“Caso a humanidade tivesse utilizado o principio da não
violência na Segunda Guerra Mundial, não seríamos senão um imenso rebanho
domesticado por um senhor, e toda dignidade humana teria radicalmente deixado
de existir, assim o próprio sentido da integridade humana não teria mais valor.
A integridade humana se aplica à integridade física,
corporal, já que a integridade moral só é violada se o seu detentor o permitir.
Nem ameaças, nem as piores torturas podem triunfar contra a integridade moral.
A dignidade humana, que não pode ser aumentada nem pela
força, nem pelo poder, nem pela riqueza, ao contrário, está acima do plano
físico, e não pode ser diminuída nem pela miséria, nem pelo sofrimento, nem
pela morte. Àquele que a despreza na pessoa do seu próximo é que a perde; a não
ser que a vítima voluntariamente aceite sua queda, e assim sendo torna-se
cúmplice do agressor.” (Odisseia Antropofágica – Assassinos, Kamikazes e Homens
Bomba)
Quando inclui e comentei pela
primeira vez no blog Odisseia Antropofágica o texto acima, que não é de minha
autoria, pois foi compilado de fonte diversa de origem agora esquecida, tinha absoluta certeza que a maioria
das pessoas poderiam concordar com este axioma sobre o verdadeiro sentido da
liberdade. As expectativas políticas na América do Sul na época eram otimistas, de
relativa euforia, com o sucesso dos governos populares eleitos e suas
políticas de “inclusão social” no estilo social democrata para populações que historicamente sempre tinham sido tangidas para onde interessava a classe dominante e mantidas marginalizadas como mão de obra
barata nos campos e nos centros urbanos, por gerações, em regime de absoluta
miséria pós-escravista, pelos seus antigos captores, os homens brancos conquistadores vindos
da Europa, e seus descendentes mestiços, que se inscreveram pela força como
classe dominante nos países onde vieram habitar. Na época a via politica pacifica parecia que iria prevalecer e o bom senso estimulava uma maior integração da sociedade, com a ascensão crescente de milhões das classes mais pobres para uma classe média ainda incipiente e voltada para a aquisição de bens de consumo não duráveis.
Muito mais que um
texto panfletário político, ou uma incitação à violência contra os poderosos, o
presente ensaio pretende uma análise histórica sobre o direito de morrer e de
matar, a tradição vigente, e suas consequentes possibilidades à luz da filosofia humana, sem contudo
tratar da questão metafísica da morte, assunto que já discorri em outros
ensaios. Como afirmou Montaigne sobre a glória duvidosa do ato final:
“Quem considera mal empregada a morte que não traz
celebridade, acaba obscurecendo a vida e deixa fugir-lhe numerosas e justas
oportunidades de se aventurar. Ora, tudo o que é justo comporta sempre
ilustração suficiente, o testemunho da consciência já constituindo por si
glória bastante: ‘nossa glória está no testemunho de nossa consciência’²”.
2-São Paulo
A Morte Voluntária –
Entretanto o morrer e
o matar na civilização ocidental compreendem um imenso tabu, mesmo sendo ambas
as situações realidades comuns da vida biológica e, apesar dos mitemas da
religião da maioria professar e prometer uma compensadora vida além da morte
para crentes e pecadores arrependidos, mesmo para os que tem
fé tornou-se óbvio, um lugar comum, ninguém querer apressar em sã consciência a
própria morte para tentar comprovar o dogma sem ser considerado estar sofrendo de alguma patologia mental grave.
Na sua origem, as
escolas filosóficas da Antiguidade grega estavam divididas: os cínicos e os
estóicos admitiam a legitimidade do suicídio, mas os pitagóricos, os platônicos
e os peripatéticos o condenavam, esboçando os argumentos que serviriam a Santo
Agostinho para consolidar a proibição radical que o cristianismo, através dos
séculos, soube até a atualidade manter.
“Jupiter não conseguia ver nada mais belo no mundo que o
suicídio de Catão”, declara Sêneca. Seus parentes, amigos, filhos
adivinharam suas intenções e, durante o jantar sumiram com sua espada que
ficava pendurada à cabeceira do leito, como conta Plutarco. Catão não sabia se
devia reclamá-la com energia e assim revelar sua intenção, ou se não seria
melhor simular indiferença e enganar aqueles que o cercavam com desvelo
fingindo não ter ainda decidido cometer o ato final. Apesar da pureza de sua
intenção e da firmeza de objetivo, até o último momento ele tem que empregar a
astúcia e a violência, sendo obrigado a combater aqueles que queriam salvá-lo
de sua decisão. Em função de sua motivação, chega a espancar os criados, a
descompor os filhos, a discutir com os amigos. No fim da discussão devolvem-lhe
a espada: “Agora eu me pertenço”, diz
ele. Estende-se sobre o leito e retoma a leitura do Fédon, pois é com Platão que ele quer ocupar os últimos momentos de
seu pensamento. Adormece, depois acorda e retoma o livro, e adormece mais uma
vez.
“Os passarinhos já começavam a cantar e sentiu outra vez
um sono leve; mas nesse momento voltou Butas, que lhe disse não haver barulho
nenhum no porto. Catão mandou então que fosse embora e que fechasse a porta ao
sair; caiu sobre a cama como para dormir o que restava ainda da noite, mas
assim que Butas virou as costas desembainhou a espada e desferiu um golpe
abaixo do estômago: todavia, por causa da inflamação que tinha na mão não pode
dar um golpe com força bastante para que viesse a morrer imediatamente;
aproximando-se do fim, caiu da cama e fez um barulho ao cair, porque derrubou
uma mesa de forma geométrica que estava perto da cama, e assim seus criados,
que ouviram o barulho, soltaram gritos incontinenti; imediatamente seu filho e
seus amigos entraram no quarto e o encontraram todo sujo de sangue, embora
ainda estivesse vivo e os olhasse. Ficaram tão sufocados pela dor, que não
souberam de início o que dizer nem o que fazer; mas o médico, aproximando-se,
quis tentar repor as tripas, que não tinham sido rompidas, e fechar a ferida;
mas quando ele voltou a si do desmaio, empurrou o médico e, arrebentando as
tripas com as próprias mãos, abriu ainda mais a ferida, tanto que na mesma hora
entregou o espírito.”
Catão |
O processo da exaltação de seu sacrifício teve início nos momentos seguintes de sua morte. A notícia de seu suicídio espalhou-se pela cidade que estava prestes a cair nas mãos de César. O povo de Útica, cidade do norte da África onde Catão havia buscado refúgio junto aos seus pares e familiares, onde por duas vezes salvou sua população nativa do massacre, reuniu-se em frente à sua casa, juntamente com os romanos remanescentes. O exército de César aproximava-se célere, porém, sem se deixarem intimidar, deram a ele um funeral de honra. O corpo de Catão foi esplendidamente vestido, como jamais ele teria se vestido em vida e levado em procissão até a beira mar, onde foi enterrado. Quando César chegou para aceitar a rendição da cidade, exclamou: "Ó Catão, eu invejo sua morte, e você me invejou por saber que eu pouparia sua vida." É provável que César tenha percebido, como Catão, que a submissão deste teria sido uma derrota abjeta e que sua misericórdia teria sido a mais cruel e prazerosa das vitórias contra quem era a correção personificada do antigo regime. Mas Catão lhe havia escapado. Como Sêneca declarou: "Todo o mundo se prostrou ante o poder de César, porém Catão foi capaz de escapar: com uma única mão ele abriu caminho para a liberdade."
Morto, Catão continuou a criar tantos problemas para César como em vida. Um cartaz pintado onde se via Catão arrancando as próprias entranhas "como um animal selvagem" foi carregado no triunfo que César celebrou ao retornar a Roma. O efeito daquela imagem horrenda foi o oposto do desejado: ao invés de exultar com a morte do mais inflexível opositor de César, a multidão gemia e lamuriava-se à sua passagem. Bruto escreveu e publicou um elogio póstumo a Catão. O mesmo fez Cícero, demonstrando um grau de coragem política que lhe era incomum. César encomendou a seu leal historiador Hírtio um texto em resposta àqueles, no qual as virtudes de Catão eram depreciadas e suas falhas catalogadas. Texto que se perdeu. A controvérsia literária que se estabeleceu sobre a reputação de um homem morto mascarava um debate mais perigoso sobre o poder de seu inimigo vivo: César acreditava absolutamente necessário à própria segurança de seu poder que Catão fosse desacreditado. Insatisfeito com o texto de Hírtio, ele mesmo escreveu seu Anti-Catão, um folhetim tão terrivelmente virulento que sabotou seu próprio objetivo. As alegações que ele continha eram absolutamente exageradas. Catão era acusado de ganância financeira e de desonestidade, de depravação sexual e de preguiça. César escreveu também que Catão havia peneirado as cinzas da pira funerária do próprio irmão em busca de ouro; que ia embriagado para o tribunal; que tinha uma relação incestuosa com a irmã Servília (acusação esta que atingia sua própria reputação, pois Servília era, na verdade, amante de César). Ninguém acreditou. Cícero achou que o folheto servia para realçar a reputação póstuma de Catão, por tornar manifesto o ódio e o temor que ele inspirava em seu opositor.
Catão com seu martírio havia iniciado a oposição a César, que atingiu sua finalidade mortal nos Idos de Março, e foi levada a termo nas mãos de Bruto e outros senadores. César foi morto, porém sua dinastia sobreviveu e floresceu. Mas a efígie de Catão passou a representar para os romanos o simbolo da oposição contra a tirania dos monarcas.
O ato final de Catão foi também o escolhido pelo seu sobrinho Bruto quatro anos mais tarde. Em seguida tirou a própria vida Antônio, do mesmo modo ao ser derrotado por Augusto, e o fez de uma forma ainda tanto mais pungente e confusa. Este era o costume dos povos da antiguidade quando seu líder perdia a fortuna ou quando estava tão doente ou ferido a ponto de preferir o suicídio. Na Bíblia, no segundo livro dos Macabeus, capítulo XIV, um dos anciões de Jerusalém, chamado Razis, de quem o invasor grego suspeita de fomentar a resistência contra a invasão, se vê cercado e ameaçado de prisão pelos soldados do general Nicanor. O judeu prefere lançar-se sobre a própria espada. Moribundo, arranca as próprias entranhas com as duas mãos e lança-as contra os inimigos. O rei Saul segundo a descrição bíblica (Crônicas, capitulo X) fez o mesmo, isto é, atirou-se sobre a própria espada ao ser derrotado pelos Filisteus. Este gesto vai ser várias vezes repetido entre os guerreiros de todos os quadrantes até a nossa época como um desafio final ao inimigo de quem nunca ficará sujeito nem nunca reconhecerá a supremacia.
Verdadeiro cidadão da
urbe antiga, filósofo e guerreiro, Catão quer morte lúcida e deliberada. É ele
que cria o momento harmonizando seus atos às consequencias do seu pensamento. Ele
passa seus últimos dias em Útica em companhia de um estóico, Apolônidas, e de
um peripatético, Demétrio, que talvez sustentasse, como seu mestre Aristóteles,
que matar-se prejudica a comunidade da qual se depende. Mas é justamente para
manter-se fiel a sua comunidade que Catão vai morrer, é para servir de
sacrifício à urbe, às leis, às liberdades. Foi em nome dessas liberdades
públicas que ele combateu, mas César foi vencedor e as liberdades estão
destinadas a morrer, pelo menos as da elite senatorial da velha república. A
resistência armada já não pode destruir o poder do novo senhor, nem mesmo o
tiranicídio poderá impedir na Roma imperial essa nova forma de tirania. Catão
sabe que o vencedor poderia ser indulgente a ponto de conceder-lhe a vida,
basta apenas pedir. Mas é justamente esta confissão de submissão que quer
evitar e declara: “Se eu quisesse salvar
minha vida pela graça de César, bastaria apenas que eu próprio fosse perante
ele, mas não quero dever favores nem obrigação a um tirano por uma injustiça:
pois é injustiça dele usurpar o poder de salvar a vida, como senhor, àqueles a
quem ele não tem nenhum direito de comandar.”
Desde Montaigne,
Maquiavel e Rosseau essa morte não cessa de fazer-se ouvir, e seu apelo
tornou-se imortal na consciência ocidental. A favor ou contra Catão, a lista
dos pensadores que comentaram é imensa, desde Sêneca e Lucano, passando por
Santo Agostinho, até Vitor Hugo, que recusa dar sua aprovação, e Lamartine, que
diz “preferir a morte paciente do último
dos mendigos em cima da palha” com certeza lembrando a fala do fantasma de Aquiles invocado por Ulisses na Odisseia.
Apostou Catão que num
futuro improvável, em algum momento da humanidade, seu sacrifício poderia fazer
renascer os princípios republicanos que morriam com ele. Transformou em
liberdade futura os privilégios perdidos de sua classe. A morte infligida por
doença ou acidente e movida pelo acaso é corriqueira, mas muito mais sombria
porque se revela insignificante. A morte voluntária, neste caso, se reveste de
um sentido que beira propiciar a imortalidade do autor. Seu ato é a constatação
de uma derrota sem recurso. Mas ao assumir o fracasso até o fim, seu ato toma
também um sentido de apelo ao futuro. Como todos os suicídios, o de Catão é
ambíguo, ao mesmo tempo renúncia e revolta, silêncio e grito, desespero e
protesto.
A morte de Catão
delimita a história da humanidade. A República dos cidadãos de Roma sucede o
Império, os chefes dos clãs se tornam funcionários de César e as liberdades
públicas a partir de então aos poucos desaparecerem em detrimento do direito
individual de alguns patrícios privilegiados. O senado passa a ter um papel
simbólico e nunca mais recupera seu antigo poder.
É verdade que os
cidadãos de Atenas e Roma tinham adotado duas atitudes diferentes sobre a morte
voluntária, que refletiam sua estrutura social. Admitiam a legitimidade quando
se tratava de um igual, um homem livre, que se matava, exercendo seu direito
natural de soberania própria de sua condição social. E mesmo sem uma causa
pública para justificar o ato atribuía-se a ele o mais alto valor. Mas no âmbito
de seu lar o cidadão era o dono de seus filhos, de suas mulheres, de seus
escravos. Sobre a Jus pública reinava
uma ordem consuetudinária que comandava o direito doméstico. Quando um dos
súditos do espaço doméstico se matava, o dono da casa não podia considerar
legitimo o ato que muitas vezes era uma oposição a sua autoridade, contestava
seu poder, e atingia seu capital. O senhor via o ato como rebelião e condenava
seu princípio. Ele tenta dissimular ou então denegrir o ato como vindo de um
mau servo, pronto a tudo, imprestável, lunático, desnorteado.
A ideologia da cidade
antiga estabelecia portanto uma oposição entre dois tipos de morte voluntária:
a do senhor, em principio legitima e às vezes gloriosa, e a do escravo,
considerada indigna e abjeta. Ao suicídio exaltante do senhor, correspondia nas
trevas o desespero silencioso do servo oprimido. O escravo que, segundo o
esquema hegeliano, se retirou do combate mortal e aceitou um dia penar sem
outra vantagem que não a de sobreviver, compreende enfim que o nada vale mais do que uma vida sem justiça. Antes para sobreviver ele preferiu renunciar a
toda liberdade. Mas, renunciando agora à vida, descobre que uma liberdade
radical, absoluta, temível, mas inalienável, jamais deixou de lhe pertencer, oferecida
o tempo todo pela morte.
Os homens
escravizados em todas as épocas sempre resistiram como puderam ao cativeiro.
Espartacus e muitos outros depois lutaram pela própria liberdade contra as
instituições romanas, e mesmo em condições adversas contra inimigos com
superioridade de homens e armas preferiram no fim a morte no combate do que a volta ao
jugo. A repressão contra ele, cujo corpo nunca foi encontrado, e seus seguidores foi sangrenta. Os que
sobreviveram sofreram suplícios inimagináveis nas mãos de seus captores. Os
romanos consideravam o líder escravo um criminoso perigoso e violento e seus
atos ameaçavam o status quo, as leis vigentes do estado escravista romano.
A liberdade
verdadeira, que não depende do acaso do nascimento, reside na pura vontade de
cada um, que dispõe dela tanto quanto quiser. Alguns vão sustentar, e este é o
paradoxo favorito dos estoicos, que todo homem só será livre sob a única
condição de tomar consciência de si como sendo absolutamente livre. Sobre um
trono ou posto a ferros, o homem é livre considerado em si mesmo: a opressão
pode se exercer sobre o corpo, o temor e as seduções pode perturbar um espírito
confuso, mas o eu que tomou
consciência de si está fora de qualquer alcance.
Povos Antigos -
Vamos então
retroceder até as origens da humanidade, quando as tribos organizadas em clãs
habitavam o planeta e exploravam suas potencialidades caçando e coletando
alimentos para sobreviver. A agressividade do ser humano remonta desde esse
período nebuloso onde ele aprendeu a utilizar armas como ferramentas para caçar
e matar outras espécies e também seus semelhantes, como forma de sobrevivência.
As trilhas de caça eram disputadas pelos grupos de forma extensiva e com
definições de limites próprias de caçadores e mesmo a guerra era uma forma de
estabelecer-se uma relação inter-grupal de cruzamento dos mais aptos que
envolvia até mesmo o canibalismo ritual. Portanto na pré-história a morte era
encarada de forma diversa das sociedades modernas da atualidade, altamente hedonistas.
Uma tribo pacifica
poderia ter vizinhos aguerridos e sempre dispostos a manter disputas
territoriais e teria que sobreviver a eles de alguma forma ou então sucumbir e
partir para a extinção. Poderiam ser vitimas de canibais ou conquistadores
escravistas ou enfrentar seus inimigos e assim garantir a própria
sobrevivência. Poderiam alegar a legitima defesa de si e dos seus familiares
perante uma ameaça real iminente. Ou matavam ou morriam, ou ainda poderiam ser
escravizados ou imolados em algum ritual ancestral.
A humanidade evoluiu
sua estrutura social nos últimos milhares de anos. No Ocidente a vida após a
morte pregada pela religião monoteísta de origem abraâmica contempla uma
existência eterna para os justos no paraíso e o martírio no inferno para os
pecadores e os pagãos. Neste caldo de cultura ainda vigente matar o semelhante
é considerado um pecado capital e um crime pelas leis estabelecidas, o que
infelizmente nunca evitou que se matasse em nome da fé monoteísta. A ideologia
católica sempre tratou em suas guerras de evangelização de questionar a
humanidade de quem não fosse temente ao deus único. Ao ameríndio na época da
conquista, por exemplo, era-lhe negada a existência de uma alma imortal. O
mesmo acontecia em relação aos africanos, seus conquistadores também questionavam
se possuíam almas imortais. Este pensamento xenófobo perdurou até quase metade
do século XX e justificou o extermínio de milhões de pessoas nestes continentes.
Desconsiderar a humanidade do “outro” sempre foi o principal argumento entre as
tribos e etnias delas resultantes, que formaram posteriormente nações, em
promover o extermínio de grupos estranhos ou sua escravização sem culpa.
Eduardo Viveiros de
Castro em seu “Metafísicas Canibais” fala da evolução deste conceito
delimitador do preconceito: “A velha
‘alma’ recebeu nomes novos, agora ela avança mascarada (larvatus prodeo =
sentido oculto) chama-se-lhe ‘a cultura’, ‘o simbólico’, ‘a mente’. O problema
teológico da alma alheia transmutou-se diretamente no quebra- cabeças
filosófico conhecido como ‘problem of others minds’, hoje na linha de frente
das investigações neurotecnológicas sobre a consciência humana, sobre os
fundamentos possíveis da condição jurídica de ‘pessoa’ a outros animais, e, por
fim, sobre a inteligência das máquinas (os deuses passaram a habitar os
microprocessadores INTEL). Nos dois últimos casos, trata-se de saber se certos
animais não teriam afinal, algo como uma alma ou consciência – talvez mesmo uma
cultura - , e se certos sistemas materiais não-autopoiéticos, ou seja,
desprovidos de um corpo orgânico (máquinas computacionais) podem se mostrar
capazes de intencionalidade.”
É certo portanto que a perspectiva do mundo sensível tem refletido grande expansão na mente humana desde que os primeiros homens da
caverna iniciaram sua jornada sobre a face da Terra até a atualidade. Mas em contraposição ao
pensamento europeu medieval os povos antigos da Ásia, África, Américas e
Oceania já atribuíam uma alma humana, isto é, uma certa humanidade a todos os
seres e entes da natureza, pensamento que foi considerado diabólico a partir da
difusão e imposição da visão religiosa
monoteísta na humanidade, que neste ponto de vista básico essencial promoveu
uma regressão filosófica fundamental e isolou o homem por séculos do resto da
criação.
Porém antes da vinda
dos missionários católicos, a necessidade de sobrevivência dos
caçadores coletores em relação aos animais que matavam para
comer, mesmo assim obrigavam tratar suas presas com respeito religioso antes de serem
consumidos. A antropofagia ritual também possui o mesmo principio de fé onde a
vitima cativa é tratada como um herói até o último instante de sua imolação. Em
nenhum momento é negada a humanidade da vitima. O “bem amado” antes de ser
morto vive em muitos casos ainda um bom tempo na tribo e pratica o intercurso
carnal com as nubentes e assim contribui com a diversidade genética necessária
para fortalecer o grupo captor. Tapuias e tupinambás sabiam qual seu destino
caso caíssem prisioneiros do inimigo, mas nem pensavam em fugir depois de
cativos, pois sua volta à tribo seria considerada uma desonra ao perder-se a
oportunidade da sua morte ser vingada posteriormente pelos seus. Assim ocorre
ritualmente o estravasamento das pulsões de Eros e Tanathus nesta relação
associativa de opostos, rivais, no sentido de habitantes das margens opostas do
rio, onde a morte pode gerar a vida e aprimorar o intercambio intergrupal de
genes entre tribos visceralmente inimigas, mas com uma cultura comum.
“Na medida em que a morte cerimonial era considerada como
‘a boa morte’ algo como o kalós thánatos homérico, a relação entre os grupos
inimigos era dotada de uma positividade essencial: não apenas ela dava acesso à
imortalidade individual, como permitia a vingança coletiva, a qual era o motor
e o motivo centrais da vida tupinambá. Soares de Souza tem essa fórmula
lapidar: ‘Como os Tupinambás são muito belicosos, todos os seus fundamentos é
como farão guerra aos seus contrários.’ Sobre esta dialética da morte do
individuo e da vida do grupo, ver essa passagem de Thevet:‘E não pensem que o
prisioneiro se surpreende com essas notícias (que será executado e devorado em
breve), assim a opinião de sua morte é honorável, e que lhe vale muito mais
morrer assim, que em sua casa de alguma morte contagiosa: pois (dizem eles) não
se pode vingar a morte, que ofende e mata os homens, mas vingam-se os que são
mortos e massacrados em atos de guerra.” (Metafísicas Canibais – Eduardo
Viveiros de Castro – n.r pág. 158-159)
Os mejicas, ou
aztecas e até mesmo os incas dos Andes eram imperialistas e não só conquistavam
outros povos como também capturavam escravos para serem imolados nos templos e
consumidos em seus rituais religiosos.
Acreditavam que assim fazendo garantiam o equilíbrio do Universo. Quem pensaria
que seus vizinhos não tinham o direito natural de defenderem-se do assédio
destes impérios hostis? Ou quem poderia questionar que o povo azteca não
deveria resistir pelas armas à conquista de Cortez? Ao demonstrarem fraqueza
perante seus conquistadores reforçaram as hostes com tribos contrárias dos
inimigos com os povos antes por eles cruelmente dominados e ao tentar
presentear com suas riquezas os invasores europeus só atiçaram ainda mais a
cobiça do homem branco e caíram em mortal armadilha. Tentar manter o status quo
através da contemporização com o inimigo nem sempre é o melhor caminho
aprenderam tardiamente os mejicas.
Os maias chamavam ao
recém nascido “prisioneiro da vida”: a morte libera o homem do cárcere, de uma
reclusão passageira. De acordo com esta concepção o homem não se aferra a vida.
No México pré-hispânico é fácil morrer, e não só é fácil morrer a morte gloriosa
na pedra do sacrifício ou em um campo de batalha. Heroísmo? Estoicismo? Talvez
nem um ou outro. Talvez para aqueles homens a morte não signifique mais que o
fim de uma situação não exatamente muito afortunada e de qualquer forma
provisória. Morrer na guerra ou na pedra dos sacrifícios era considerado a mais
alta distinção. Distinção esta que era concedida ao prisioneiro de guerra,
membro de uma tribo estranha. O fato de ter sido vencido na batalha e que caíra
prisioneiro não era motivo para discriminação formal. Mesmo reduzido a condição
de escravo, pois era entregue a um senhor até o seu dia final, não perdia seus
direitos nem sua dignidade humana. No México Antigo era fácil morrer, mas bem
menos fácil viver. Sua concepção do mundo era a iminência constante de uma
infinidade de cataclismos, desde as quatro destruições do mundo com que seu
mito faz surgir a criação do mundo, o que abria a possibilidade de ocorrer
alguma catástrofe iminente a qualquer dia ou qualquer hora. Por isso seus
sábios observavam os movimentos dos astros e todos os fenômenos da natureza no
objetivo de prever o anúncio de novos infortúnios que só poderão impedir
através dos sacrifícios e dos conjuros mágicos dos sacerdotes e xamãs. A ideia
de sobrevivência no além não depende de uma conduta controlada por certos
princípios ético-religiosos, o que dá a vida seu trágico fatalismo, pois as
divindades também não se sujeitam em suas ações a normas éticas. As divindades
destroem e aniquilam arbitrariamente os seres viventes através da realidade da
natureza.
Escravidão Negra –
De todas as
instituições nefastas criadas pelo homem, com certeza a escravidão é a mais
hedionda, mesmo tendo sido celebrada na Antiguidade por todos os povos da Terra
e aceita como uma coisa normal pelos filósofos e cuja presença nefasta perdurou
até o século XIX nos países ditos cristãos. Foi criado, pelos seus captores
brancos o mito, nas Américas, de que o africano seria acostumado ao regime de
escravidão, o que justificava seu tráfico, e que sua cultura no geral permitia
este tipo de servidão, o que é uma distorção conveniente do todo. Mas na
verdade foi na Europa e na Ásia, onde os povos indo-arianos estabeleceram
primordialmente, como instituição, o regime de castas e justificaram legalmente
a escravidão do próximo, como preso de guerra ou por dívidas adquiridas que a
prática atingiu seu apogeu e complexidade. Na Eurásia entre os antigos povos indo-arianos
era costume quando morria um grande senhor que seus servos fossem mortos
imediatamente pelos guerreiros para acompanhá-lo ao outro mundo onde ficariam
obrigados a continuar a servi-lo, enterrados junto aos seus cavalos e pertences
pessoais. Nem na outra vida tinham direito de sair da condição de vassalos.
Mas de todas as
formas de escravização com certeza, a mais vil, foi a escravidão dos africanos e o tráfico para as
Américas, por séculos, um verdadeiro genocídio que mutilou o continente
africano e cujas conseqüências desta verdadeira hecatombe ainda se fazem sentir em ambos os continentes,
de onde a mão de obra escrava foi tangida, num verdadeiro processo
antropofágico velado, onde o homem era explorado pelo homem até sua finitude
como força laboral descartável.
O escravo africano
podia ser vendido, torturado, açoitado, estuprado, ter sua prole vendida, ser morto
sem justiça, aprisionado em condições inumanas, marcado a ferro e capado como
um animal de carga, ou sofrer pena de morte caso atacasse seu feitor, isto é,
sofrer impunemente todo o tipo de sevicia pelo seu “senhor”.
Desta época, no auge
da escravidão e tráfico de africanos, podemos lembrar a opinião de um médico
lusitano da segunda metade do século XVIII, destacado para trabalhar nas
colônias portuguesas, cuja única preocupação era o imenso desperdício da mão de
obra nesta verdadeira máquina de moer gente criada pelos europeus no grande
campo de escravos que eles denominavam de Novo Mundo:
"Os escravos metidos nesta tortura, sustentando o
horrível combate da vida com a morte, tremendo, e sendo obrigados a miúdo a
comparecerem como réus: alguns tomam fôlego, e morrem; outros passam navalhas
às goelas; outros lançam-se aos poços; outros precipitam-se das janelas, das
grandes alturas; outros finalmente matam seus senhores". (Memória a
Respeito dos Escravos e Tráfico da Escravatura entre a Costa D'África e o
Brazil - 1793 - Doutor Luiz António de Oliveira Mendes)
Neste caso a morte
auto-imposta, a liberdade última de dispor da própria vida é absolutamente
justificável perante o Direito Natural que transcende qualquer legislação
ditada pelo “senhor”. A vingança se resume para a vítima de fugir de sofrimento
atroz e ao mesmo tempo provocar um prejuízo pecuniário razoável ao “senhor”.
Mas é evidente que matar quem escraviza, aquele opressor do direito à liberdade
e a vida, que impede o ir e vir de qualquer ser humano e que ainda tem sobre
ele poder de castigo físico não pode ser considerado crime de assassinato e sim
mais uma ação em legitima defesa do oprimido contra seu algoz. Não é necessário
lembrarmos as severas penas impostas aos escravos que ousavam justiçar seus
“senhores”. As praças de pelourinho que permanecem ainda hoje como curiosidade
turística de visitantes são memória de como o estado apoiou a morte e a
tortura de africanos em todas as cidades americanas inclusive com apoio de leis
e legisladores. Até hoje a sociedade escravista ainda latente nestes países superlota
suas prisões com afro-descendentes, que são considerados de alta periculosidade
pela sociedade etnicamente discricionária, numa relação percentual de lotação muito maior em relação ao dos descendentes de europeus
presos do que a divisão étnica natural das populações nos países
onde a escravidão é uma realidade histórica do passado recente. A
criminalização do “rebelde” com penas superiores de restrição de liberdade e a
grande mortalidade em ações policiais das etnias negras, que ainda vivem em
condição inferior na sociedade capitalista, permanece constante para os de
origem escrava, na maioria das vezes obrigada a viver em guetos nos países onde
habitam. A segregação étnica, por exemplo, nos Estados Unidos da América só
terminou na década de 60 do século passado, outorgada seu fim por um presidente
branco de origem irlandesa. Destes descendentes africanos que vivem nas
Américas a maioria ainda serve de mão de obra barata e dispõe sua mais valia em
trabalhos inferiores de prestação de serviços onde o descendente de europeu não
quer trabalhar. Daí o círculo vicioso de opressão e criminalização nunca tem
fim.
Não pode o oprimido
então matar seu opressor?
A Europa sempre se
considerou superior ao restante do mundo. Outras civilizações foram tratadas
com desdém e povos foram chamados de selvagens. Os cientistas do século XIX
ajudaram a criar esta ilusão até a deflagração no início do século XX da Primeira Guerra Mundial e
depois com a Segunda Guerra e o holocausto dos povos eslavos e judeus promovido
pelos nazistas e sua nova pretensa ordem civilizatória, o ápice histórico do poder branco sobre o
planeta e também o início da decadência dos impérios europeus. Nos guetos
apinhados de judeus suas organizações sionistas tentavam contemporizar com os
nazistas. Imaginavam poder chegar a um acordo com seus algozes e até mesmo
conseguir com a derrota dos ingleses sua tão almejada terra no Oriente Médio
habitada pelos palestinos. Com isso serviam de intermediários do poder nazista
sobre seus povos aprisionados e legislavam punições aos que não aceitavam o
jugo do invasor. Seria possível alguém considerar crime um judeu matar seu
algoz nazista em um campo de trabalho? É verdade que com certeza seria enforcado como punição, mas teria que aceitar a pena por absoluta falta de defesa e não por algum ato de
justiça que neste caso inexiste. Matar nazistas não pode ser considerado crime
em tempo algum. Não existe direito a vida ou livre expressão para àqueles que
pretendem possuir condição étnica ou moral superior aos demais semelhantes de
outras etnias. O racismo, expressão que só pode ser usada em seu pior sentido
não pode ser tolerado, nem seus seguidores
podem usar o abrigo da lei para difundir tais princípios, que vão contra
o livre convívio da raça humana, nem alegar direito de ideologia ou religião
para tal fim.
O que deve ser
considerado estranho para o homem comum foi como tantos judeus foram enviados
para os campos da morte confinados em vagões de gado dentro de uma Europa dita
civilizada. Como foram tantos tangidos como ovelhas na falsa promessa de uma
liberdade futura pelos seus algozes. Não deveria ser difícil adivinhar qual
destino os esperava ao fim do percurso, mas mesmo assim a civilidade toldou
seus espíritos e bloqueou o extravasamento natural de seus instintos primários,
a presença próxima dos seus entes queridos impediu que assumissem uma
derradeira resistência contra os dominadores e permitiram que fossem tratados
como gado de um imenso rebanho levados para a morte.
Mas o sectarismo dos
grupos fascistas, que continua sendo ainda hoje uma ameaça constante, não se
restringe apenas às diferenças étnicas. Ela inclui também aversão às questões
de gênero, origem, religião e qualquer outra diferença ou minoria que possa
garantir a diversidade de opinião de uma sociedade realmente livre. Não é por
nada que as ideologias nazistas tiveram grande penetração nas Américas onde os
descendentes de europeus ainda mantêm supremacia, pois foram nestes continentes onde
historicamente tais ideologias sectárias tiveram grande repercussão prévia no
genocídio do gentio e na escravidão cuja ideologia escravista antecipou por séculos o nazismo e ainda permanece
velada na exclusão da riqueza para a população mestiça e negra em sua maioria
confinada em distantes guetos urbanos das metrópoles dos século XXI.
A Interdição Católica
– Monoteísmo
Pitágoras já
censurava aqueles que se matam, comparando-os a soldados que fogem, infiéis ao
posto onde os colocou a divindade. Platão agrava a submissão requerida
escolhendo uma imagem mais pesada: “Nós, os humanos, estamos numa espécie de
curral e não temos direito de nos libertarmos a nós mesmos, nem nos evadirmos!”
Assim fala Sócrates, no Fédon, alguns instantes antes de beber a cicuta. Com
isso não faz mais do que retomar uma fórmula que se pronunciava durante a celebração
dos Mistérios. Esse curral deve ser entendido como um cercado de escravos, ou
de gado, e Sócrates precisa: “São deuses, aqueles sob a guarda de quem estamos
e nós, os humanos, somos uma parte do que possuem os deuses.” Assim ficará estabelecida, nos próprios termos que empregavam os cultos místicos de salvação
e as seitas órficas, que influenciarão a Igreja Católica na condenação
metafísica do suicídio, preceito que dominará até nossos dias no Ocidente.
O cristianismo, pelo
contrário, através da crucificação do Cristo estabeleceu o dogma sacrificial na
sua perspectiva de credo. Era necessário estabelecer uma linha fronteira entre
sacrifício e suicídio e distinguir no campo da morte voluntária o permitido e o
interdito entre a glorificação do mártir e as formas abominadas e heresias. A
condenação cristã do suicídio, formulada no século V por Santo Agostinho,
depois reafirmada por tantos concílios (Arles, Orléans, Braga, Toledo, Auxerre,
Troyes, Nimes) e logo ratificada pelas leis canônicas e civis, apóia-se na
noção de um Deus soberano.
Se os cristãos estão
seguros de outra vida livre da morte e da dor, por que se demoram neste mundo?
Este raciocínio ingênuo inspirou muitos cristãos em seus primórdios. Mais
tarde, no século VII, o paraíso de Maomé também deu aos guerreiros do Islã um
grande impulso e coragem. Mas o tempo dos mártires passou, definiu Santo
Agostinho, Deus quer que vivamos e suportemos as provações deste mundo que Ele
criou. Na época da introdução do cristianismo, nos séculos quando eram
perseguidos seus seguidores o jogo era criar mártires e provocar a cólera dos
prefeitos do Império, assim ganhava-se a salvação eterna e a danação dos
pagãos. Segundo Tertuliano, ser morto pelos pagãos era imitar Jesus. Em
especial os seguidores de Donato, que Santo Agostinho iria combater mais tarde,
eram especialistas do suicídio indireto ao profanar com grande furor os ídolos
pagãos e assim obrigar os magistrados em mostrar sua crueldade. Morria-se
contente de ir encontrar o outro mundo e de ter comprovado a maldade deste. Dez
séculos mais tarde os cátaros perseguidos como hereges opuseram aos inimigos
que os afligiam a silenciosa decisão de jejuarem até a morte.
No início do século
V, quando Santo Agostinho escreve A
Cidade de Deus, o cristianismo assumiu a posição oficial de religião do
Império e os impulsos suicidas tornaram-se suspeitos. Matar-se é renunciar, mas
também contestar, emudecer para sempre sem dúvida, mas com o fundamento da
denúncia contra tudo que torna a vida inviável e principalmente contra a
opressão. O suicídio sempre foi o recurso daqueles que não tem meios de luta
para enfrentar o inimigo mais forte. A extrema fraqueza pode-se tornar uma arma
temível. Ela pode rivalizar com a força ao iluminar os efeitos de seu
desespero.
O objetivo de Santo
Agostinho é oficializar o poder da Igreja em um mundo cambiante dentro do
decadente Império tornado cristão, fundamentando em nome de Deus. A ideia de um
poder soberano secular consolidado pelo poder e como fonte única de Deus. Assim
todos os poderes tornam-se solidários e cúmplices a partir das tradições, e
vinte anos após a sua morte, no Concilio de Arles, os bispos lutam para
defender a consciência tranquila dos proprietários de escravos e tiranos
domésticos: “Se um servidor, de qualquer
condição ou sexo que seja, como para provocar a paciência do Senhor, vier a se
açoitar na agitação de um furor diabólico, é ele só que será culpado pelo
sangue derramado e sobre seu senhor o odioso crime não cairá.” O diabo e
seus maus conselhos, hipótese crédula e conveniente para desculpar as
verdadeiras causas do desespero dos oprimidos. Nem a invenção da loucura
poderia ser melhor, e da internação psiquiátrica como um sucedâneo dos
tormentos do inferno.
No Oriente –
No dia 11 de junho de 1963, durante uma manifestação
contra o governo anticomunista, que perseguia duramente os monges budistas do
país, um carro parou no cruzamento e o motorista estacionou, saiu do carro e
abriu o capô, para fingir que o veículo havia apresentado algum defeito e
assim, não chamar a atenção da polícia.
Do banco de trás do carro, o monge Mahaiana Thích Quảng
Ðức, nascido em 1897 e originalmente batizado de Lâm Văn Tức, sai do carro, com
dignidade, se curva para as quatro direções, e calmamente se senta na posição
de lótus, de frente para o ocidente. O monge começa sua medição, recitando
serenamente os nomes dos Budas. Embebido em querosene, o monge rapidamente
acende um fósforo e inicia um incêndio gigante que toma conta de todo seu
corpo. Durante a auto-imolação, o monge continua sentado, com as mãos juntas em
frente ao peito, olhar sereno e sem demonstrar expressão de dor.
O fogo estava tão quente que até o recipiente próximo
derreteu, no entanto, Thích Quảng Ðức continuou sentado, em face a morte. No
final, quando o fogo já se dissipava, se percebeu que o monge ainda mirou o
oeste, com a cabeça balançando para baixo, como se estivesse se curvando aos
Budas. Em seguida, ele caiu para trás e o suicídio se concretizou. Nada mais se
podia fazer mais para deter aquele que ficou conhecido como a “Tocha da Justiça”.
No Oriente a
concepção de morte voluntária tinha uma concepção diferente, em sociedades
onde as classes eram definidas de forma solidamente estratificada, e possuíam uma
hierarquia imutável. Esta relação particular de vassalagem iria criar situações
inusitadas na rígida relação social vigente. No Japão muitas vezes o criado
para chamar a atenção de seu dono e recriminá-lo por alguma falta cometida no
seu comando tirava a própria vida, como protesto contra o “senhor”. O samurai
cometia assim o sepuku e evitava a vergonha de ter que continuar servindo a um
nobre indigno de sua confiança. Desta forma a liderança do superior era fatalmente
questionada e causava o servo a irreversível desonra do senhor.
Matar-se, a suprema
liberação, pensam os ascetas indianos. Na seita indiana dos digambara, piedosos jainistas que
andavam “vestidos de vazio” e evitavam sequer pisar em insetos que rastejavam
no chão, alguns chegaram espontaneamente a auto-cremação como demonstração de
desprezo pela vida terrena. Um desses ascetas indianos denominados pelos gregos
de ginosofistas, isto é, sábios que andavam nus, mandou preparar uma pira e
sacrificou-se perante Alexandre Magno. Outro fez o mesmo diante de Cesar.
Perante o senhor do mundo, o senhor de si demonstra orgulhoso seu poder de
prover ou acabar a própria vida.
O pensamento da morte
está no coração do budismo. Só Heráclito, o sábio grego contemporâneo do Buda,
expressou tanto desprezo e foi tão implacável sobre a realidade da existência: “o mundo é uma casa em fogo, nada é senão
devenir, mistura móvel de ser e de nada. As linhas de uma paisagem ou de um
rosto não são menos evanescentes que as de uma flor ou uma chama.” Nada
existe que o tempo não altere, nem nada que subsista fora do tempo. Nos
primórdios do budismo nenhum principio eterno é admitido, nem divindade, nem
alma, a não ser o devenir sem finalidade, sem origem. Todo o ser é um agregado,
um composto de elementos que devem se separar após terem se unido. A dor de
viver está nesse dilaceramento que mais cedo ou mais tarde nos resgata de todo
o apego, e por fim de nossa própria vida. Não se pode escapar da roda de dor da
Samsara, do devir senão pelo
exercício constante e metódico do desapego que obriga a lucidez. Uma via pode
então abrir-se para a salvação: a sabedoria do coração, que consente no
inevitável fim da jornada do Samsara:
o nirvana, o retorno para a fonte, o despertar para a verdade. Portanto o budismo
é impiedoso quanto ao desejo humano de durar, que ele não ilude com nenhuma
esperança de eternidade. Mas também não encoraja a morte voluntária. Pois
morrer é apenas dar lugar a outras vidas. Todo o desejo de ser é cego, só o
despertar para a verdadeira realidade importa, para além dos pares de opostos.
Considerações finais sobre o
direito de morrer e de matar -
Matar o próximo no
Ocidente só é justificado em caso de guerra declarada pelo Estado, neste caso
os integrantes das Forças Armadas do país em guerra tem salvo conduto para
matar o inimigo, que preferencialmente deve ser de outra nacionalidade. Neste
caso, o interdito religioso deixa de ter valor e a justiça confere permissão ao
soldado para matar outros seres humanos sem sofrer sanções criminais. Espera-se
que a ação de matar inimigos de outras nacionalidades seja uma missão sem culpa e galardão gerador da mais
alta honra e prestigio do soldado matador, o herói dentro da instituição
militar. Não deixa de ser a tradição da caserna, como era para os tupinambás, um rito de passagem
servir nas forças armadas dos Estados, pois quer a cultura
militarista vigente que a instituição militar torna o jovem em adulto, isto é,
o primeiro sangue legitima e marca sua saída da idade infantil para a idade adulta. O
jovem sempre foi e sempre será utilizado em linhas de frente de batalhas. O
nome da arma infantaria decorre deste costume.
Além de qualquer consideração metafísica torna-se evidente
contudo que dispor da própria vida é um direito inalienável do ser. Nenhum
dogma religioso ou legislação pode impedir que o indivíduo interrompa a própria
vida, caso a considere indigna da condição natural humana de saúde, de liberdade e de
livre arbítrio. Mas quando discorremos em tirar a vida de outrem existem
limitações evidentes de ordem moral e ética entre ser o oprimido e o opressor.
Não podemos decidir quem pode viver ou morrer pelo critério absoluto daquilo que
acreditamos estar de acordo com a nossa própria concepção de vida saudável,
bela ou correta. Tornou-se uma noção atávica da humanidade, no entanto, que
qualquer um tem o direito de defender o próprio lar contra invasores, de matar
tiranos quando eles tentam impor limites às liberdades individuais e de impor
resistência quando nossa nação é invadida por forças estranhas ou tentam impor
para nós um governo títere, sem representação do voto da maioria. Após a II Guerra Mundial ficou evidente ser impossível conviver com qualquer tipo de fascismo ou aceitar de forma pacifica qualquer ordem que faça apologia da perseguição de minorias sejam quais forem. Neste caso,
independente da legislação ditatorial que o tirano venha a impor, ou da repressão vigente, ou que o
invasor tente legitimar-se por decreto torna-se lícito através do Direito Natural
matar o opressor. Morrer defendendo a própria liberdade é a única forma lúcida
de abrirmos mão de nosso bem mais precioso. Como lembra Camus em seu ensaio
sobre o suicídio: “Na verdade o suicídio
pode estar ligado a considerações muito mais honrosas. Por exemplo: os
suicídios políticos, chamados de protesto, na revolução chinesa.”
De acordo com o tribunal de Nuremberg: "Iniciar uma
guerra de agressão... não é apenas um crime internacional; é o supremo crime
internacional, diferindo apenas de outros crimes de guerra por conter em si o
mal acumulado deles todos". Desde Nuremberg, "Eu estava apenas
cumprindo ordens" não é mais uma defesa válida. Mesmo assim países
imperialistas usando falsos argumentos patrióticos têm invadido outros mais
fracos em guerras genocidas ou incentivado guerras e desestabilização política
fora das suas fronteiras desde a II Guerra Mundial.
Estes atos extremos, a morte voluntária e a luta armada como forma de defesa contra a opressão, seja ela vinda de fora ou interna, só dependem da consciência de cada um. Neste caso, mais importante que a vitória é a luta.
"Se não somos livres, todos somos assassinos em potencial"
(Nina Simone em Montreaux)
Leia Também:
http://koanzenbudist.blogspot.com.br/2014/06/imortalidade-e-reencarnacao-ou-jornada.html
http://otaoeotarot.blogspot.com.br/2012/04/quanta-uma-mensagem-para-quem-esta.html
Bibliografia:
1) A Morte Voluntária no Japão – Maurice Pinguet – Edit.
Rocco – 1987
2) O Mito de Sísifo – Albert Camus – Edit. Record – 2013
3) La Calavera – Paul Wetheim – Fondo de Cultura Econômica –
1992 – México
4) Metafísicas Canibais – Eduardo Viveiros de Castro – Cosac
Naify - 2015
5)Heróis - Lucy Hughes-Hallet - Edit. Record - 2007
5)Heróis - Lucy Hughes-Hallet - Edit. Record - 2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário