quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Racionalismo – O Devoramento do Conhecimento.



Newton -Willian Blake


"O fato é que as imagens arquetípicas tem um sentido a priori tão profundo que nunca questionamos seu sentido real. Por isso os deuses morrem, porque de repente descobrimos que eles nada significam, que foram feitos pela mão do homem, de madeira ou pedra, puras inutilidades. Na verdade o homem apenas descobriu que até então jamais havia pensado acerca de suas imagens. E quando começa a pensar sobre elas, recorre ao que se chama 'razão', no fundo porém, esta razão nada mais é do que seus preconceitos e miopias" ( Carl Jung - Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo - Ed. Vozes - 5º Ed. - pág. 24 ) 

O Cro Magnon, guerreiro caçador que suplantou os demais hominídeos na escalada da evolução dando origem ao homem moderno, usava do instinto para pensar seu meio em contato direto com sua totalidade animal, ferramenta fundamental num habitat hostil para garantir sua sobrevivência e reprodução. Da observação instintiva acurada da natureza para a intuição, aos poucos ocupou espaço importante e crescente como função na mente humana, ampliando suas expectativas e dando condições para a criação de um sentido de espiritualidade que resultou no animismo, como explicação primordial do mundo a sua volta, da sua existência e a dos outros seres. O xamã da tribo ocupava um papel central na articulação desse importante atributo de encarar o plano dos espíritos, estabelecendo as primeiras normas, os interditos e as permissões através de analogias e experiências mágicas, desenvolvendo esse novo pensar voltado aos entes da natureza e aos ancestrais do clã e mais tarde às divindades

Isso não impediu que no surgimento das protocivilizações agrícolas uma visão mecanicista fosse surgindo como explicação dos processos da natureza que influenciaram suas criações funcionais e artísticas em paralelo com uma teologia cada vez mais complexa desenvolvida pelos primeiros reis sacerdotes que usavam da fé dos homens como sua ferramenta de poder nas cidades estado. 

Mas é no império da razão que o homem acreditava ter atingido o apogeu do seu pensamento lógico colocando-o definitivamente como centro do Universo. Tendência de revalorização do período Clássico pelos eruditos elaborada a partir do séc. XV, o Renascimento criou uma imagem idealizada de um período áureo do pensamento humano entre gregos e latinos na antiguidade e colocou a razão, herança dessa era Clássica, como a forma de pensar mais evoluída da abstração humana.

Como explica Hobbes em sua obra “Leviatã”: “Os latinos chamavam aos cômputos de moedas ‘rationes’, e ao cálculo ‘ratiocinatio’ e àquilo que nós, (o autor em sua época), em contas ou em livros de cálculo denominamos ‘itens’, chamavam ‘nomina’, isto é, ‘nomes’; parece daí resultar a extensão da palavra ‘ratio’ à faculdade de contar em todas as outras coisas. Os gregos têm uma só palavra, ‘lógos’, para linguagem e razão. Não que eles pensassem que não havia linguagem sem razão, mas, sim, que não havia raciocínio sem linguagem”. 

Razão é a divisão ou relação entre duas grandezas no conceito matemático. Dissecação, dilaceramento de um processo complexo em suas etapas mais simples. Só mesmo um ser onívoro ansioso e voraz pode associar sua forma de pensar mais especializada como desmembramento. É no reducionismo que o racionalismo foi procurar amparo. Tudo precisa ser dividido até seu elemento primordial para explicar seu significado. O Todo da natureza precisa ser esquartejado como foi o gigante Purusha que com suas partes deu origem a Criação conforme a cosmogonia hindu. É no conceito alimentar, presente no inconsciente coletivo da humanidade, que os conhecimentos são absorvidos, mastigados e digeridos em pequenos elementos. O universo é fracionado em partículas elementares, e seus atributos são degustados através de instrumentos de precisão cada vez mais especializados. 

Átomos, neutrinos, células, DNA, vão sendo desvendados em escala fragmentária, racionalizados pela mente dos cientistas como pequenas máquinas e analisadas suas funções em escalas cada vez menores, dando lugar a novas explicações sobre o meio físico por filósofos cientistas colocando a teologia num segundo plano na explicação do universo e na análise de sua totalidade. Razão, divisão, fracionamento vão criando uma nova ordem lógica e mecanicista para os homens que pretendem desvendar e devorar os conhecimentos do cosmo.

Mas por ironia suprema a própria razão desmente o pensamento racionalista e põe em xeque a visão mecanicista e reducionista do cosmo. Os estudiosos deram de cara na “Muralha do Paraíso”. Kant usando o mais puro racionalismo restabelece o mistério da alma. Demonstra com sua lógica que nada podemos conhecer de uma realidade supostamente objetiva, além do que nos chega através de modos subjetivos da percepção e cognição. Einstein, por sua vez, prova matematicamente que a teoria newtoniana é válida apenas para uma espécie de compreensão mecanicista e superficial do mundo “real”. O tempo e o espaço estabeleceu Einstein, não são o que percebemos ou pensamos. Heisenberg descobriu que não há maneiras de observar fenômenos subatômicos sem o observador interferir nos resultados. Foi o físico que revelou a natureza misteriosa da dimensão subatômica. 

Numa espiral de evolução ascendente, o que tinha sido classificado pelo pensamento ocidental racionalista como superstição primitiva, pelos herdeiros dos iluministas, os cientistas vitorianos, agora a nova visão pós-moderna aceita como conhecimento empírico intuitivo dos sábios orientais sobre a realidade além da ilusão de maia, o mundo do conflito dos opostos. Chegaram ao ponto de buscarem exemplos e socorro no sagrado para explicar adequadamente os fenômenos da natureza. Na cosmogonia taoísta consta que o aparecimento do Dois assinalou o começo do mundo criado a partir do Um.

Na hipotética visão da mônada anterior ao Big Bang, denominada Era de Planck pelos físicos, os cosmologistas especulam que as quatro forças do universo estavam reunidas em duas e as duas em uma única. Antes do dois havia o Tao afirma Lao Tzu, o incognoscível em sua essência pura. Nas mitologias do Crescente Fértil, o universo começou quando Marduk matou Tiamat e dividiu-a em duas, em mais uma idéia sagrada de dilaceramento da unidade suprema. 

O pensamento intuitivo/instintual associado antes aos povos primitivos parecem agora assumir uma nova função complementar na compreensão da totalidade, e são consagrados pelos novos símbolos na emergente visão científica pós-moderna. Os ensinamentos das grandes tradições espirituais não parecem mais absurdos. Estamos no caminho de uma nova remitologização do papel do herói, que do ponto de vista global obriga um maior conhecimento do inconsciente coletivo como patrimônio da humanidade para refundar as novas atitudes humanas com seu próximo e por extensão em sua relação com o planeta. Assim como nossos antepassados, que estavam em sintonia permanente com a natureza, devemos interiorizar a certeza de que tudo no universo está conectado.


Dentro dessa visão de conexão do individuo ao Cosmo, como uma matriosca, a boneca russa que sucessivamente preenche um espaço dentro de sua réplica similar maior, o homem preenche sua posição no Universo, mas dentro de uma concepção mais materialista nega sua integridade com o meio, analisando o exterior físico como um observador fora do processo, olhando e percebendo somente as paredes lisas de seu nicho como sendo a realidade. O grande mestre Zen T. D. Suzuki sobre essa visão Ocidental do mundo, onde prevalece a lógica mecanicista, escreveu:


"No estudo da realidade, o método cientifico consiste em encarar um objeto do ponto de vista chamado objetivo. Suponhamos que uma flor aqui em cima da mesa seja o objeto do estudo cientifico. Os cientistas a submeterão a toda a espécie de análises, botânica, química, física, etc., e nos dirão tudo o que tiverem descoberto a respeito da flor vista através dos respectivos prismas, e afirmarão que se esgotou o estudo da flor e que já não há mais nada para acrescentar, a não ser que se descubra alguma coisa nova, acidentalmente, no decurso de outros estudos... (  )e quando está tudo terminado, sintetizar essas abstrações analiticamente formuladas e tomar o resultado pelo próprio objeto".


"Mas ainda assim permanece a pergunta: 'Terá sido todo o objeto realmente apanhado na rede?' Eu diria: 'Decididamente não!" O enfoque Zen, conforme Suzuki: "Esse modo de conhecer ou ver a realidade pode chamar-se conativo ou criativo. Ao passo que o modo cientifico mata. assassina o objeto e, dissecando o cadáver e tornando-lhe a reunir as partes, tenta reproduzir o corpo vivo original, o que é efetivamente um feito impossível, a maneira Zen toma a vida tal como é vivida, em lugar de espostejá-la e tentar restaurá-la pela intelecção, ou colando abstratamente, umas às outras, as partes quebradas. A maneira Zen preserva a vida como vida; nenhum bisturi a toca".


Essa visão do pensamento Ocidental expressa por Suzuki, que evoluiu da prática de esquartejamento da realidade para seu entendimento marca como o ser Onívoro percebe seu meio em oposição direta com o "approach" Zen.  A filosofia do Ocidente está ligada a lógica, mas como diz o mestre Zen: "não  há liberdade na lógica, onde tudo é controlado pelas rígidas regras do silogismo". 

Nenhum comentário:

Postar um comentário