais Pelópe temeu o resultado final da corrida e resolveu armar um estratagema. A promessa de Pelópe ao cocheiro através da amante foi que o humilde jovem teria direito a metade do reino e a primeira noite com a princesa de quem estava perdidamente apaixonado. Quando o carro ia já à carreira, em grande velocidade, partiu-se o tirante, o veículo virou e o rei desafortunado foi arrastado e morto. Quando o cocheiro foi cobrar sua prenda, a noite de amor com Hipodâmia, com zombarias Pelópe atirou-o sem piedade de um penhasco ao alto mar. Ao morrer, o cocheiro amaldiçoou-o e a sua descendência perante os deuses.

Depois dos crimes impunes casou-se com a bela princesa. De seu casamento com Hipodâmia tiveram muitos filhos, entre os mais conhecidos são: Atreu, Tieste e Plístenes. Foi viver num palácio ricamente ornado, cercado de bosques calmos e ricas pastagens. Conseguiu o respeito do povo e procurou esquecer as nódoas do passado. A Pélope é atribuída a fundação dos Jogos Olímpicos. De seu nome origina-se o nome Peloponeso.

Aos povos vencidos pelas raças heroicas, isto é, os conquistadores estrangeiros, que impuseram suas leis e religião afirmavam descender e ascender aos deuses para impor à pessoas rústicas a piedade e a tenência ao poder temporal. Diziam os conquistadores serem capazes de dominar as feras, comover os carvalhos e fazer com que as pedras se empilhassem para formar as cidades, para assim apagar os ódios da dominação abjeta que impunham às castas inferiores compostas pelos descendentes dos escravos e prisioneiros de guerra e assim aceitar melhor o seu jugo brutal. Mas foi o advento de seus carros de combate e das naus que singravam o Mediterrâneo que basearam sua superioridade militar sobre os povos autóctones que ainda viviam, como seus antepassados, no neolítico e desconheciam as forjas de metais. Quando discorrem sobre governos e de liberdades na Grécia Antiga devemos ter em conta que se tratam exclusivamente das elites dominantes. O direito de conquista estabelece entre os antigos a supremacia do poder, a casta mais ou menos ilustrada dá ordens à outra destinada a servir e a obedecer e detêm os direitos, as leis, os julgamentos, a religião, as armas, e aos demais resta o trabalho vil nas lavouras e na indústria.
   
Logo a maldição da Casa de Atreu iria consubstanciar-se através dos filhos. Instigados pela mãe, Atreu e Tieste mataram Crisipo, filho do rei com a ninfa Axioquéia. Assim imaginavam eliminar um possível rival na sucessão do trono. O crime enfureceu Pélope e a punição não tardou. Os fratricidas foram banidos e vagaram por uns tempos consumidos pela culpa até receberem refugio no reino de Micenas, mas ao invés da gratidão ao seu anfitrião usurparam-lhe o cetro e a coroa.

A vida transcorria sem maiores problemas para ambos os criminosos. Entretanto os deuses vigilantes resolveram castigá-los com vigor. Hermes foi incumbido de enviar à terra um carneiro com o dorso dourado, símbolo de riqueza e poder. Colocou-o entre os rebanhos de Atreu e Tieste. O resultado da intervenção divina não tardou a prosperar e a disputa entre os irmão acirrou-se pela posse do animal, que passou a representar o poder de reinar sobre os demais.

Tieste seduziu a esposa de Atreu, pela posse do carneiro dourado. Aérope auxiliou Tiestes em suprimir o animal, símbolo de poder. Como vingança Atreu, após fingir perdoar as faltas do irmão, um dia perseguiu seus três filhos, que apesar de terem buscado a proteção do santuário no altar sagrado do templo de Zeus foram trucidados pelo tio. Para evitar uma guerra com seu irmão pelos direitos ao trono de Micenas, Tieste aceitou comparecer ao banquete. Atreu mandou preparar os corpos dilacerados dos sobrinhos  como carne de caça e foram assim servidos num banquete para o pai, que nada desconfiou. Findo o repasto Atreu mostrou para o horrorizado Tieste as três cabeças e as mãos de suas vitimas. Tieste vomitou os filhos e rogou uma terrível praga ao irmão.

Desesperado e na miséria ele exilou-se em Sícion com sua filha Pelópia e de uma união incestuosa teve um filho com ela que chamou Egisto. Mandou-a posteriormente para a corte do irmão, onde ela desposou o tio. Quando o menino atingiu a idade madura Atreu ordenou-lhe que matasse o pai. Mas Egisto descobriu a tempo sua origem e por fim atraiçoou o tio e matou-o entregando o reino a Tieste.

Agamenon e Menelau eram filhos de Atreu, e após o assassinato do pai fugiram para Esparta onde foram recebidos de braços abertos por Tíndaro.  O rei de Esparta deu as filhas Helena e Clitemnestra como esposas. Segundo contam Cliemnestra já era casada na época, mas Agamenon assassinou seu esposo e seu filho recém nascido para poder desposa-la. Após a morte dos Dióscuros, Castor e Pólux, filhos de Tíndaro e Leda, Menelau casado com Helena tornou-se o rei por direito de Esparta. Agamenon resolveu voltar para Micenas e vingar a morte do pai.

Agamenon retornou para Micenas e disfarçado aos poucos sublevou o povo que derrubou o tirano Tieste e assumiu o poder definitivo da cidade. Egisto e Tieste exilaram-se no Épiro. Agora ambos os irmãos Atridas controlavam o poder das confederações das cidades estado.

Durante dez anos Menelau e Helena reinaram tranquilamente em Esparta no fausto da corte. Tinham dois filhos. Quando Menelau foi assistir os funerais do padastro Catreu, apareceu Páris em Esparta e deu-se então o rapto de Helena, a justificativa alegada para a guerra contra a cidade de Tróia de onde Páris era um dos príncipes. Menelau avisado da traição apressou-se a deixar Creta e convocou em Esparta todos os chefes que haviam prestado juramento de aliança com Tíndaro. Após ser criada uma imensa frota que reuniu-se em Áulis. O conselho de guerra deu para Agamenon por sua descendência ou por seu valor, o comando supremo das naus dos Aqueus. De acordo com poemas posteriores a Ilíada, os gregos as rotas de acesso à Tróia, abordaram em Mísia e, depois de diversos combates esparsos, dispersaram-se, voltando cada um ao seu país. Oito anos após retornaram novamente à Áulis. O mar permaneceu sem possibilidade de navegação em função da calmaria. Os sacerdotes exigiram então um sacrifício de sangue à deusa Artemis. Deveria ser Ifigênia, a filha de Agamenon, a ser imolada. Ele mandou buscá-la para o sacrifício. Dessa passagem temos na Tragédia de Ésquilo a versão poética:

Assim Agamenon não quis fugir
E ofereceu a vida de sua filha
Em prol da guerra desencadeada
Pela infidelidade de Helena
E pagou o tributo pela frota
Retida pelos ventos malfazejos
Desatentos às lágrimas da jovem
Aos seus gritos de ‘Pai !’ e aos tenros anos
Prezaram muito mais os seus juízes
A sua própria glória e a sua guerra
Recitou-se uma prece. O próprio pai
Ordena o sacrifício. Os assistentes
Do sacerdote a erguem sobre o altar
Como se tratasse de um cabrito
O pai fala de novo. Uma mordaça
Um homem traz, e a boca da donzela
É amarrada com uma rude corda
Afim de que, em seu último momento,
Não gritasse, e seu grito derradeiro não trouxesse
Contra a casa de Atreu a maldição
Rudes mãos lhe arrancam da cintura
A faixa que segura suas virginais vestes
Rola a seda no chão. Os lindos olhos
Da donzela procuram os matadores,
E vendo-lhe a beleza, todos eles
Ainda assim mostraram-se inclementes,
Mesmo vendo seus olhos que imploravam
Que a deixassem falar, com a mesma voz
Que nos paços do pai, nos velhos dias,
Muitas vezes cantando era ouvida,
Melodiosa como os sons da flauta,
Honrando a libação junto ao trono...

E assim foi cumprida a fatal sentença. São muitas as versões que foram criadas para justificar a necessidade de Artêmis ao exigir o sacrifício de Ifigênia, mas era costume entre os antigos assim proceder para garantir suas ações mundanas perante os deuses. Quis o adivinho Calcas invocar o sacrifício justificando a falta de bons ventos pela cólera da deusa porque Agamenon ao matar um veado jactou-se que nem Artêmis faria melhor, ou teria o veado sido abatido em um bosque consagrado a deusa. Também a cólera da deusa foi atribuída ao fato de Atreu não ter imolado o carneiro dourado, fruto da discórdia entre os irmãos, em sua honra. Outra versão garante que Agamenon havia prometido sacrificar-lhe o produto mais belo do ano, que acontecera ser a própria filha. As deusas da terra eram exigentes em seus sacrifícios de sangue. Clitemnestra que já havia perdido o marido pelas mãos assassinas de Agamenon nunca mais o perdoou após o sacrifício da enteada, que ela amava como se fosse a própria filha.

Dez anos se passaram na guerra de Tróia e os heróis dos Aqueus com muito custo e a partir de estratagemas conseguiram conquistar e destruir a cidade e matar quase a totalidade de seus habitantes segundo nos contam as lendas sobre a cidade. Muitas são as versões sobre o fim fatídico da polis troiana. Mas na Ilíada temos que Agamenon participou de várias expedições e razias com Aquiles contra as localidades vizinhas e quando reuniram o botim de uma delas acabaram se desentendendo na divisão por causa de uma cativa denominada Briseida por quem o herói filho de Tétis havia se encantado. Essa disputa gerou todo o enredo inicial da obra de Homero. Os poemas contam que ao embarcar para casa Agamenon viu a sombra do herói morto a lhe predizer desgraças sem conta e cobrou dele o sacrifício da pobre Polixena, a filha mais nova de Príamo, o rei vencido de Tróia. Muitas também são as versões sobre o sacrifício da inocente, que despertara a paixão de Aquiles, aos manes do herói morto, por instigação de Ulisses, para garantir junto aos deuses uma boa travessia para o retorno da frota helênica.



Avisada pelos fachos, as fogueiras acesas nas montanhas que comunicavam a vitória dos gregos contra os troianos Clitemnestra aguardava o retorno do marido para executar sua vingança. Sabendo que Agamenon se ausentara Egisto, seu primo exilado, retornou do Épiro para conquistar o poder perdido. Associou-se como amante da rainha e usurpou o quanto pode o poder do Atrida enquanto ele se encontrava guerreando no país distante.

Quando o rei retornou Clitemnestra fingiu contentamento e preparou seu banho. Tinha arranjado para o rei vestes sem abertura para os braços nem para a cabeça e após banhar o marido entregou-as para ele que atrapalhado na armadilha mortal foi assassinado pela esposa. Ela também matou por despeito, a adivinha Cassandra, filha de Príamo, que tinha sido presa de guerra e amante do rei. Perseguiu os próprios filhos com medo que buscassem vingança. O golpe de estado se consumou e Egisto sobiu ao trono. Electra, a filha do rei assassinado, foi obrigada a casar-se com um homem pobre da plebe e assim despojada da sua nobreza. Orestes com a ajuda de seu preceptor buscou o exilio. Nenhum dos descendentes de Agamenon ficaria seguro com a usurpação do poder cometida pela própria mãe e seu amante que temiam ser confrontados e condenados pelos filhos dela quando tivessem alcançado a maioridade mais tarde.



Orestes ainda menino se salvara das garras do tio que adivinhara ser um possível obstáculo aos seus planos de poder. Tinha sido predito por um oráculo que o usurpador seria vitimado pelo filho de Agamenon quando esse crescesse. O menino refugiou-se na Fócida, na corte de Estrófio e de Anaxibia, irmã de Agamenon.

Sete anos após a morte de Agamenon chega um mensageiro da Fócida. A mensagem que trás trata da morte de Orestes numa corrida de carros. Clitemnestra finge sofrimento e pede garantias ao mensageiro. Ele assegura-lhe que uma urna com as cinzas do filho está a caminho. A mensagem cobre de luto Electra que ansiava vingar a morte do pai. Mas o mensageiro na verdade é Orestes disfarçado.

Orestes através do oráculo de Delfos recebeu a ordem de Apolo de vingar a morte do pai, para o que teria que matar o tio traidor e a mãe. Com a ajuda da irmã Electra. Ela atraiu a mãe ao casebre onde vivia ao mentir que havia dado a luz enquanto o irmão cumpriu seu desígnio sagrado ao matar Egisto que se encontrava só no palácio. Seus gritos não foram ouvidos pelos guardas. Após matar o tio, Orestes se dirigiu até onde a mãe se encontrava e apesar de seus rogos de clemencia ele a matou para satisfação da irmã. Acometido de loucura pelo matricídio e perseguido pelas Erínias desde os funerais da mãe foi buscar refúgio no oráculo de Delfos, onde foi purificado pelo próprio Apolo. No entanto esta purificação não o libertou das Fúrias, que sempre perseguem os que cometem atos de violência contra a própria família. Foi necessário um julgamento para poder isentá-lo de culpa. Foi escolhido o lugar que mais tarde ia ser chamado Aerópago. O julgamento terminou empatado, pois os juízes não chegavam a um acordo até que Atena deu seu voto favorável a absolvição. Em agradecimento Orestes consagrou um altar à deusa nesta colina.



Assim que recebeu a absolvição Orestes foi consultar Apolo em Delfos e recebeu da pítia para curar de vez a loucura induzida pelo remorso buscar a estatua de Artêmis que se encontrava na Táurida, região às margens do Mar Negro ou Ponto Euxino, como chamavam os antigos. Chegou ao seu destino com o amigo Pílades, filho de Estrófio e foram ambos capturados pelo rei Toas, que tinha como costume sacrificar os estrangeiros a sua deusa. Foram conduzidos até a sacerdotisa do templo que era nada mais nada menos que Ifigênia que foi salva por Artêmis do fim cruel imposto pelo pai. Teria sido substituída pela deusa por um cervo no momento da imolação. Ela mandou soltar as cordas que prendiam os dois e os interrogou sobre a pátria de onde vinham. Descobriu então que Orestes era seu irmão e qual missão tinha recebido de Apolo. Ifigênia resolveu então partir com Orestes e facilitar o roubo da estatua da qual era ela guardiã. Persuadiu o rei Toas da necessidade de antes do sacrifício purificar as vitimas e principalmente Orestes que era um matricida confesso e da necessidade de lavar para o mesmo fim nas águas salgadas do mar a estátua da deusa. Toas aceitou seus argumentos sem duvidar e assim Ifigênia levou os dois e a estátua para longe dos guardas citas sob o argumento de manter segredo dos rituais sagrados. Ao tomarem distância embarcaram no navio de Orestes que não se encontrava longe dali. Após contratempos com as correntes prejudiciais e ventos contrários proporcionados por Poseidon, graças a intervenção de Atena que impediu que o deus continuasse sua perseguição conseguiram retornar a salvo.



Ao retornar, Orestes que era prometido desde menino de Hermíone, filha de Menelau e Helena, soube que durante a guerra de Tróia Menelau prometera a filha a Neoptólemo. Orestes aproveitou a ida de Neoptolemo à Delfos e juntou-se a Hermíone. Raptou-a e posteriormente matou o pretendente. Foi rei de Argos, onde sucedeu seu rei que não tinha descendentes, e depois também reinou em Esparta, após a morte de Menelau. Pouco antes de sua morte uma grande peste devastou o reino. Ao ser invocado o oráculo foi revelado que o flagelo seria conjurado caso fossem reconstruídas as cidades destruídas durante a guerra de Tróia, seus templos mais uma vez erigidos, e as honras de que estavam privados seus deuses, novamente atendidas. Orestes então enviou colonizadores e construtores e estabeleceu novas colônias na Ásia Menor. Morreu velho, com mais de noventa anos e setenta de reinado, pondo fim a uma sina de traição e morte.
             
Qual a herança da Casa de Atreu?

O registro do tempo fala para nós de uma época onde o abandono da civilização perturbada pelas muitas invasões do território grego por povos considerados bárbaros promovia uma luta incessante nos bastidores pelo poder, conflito que estava sempre presente no seio das famílias da classe dominante. Um mundo em transformação que repercute através dos milênios e chega até nós através de suas memórias na condição de ensinamento moral, mas ao mesmo tempo de forma figurada explica a expansão do povo grego sobre o mundo Antigo. Seus valores que davam proeminência ao valor na guerra de conquista e ocupação de territórios, mas também sobre ardilosas  traições que até mesmo Aquiles não escapou de tramar contra os Aqueus com seus inimigos os troianos em função da paixão por Polixena.

Quando falamos na Grécia não estamos falando apenas de um povo, mas de povos, cujos hábitos, costumes e crenças comuns formaram na Antiguidade o que se denominou Grécia. Ocuparam três continentes onde adotaram uma técnica de viver comum. Assim era grego o troiano, na Ásia, o macedônio, e nas noites dos tempos eram o sírio Cadmo ou o Lídio Tântalo, bem ou mal, conhecidos heróis fundadores e civilizadores da Hélade.

Dizem que Diógenes, um dos mais proeminentes cínicos, apesar do seu profundo amor ao próximo, de seu caráter íntegro e humanamente compreensivo, atacava arrasadoramente tudo o que era sagrado para os homens do seu tempo. Ria-se do estremecimento de horror que produzia nos espectadores  de teatro  a representação do banquete tiestético  e da tragédia do incesto de Édipo, pois a antropofagia nada têm de mal, já que a carne humana não pode reivindicar privilégios de exceção sobre qualquer outra carne, nem o percalço de uma relação incestuosa é assim tão grande desgraça, segundo nos demonstra o eloquente exemplo de nossos animais domésticos.

Podemos deduzir dessas observações que como definiu Freud, o tabu, ou interdito se faz sobre aquilo que representa um instinto natural do ser humano e que necessita ser proibido visando a garantia da segurança da comunidade. É desse exemplo moral que surgiram os temas dos mitos, pois que antes a humanidade seguia outros caminhos onde sacrificar e até mesmo comer seres humanos era costume aceito pelos antigos em seu ordenamento.

A mitologia tem sido tratada pelos estudiosos modernos e contemporâneos ora como um primitivo e desastrado esforço para explicar o mundo da natureza (Frazer); como um produto de fantasia poética de resquícios da era pré-histórica, mal compreendidos pelas gerações posteriores (Müller); como um repositório  de instruções alegóricas, destinadas a adaptar o individuo ao seu grupo (Durkheim); como sonho grupal, sintomático dos impulsos arquetípicos existentes no interior da psique humana (Jung); como veículo tradicional das mais profundas percepções metafísicas do homem (Coomaraswamy); e como Revelação de Deus aos Seus filhos (a Igreja). A mitologia é tudo isso. Os vários julgamentos são determinados pelo ponto de vista de seus juízes, como bem observou Joseph Campbell. E muito mais.

Vivemos hoje um tempo que o consciente impera e acreditamos que o mundo exterior compreende a nossa realidade imediata. Nossos instintos, que acreditamos primitivos, estão camuflados em uma fina camada de civilização com suas miríades de interditos, os quais damos vazão plena apenas nas obras ficcionais e nos audiovisuais, de forma indireta, velada, e para nosso particular e secreto deleite.

Essa representa com certeza a herança dessa cultura de outros tempos que nos fala da nossa pré-história e que devemos olhar com atenção nas imagens dos conflitos que presenciamos hoje pelo mundo todo, uma grande hélade, circunscrito às relações diretas de causa e efeito, cada vez mais inter-relacionadas, para não perdermos nossa humanidade em algum abismo que está ali, talvez na próxima esquina do tempo, de nosso retorno inexorável à barbárie, uma nova Idade das Trevas.