No Japão as tradições relacionadas com a morte voluntária remontam desde seus primórdios numa sociedade completamente hierarquizada e podem ser classificadas em vários tipos, com diversos significados conforme seus objetivos primários. O suicídio de vassalos ou guerreiros pode significar uma reprimenda ao senhor que por algum motivo demonstrou fraqueza perante seus subordinados. Ou pode servir para cumprir uma sentença recebida de seu senhor por alguma falta cometida, através do sepuku o faltoso tranquilamente se entregava ao suplício para cumprir seu papel de homem honrado.
Mas foi no início do séc. XX, com o surgimento de várias sociedades secretas de cunho nacionalista, que as ações de suicídios seriam precedidas de violentos atentados contra dignitários, que por alguma razão tinham despertado a ira dos nacionalistas. O Japão atravessava uma difícil fase, pois seus interesses nacionais estavam sendo confrontados pelas potencias emergentes como os EUA e pelos europeus que detinham já uma antiga hegemonia no Oriente e os militares nipônicos que integravam estas sociedades viam com desagrado o imobilismo das instituições em modificar ou estabelecer uma estratégia de domínio coerente com seus interesses armamentistas que imaginavam corresponder com o inexorável destino glorioso de sua pátria.
Da censura sacrifical imposta aos superiores até o terrorismo, impuro eticamente, mas eficaz como estratégia dissuasória e eficiente como arma política foram evoluindo os acontecimentos, o atentado político causava mais impacto junto à opinião pública quando acontecia contra um homem ilustre e possuía mais divulgação dos meios de comunicação que um mero suicídio de um subalterno, assim as ações desses oficiais fanáticos e descontentes foram se especializando.
Muitos ainda seguiram as tradições pagando com a própria vida seus atentados. Em 1898, após ter explodido a caleche do marquês Okuma, o culpado, Kurushima Tsuneki, membro da Sociedade do Sombrio Oceano, cortou o próprio pescoço. Alguns anos mais tarde, em 1913, as boas maneiras ainda não tinham sido esquecidas: julgando tíbia a atitude oficial para com a China, um jovem adepto da Sociedade do Dragão Negro matou o diretor do Escritório de Assuntos Políticos do Ministério das Relações Exteriores. Depois resolutamente estendeu no chão um mapa da China, sentou-se na posição de descanso e aí abriu seu ventre da forma ritual. Assim vítima e assassino seguem, o couvade desse guerreiro é sublimado através da própria vitimação, tradição perseguida em toda a história do nacionalismo japonês. Como no amok das tribos malasianas, quando num frenesi mortal o homem em transe enlouquecido cumpre sua função num ataque sangrento e sem sentido, no caso japonês, perpetra seu crime cego pelo ódio chauvinista nascido de seus ideais. Assim repetiu a ação em 1921 Asahi Heigo, jovem dirigente de uma “Liga da Virtude do País dos Deuses”(Shinshu gidan): apunhalou o banqueiro Yasuda Zenjiro, que tinha cometido o grande erro de ficar conhecido como o homem mais rico do Japão, depois cometeu suicídio para purificar seu ato e dar um valor moral de exemplo, como arma política. Ele se insurgia contra a classe dominante como um anarquista, mas com claras influencias do extremismo nacionalista de direita.
As ligas patrióticas pretendiam ressuscitar os antigos valores num mundo em franca mudança onde o capital ocupava o espaço deixado pelos antigos oligarcas, os ricos industriais ocupavam as funções do poder e mantinham uma política oficial muito tímida no exterior, segundo imaginavam os extremistas, e submissa aos mais ricos no interior do país. Corrupção e covardia, duplo aspecto de um mesmo vício complacente das elites, fazia o Estado se afastar das antigas tradições guerreiras de onde se originara.
Tinham absoluta fé em sua virtude ancestral que lhes dava o direito de matar, mantinham as mesmas motivações antropofágicas dos antepassados, as vitimas atingidas não tinham o direito de viver. Não tinham particularmente muito interesse pelos programas sociopolíticos, em geral o culto a utopia monárquica da imagem imperial ocupava todo o seu escopo de objetivo nacional. Seus atos tinham o moto de despertar a nação, os maus conselheiros seriam dissipados pelo vento do sacrifício, como nuvens, enfim deixariam brilhar o sol da perfeição soberana ofuscada pelos novos tempos. Seus golpes desfechados contra o sistema e seu sacrifício posterior era uma demonstração de seu coração puro, uma justificativa para eles mesmos de sua intenção reta. Assim demonstravam seu desinteresse pessoal pelas conseqüências que haviam servido ao projeto pessoal de limpeza da sua sociedade. Com tais atitudes, seu martírio desculpava o que de odioso tinha sido o atentado contra a ordem que pretendiam reformar, sem esperar julgamento divino ou da posteridade.
Os terroristas souberam aproveitar o prestigio secular da morte voluntária. Os componentes das ligas de extrema direita usavam como artifício esta medida extrema para afastar seus inimigos. Permitiam-se admoestar suas vítimas para que reconhecessem suas “culpas”, assumissem suas responsabilidades, se imolassem para manter a honra. Sabiam que seus “conselhos” não seriam seguidos, mas estavam convencidos do prejuízo moral sofrido por suas vitimas, denunciando finalmente sua covardia e corrupção. Com a morte do imperador Meiji, um dos fundadores da Sociedade do Dragão Negro, Toyama Mitsuru injuriou os ministros de Estado do império por não terem aconselhado devidamente ao monarca para cuidar melhor de sua saúde. Questionou publicamente porque não haviam pedido demissão ou até mesmo se sacrificado pela falta cometida. Toyama não pretendia que atendessem às suas sugestões, mas pretendia colocá-los na sua dimensão de liberais ausentes de fibra moral e longe dos ideais da antiga tradição de governança. E o convite ao suicídio passou a ser o prelúdio ritual, a desculpa antecipada para o assassinato do faltoso com a honra. Utilizava-se assim a tradição como arma para conferir dignidade à intimidação política. Antes de ser vitima de um atentado organizado em 1932 pela Liga do Juramento pelo Sangue (Ketsumeidan), Inoue Junnosuke, ministro das finanças que havia atraído sobre si o ódio dos militaristas pela sua política de austeridade orçamentária, recebeu pelo correio, à guisa de mensagem, um estojo de laca que continha uma adaga. Quando, a 18 de maio de 1930, voltando de uma conferencia naval de Londres, onde o Japão tinha firmado um acordo de redução de tonelagem embarcada, o almirante Takarabe quando desembarcou em Yokohama, recebeu de um jovem adepto da extrema direita igual lembrança como um convite ao seppuku.
A usurpação do Estado pelo militarismo foi forjada desde o início do século XX, pois a partir de 1889 a legislação constitucional já garantia que o imperador era o comandante supremo do exército que não prestava contas ao governo estabelecido. O exército crescia então dentro do Estado, como força autônoma, ainda presa nominalmente ao poder sagrado do mandatário. O soberano em sua função divina não se rebaixava a controles e sanções. Seu papel era manter-se intocável, imutável e silencioso, transcendente de toda decisão mundana. Com o objetivo de torná-lo impermeável aos acasos e sortes do poder político secular através dessa estrutura legal, o exército tornou-se irresponsável com esta proteção da influencia da política civil que provocou como conseqüência o efeito contrário, a supremacia do exército que tinha vínculo direto com o poder supremo imperial.
As ligas de extrema direita, múltiplas, sectárias, fracionadas e há muito corrompidas pelos subsídios secretos recebidos desses mesmos grupos financeiros que odiavam e pretendiam reformar, não eram o maior de todos os perigos. Alguns de seus ideólogos pretendiam restaurar um socialismo nacional, como Kita Ikki, esboçavam planos de reconstrução do país a partir do nivelamento de fortunas, apelando para um segundo renascimento, batizado como Showa Ishin, a Restauração da Era Showa. Nada demais haveria de muito inquietante nesta ideologia nascente enquanto o exército mantivesse suas tradições de lealdade ao Estado. Mas paulatinamente tudo se degradou na linha de comando: tenentes, coronéis, generais aos poucos foram esquecendo seus princípios de submissão ao Estado constitucional.
Nos escalões mais baixos os tenentes com emoção patriótica davam ouvidos às ligas nacionalistas e passaram a fomentar complôs e atentados. Em 1927, duzentos jovens oficiais formaram uma sociedade secreta para velar pela salvação do Império. Em 1931, outro grupo fundou a Sociedade das Cerejeiras ( Sakurakai ) e planejaram um complô logo descoberto e abafado. Meses mais tarde planejaram um bombardeio de avião a uma sessão do governo e assim aniquilar de um só golpe seus ministros. Era o tempo dos assassinos. Na noite de 15 de maio de 1932, nove oficiais comandados pelo tenente Koga penetram na residência oficial do Primeiro Ministro. O velho ministro Inukai, de setenta e cinco anos, acende um cigarro e os convida a se explicarem. Um segundo grupo chefiado pelo tenente Yamagishi irrompe na sala e o oficial ordena- “não conversem, atirem”. Desta vez nada de suicídio. Seu desprezo pela vida se resume ao assassinato puro e simples disfarçado de ato político. Bastou-lhes se entregar a policia. São condenados a apenas quatro anos de prisão graças a complacência de seus pares que justificam a ação pela “sinceridade” deles. A vida de um Primeiro Ministro valia pouco no Japão da época.
São soldados dirá em 1934 o barão Kikuchi, ele mesmo general de patente, num discurso à Camara dos Pares, eles tem direito a nossa indulgencia: aqueles que estão convencidos de estarem agindo por patriotismo devem poder fazer o que acreditam dever fazer. Se o apego à doutrina imperial inocentava o frenesi de alguns com certeza ela servia à estratégia de outros. Pois esses atos de terror cometidos pelos subalternos serviam aos interesses dos generais mais sábios. Lamentavam-se os arroubos juvenis, mas usavam desses cometimentos para mais intervir nas decisões do Estado e aumentar seus orçamentos de armas. O exército subia ao poder de ano a ano, como outrora, no fim de Heian, quando se tinha fortificado os clãs Taira e Minamoto.
E como a história se repetia, esse exército não era menos dividido. Uma facção dita da Via Imperial (Kodoha), que contava com oficiais vindos dos antigos clãs do sul e dos quais se poderia traçar a origem até Saigo Takamori, distinguia-se pelos seu radicalismo: suas idéias de profundas reformas, uma nova Restauração, o imperialismo justificando o dever de expansão e de renovação. A facção rival, Toseiha, queria controlar este ardor meridional e pretendia viver em paz com o Estado, com a condição precípua de controlá-lo. Estrategicamente, Kodoha pregava a guerra contra a União Soviética, Toseiha queria dirigi-la contra a China e a Ásia do Sul.
O fracasso de uma intentona favorecida por certos generais da Kodoha (Araki, Mazaki, Honjo) permitiu a vitória dos adversários ainda mais conservadores e chauvinistas. Na noite de 26 de fevereiro de 1936, vinte e um jovens oficiais da primeira divisão, tenentes e capitães se amotinaram. Em nome do imperador e da salvação nacional, ordenaram aos seus subordinados, uns mil e quinhentos soldados que ocupassem o bairro dos ministérios. De forma coordenada, equipes de matadores partiram para assassinar ainda na cama seis personagens mais importantes do Estado. Ao acreditarem em sua boa causa, sentiam justificadas suas ações e se consideravam juízes das vidas dos outros. Aliás após os crimes cometidos, acreditando na vitória de sua causa, eles beberam, puseram-se a cantar e a festejar. As velhas tradições do Bushido, o Caminho do Samurai tinham se perdido.
Eles se alegraram cedo demais. De forma inusitada o jovem imperador, saindo de sua costumeira reserva ritual opôs firme resistência a qualquer compromisso com a quartelada. Ele percebia que usavam seu nome para cometer esses abusos sangrentos. Sua divinização tinha por objetivo anulá-lo de vez mantendo-o como um símbolo inerte do Estado. O imperador não permitiu então que o mais violento se apropriasse de sua autoridade. A suposta pureza invocada pelos rebeldes não lhe parecia justificar tais atos brutais. Os rebeldes, cercados de arame farpado, montaram seus acampamentos nas ruas, onde derretia a neve do inverno. As negociações se prolongavam sem que os jovens oficiais terem conseguido nenhuma de suas reivindicações. Em meio ao murmúrio dos soldados já descontentes, cercados pelas tropas fiéis ao Estado, em 28 de fevereiro fizeram saber que se renderiam e se matariam, com a condição de que um mensageiro do imperador (chokushi) viesse lhes trazer a ordem. Até mesmo essa satisfação lhes foi recusada. O imperador contestou que se eles quisessem podiam se matar, mas que em função da revolta e das mortes eles tinham deixado de serem soldados e, portanto, nenhuma ordem podia esperar do Estado. Então como ultima demonstração, voltando os olhos cheios de lágrimas para o Palácio Imperial, cujas muralhas avistavam dentro da noite, os rebeldes cantaram o hino nacional, Kimigayo, da forma mais lenta e pungente.
A alguns quilômetros dali, em sua casa de Setagaya, o tenente Aoshima comete o seppuku. Não tinha feito parte da rebelião, mas estava ligado aos companheiros por laços de amizade e não queria combatê-los caso fossem considerados rebeldes. A morte voluntária resolveria seu conflito interior. Com ele matou-se sua jovem esposa. Ainda nesse caso brilhava a chama da tradição pura.
Dos vinte e um oficiais da rebelião, somente dez se mataram no momento da derrota. Se o jovem tenente Aoshima tinha a certeza de preceder seus amigos e incentivá-los com esse ato de honra enganou-se profundamente. Após a rendição, na manhã de 29 de fevereiro foram conduzidos todos à residência oficial do ministro da Guerra e foi-lhes perguntado se desejavam também se matar. No primeiro momento concordaram e lhes foram propiciados os lençóis brancos e as armas necessárias para cumprirem o ritual. Eles então se reuniram e mudaram de opinião. Uma morte tão rápida não trairia a causa? Por que em vez disso não deviam encarar o tribunal, denunciar os abusos que eles tinham pretendido combater, a miséria do campo, a escassez dos recursos militares, a inércia do governo, a corrupção dos políticos civis? Samurais que pretendiam ser, tinham virado em oradores, advogados: o Ocidente que tanto contestavam tinha marcado bastante os novos tempos e os costumes da caserna. Aliás seus generais que eram cúmplices, nem sequer foram detidos. Logo ficaram desiludidos: o processo em recinto fechado correu célere em maio e junho de 1936. A maioria, treze sobre dezenove, foi condenada à morte por fuzilamento. A vergonha não lhes foi poupada, foram lembrados da desonra de uma morte por condenação, não tinham sabido morrer, como homens de armas tinham se mostrado indignos do Bushido. Não se tendo matado, mereciam viver? O argumento utilizado até então pelos terroristas para difamar suas vítimas tinha se virado contra eles. Nenhum oficial de escalão mais alto foi condenado. Toseiha, a facção junto ao poder mais uma vez tomava as rédeas do exército. Havia assim interesse em apresentar o caso como desvario de jovens. Mas os ideólogos sofreram a maior impiedade: Kita Ikki e Nishida Zei, que tinham querido introduzir idéias socialistas nas ações dos militares e tentar formular em palavras o resultado dessas agitações como fruto direto da insatisfação da sociedade, foram acusados, como Sócrates, de tentar corromper os jovens. Eles foram prontamente presos, condenados e executados.
Apesar da derrota dos jovens oficiais, o desenrolar dos acontecimentos levou a um maior poder dos militares que usaram as agitações como motivo para controlar ainda mais a política do Estado com a justificativa de impedir que novas perturbações voltassem a ocorrer no país. Por um acordo tácito os dirigentes civis deram para o exército mais liberdade nas ações externas, e com isso evitariam que novas revoltas ou até mesmo um golpe militar eclodissem garantindo assim seus interesses agrários sobre os camponeses desfavorecidos. A política externa foi dominada pelos coronéis nas fronteiras do Império. No continente suas ações eram no sentido de criar um fato consumado que pudesse sabotar a diplomacia oficial e levar o governo de qualquer maneira para o caminho do expansionismo territorial. A 7 de Julho de 1937, mais uma provocação perto de Pequim desencadeia à escalada do conflito na China. A Segunda Guerra Mundial garantia para os militares, ocupação certa para os anos vindouros.
A tradição de honra do Bushido já não influenciava o militarismo japonês como antes. Soldados e oficiais levados pelo frenesi da violência, de 14 de dezembro de 1937 a 14 de janeiro de 1938, durante quatro sangrentas semanas massacraram as populações civis em Nanquim. A falta de controle das tropas de infantaria incentivada pelos oficiais demonstra o lado mais cruel do militarismo, como em qualquer época, piores que quaisquer animais enlouquecidos, deliciavam-se com as atrocidades contra os vencidos: pessoas indefesas, velhos, mulheres e crianças que sem culpa foram caçadas porta a porta e chacinadas ou brutalizadas pelos invasores. Em 1941 e 1942, as mesmas crueldades se repetiram em Hong Kong, nas Filipinas, na Indonésia, na Malásia, na Birmânia. A antropofagia xenófoba embriagava de sangue homens que se consideravam letrados, profissionais liberais, camponeses, intelectuais que ao envergarem seus uniformes militares agiram como bestas assassinas contra populações que consideravam inferiores racialmente por motivações outras que transcendem as simples condições de garantir interesses de Estado.
Desde 20 de novembro de 1937 que as operações militares e até mesmo os assuntos civis nos territórios dominados tinham escapado do controle do governo, eram comandadas diretamente por um quartel general que só prestava contas, em tese, ao imperador. Os interesses em relação ao continente não eram mais tratados pelo ministério das Relações Exteriores, passando em agosto de 1938 a um “Escritório de desenvolvimento da Ásia” criado e controlado pelos generais.
Enquanto isso no Japão o ufanismo dominava, o país todo foi requisitado por uma lei de Mobilização Nacional promulgada em 16 de março de 1938. Uma brochura com dois milhões de exemplares foi distribuída reafirmando a unanimidade da nação: bastava esquecer-se de si próprio, elevar-se acima dos interesses privados para banhar-se nas graças do Tenno. O novo ministro da Educação, general Araki, apreciava divulgar um slogan: ichioku isshin, cem milhões de homens, um só pensamento. No front das idéias, pretendia-se colocar de lado os conceitos de luta de classes e de individualismo burguês por uma nova ordem que se assemelhava ao conceito étnico tribal dos antepassados da época da revolução agrícola numa estranha nostalgia de uma época de ouro inexistente que vivia no imaginário dos poderosos. Todo o mal provém do egoísmo: do individuo, da família, do clã, das classes laborais. Todo o bem provém da abnegação para construir um projeto nacional de um país pobre de recursos naturais e por isso mesmo faminto para crescer além de suas fronteiras nacionais e saquear as riquezas incomensuráveis dos povos inferiores que acreditavam habitar alhures. A verdade para o individuo era saber morrer para esse eu de ilusão, eco profundo dos ensinamentos búdicos desviado, distorcido, alterado pelos interesses dos poderosos que exigiam de seu povo o sacrifício supremo da imolação ao deus canibal da guerra. Oposto ao espírito do Buda, esta utopia unanimista servia para negar os conflitos internos que dilaceravam uma sociedade e justificar o expansionismo que subjugava as nações vizinhas, resultado do militarismo exacerbado ao máximo. Em 1940 os partidos políticos foram dissolvidos pelos autoritarismo e foi criado em seu lugar uma “Associação Nacional para o Serviço do Império” (Taisei yokusankai) onde as divisões foram camufladas em doces discursos. Os súditos do imperador foram exortados a se anularem unindo-se a uma alma coletiva. A dissolução do eu induzida pelo programa ideológico da classe dominante como ferramenta de dominação impõe uma totalidade sem contradições e sempre serviu em todos os tempos para mover as massas em um determinado sentido. Mas o Japão não era exceção. Multidões hipnotizadas nos quatro cantos da terra escutavam os discursos magnéticos desses líderes nacionalistas que brotaram numa mesma época, colheita farta, verdadeira maldição mortal que prosperou nas nações mais civilizadas e deixou uma herança de morte e destruição de milhões.
O príncipe Konoe, jovem e brilhante representante da nobreza, rodeado de nacionais socialistas, estava inebriado pelas primeiras vitórias que pareciam anunciar um resultado positivo afinal. O supremo sacrifício estava sendo preparado pelos generais que viam no ato da confrontação a possibilidade de garantir um futuro de prosperidade ao país e só uma ação audaciosa poderia elevar a nação ao seu destino merecido de império milenar. Pearl Harbor representava este ato insano de ousadia que só os jogadores acostumados com a sorte e o azar podem apostar. O general Tojo, o homem da guerra, se considerava herdeiro de Yamagata, o grande fundador do exército japonês. Mas os princípios que haviam dado renome ao estadista escapavam-lhe: o aventureirismo deve servir e não pode nada decidir – toda a audácia na tática, toda a prudência na estratégia. Neste ponto de reflexão também a tradição foi esquecida, pior ainda, não foi reconhecida. O almirante Yamamoto, enquanto elaborava os planos para atacar Pearl Harbor, durante o verão de 1941, já sabia que a frota não agüentaria mais de um ano em combate. Mas naqueles tempos tinha se tornado doutrina entre os militaristas que a vontade é a única medida da força e obedecer a verdade era injuriar a vontade. Concluía-se assim que era importante atacar sem demora, para intimidar o adversário. Um país com recursos escassos como o Japão, para continuar a guerra necessitava ampliar a guerra, para terminar a conquista da China, necessitava conquistar o sul da Ásia e garantir assim o fornecimento do petróleo. A expansão sempre é seguida pela retração ensinam as mais antigas doutrinas.
Até 1931, a expansão do Império tinha sido lenta, prudente, regular. Depois impulsionada por dez anos de vitórias assumiu um crescimento temerário. Subitamente, foi a explosão em alguns meses, até os confins da Austrália e da Índia. Mas em junho de 1942 começa a derrocada com a batalha perdida de Midway. E o refluxo confirmou-se nos primeiros dias de 1943, em Guadalcanal, depois de ilha em ilha foram minguando os recursos e os contingentes de veteranos até a batalha de Okinawa em abril, maio, junho de 1945. As baixas cresciam, mas eram poucos os que se rendiam. Vencer ou morrer era a divisa levada a sério pelos soldados japoneses. Quando uma posição tornava-se insustentável a carga derradeira contra os lança-chamas e metralhadoras do inimigo aos gritos de banzai, acabava o combate. Os feridos arrancavam o pino de uma granada ou pediam a morte ao melhor amigo. Os oficiais que carregavam o sabre, instrumento da tradição do comando, anacrônico numa guerra na era da pólvora, utilizavam seus préstimos para não sofrer a desonra de cair em mãos do inimigo seguindo o velho ritual da morte voluntária. Os inimigos viam com horror e até certa repugnância o ato acusando o fanatismo desse estranho povo oriental. Não esperavam com isso vencer moralmente nem muito menos convencer os adversários, tinham plena consciência de seguir a antiga tradição do suicídio de derrota.
Aos milhares, os civis também jogaram-se para a morte, por fatalismo e por temor pela derrocada que se aproximava quando teriam que enfrentar uma nova realidade incerta e ficar nas mãos do vencedor vingativo. Em julho de 1944, a pequena ilha de Saipan sofreu o assédio do inimigo e acabou por sucumbir ao fogo intenso das forças americanas. O almirante Nagumo, que tão bem tinha organizado e executado o golpe de Pearl Harbor, preferiu o seppuku, e o velho general Saito matou-se diante de seus oficiais, após ter ordenado o ultimo assalto das forças remanescentes. A população civil japonesa estava refugiada nas grutas que dominavam o mar. Muitos foram os pais e mães que se precipitaram com os filhos no colo dessas falésias. Em Tóquio a imprensa controlada aproveitou para ampliar os acontecimentos, em celebrar o sacrifício dessas vítimas, como exemplos de patriotismo. De batalha em batalha, de uma ilha para outra em Okinawa os obstinados defensores já não tem nenhuma esperança de mudar o curso da guerra, a 22 de junho de 1945 os generais Ushijima e Cho realizam um duplo ritual de seppuku, doze mil americanos e cento e trinta mil japoneses jaziam no campo de batalha. Com a guerra se aproximando do solo nacional, a resistência se tornava mais áspera, mais sangrenta. O general Tojo não estava mais no poder desde a queda de Saipan e o cerco se fechava sobre o país. Mas como parar o sangrento sacrifício? O grande deus canibal da guerra cada vez exigia mais vítimas. Quanto mais mortos mais os sobreviventes se apressavam em seguir o mesmo caminho, envergonhados pela própria existência. Em 1869, o imperador Meiji tinha fundado em Tókio, sua nova capital, um templo dedicado ao repouso das almas dos guerreiros que morriam em combate, Yasukuni jinja, o Santuário da Nação em Paz. “Nós nos encontraremos em Yasukuni”, diziam os soldados antes do ataque. Um armistício nesta altura da guerra parecia uma afronta contra tantas vidas já sacrificadas. O argumento dos mortos servia como motivo para não parar o combate que alimentava o ciclo vicioso de cada vez mais vítimas. A guerra virou um fim em si. Reinava a penúria, a fome já ameaçava as populações e os bombardeios aéreos não davam trégua. Bombas incendiárias caíam nos centros urbanos fazendo vitimas entre os civis. Mas por toda a parte só se clamava para multiplicar os sacrifícios, a inércia do deus devorador de vidas não concebia outra saída.
Após os militaristas terem dissipado toda a resistência interna contra seus atos belicosos, assassinado uns, intimidando outros, sabotando toda a diplomacia e partido para uma guerra de agressão, como suportar a vergonha de uma capitulação perante os olhares da nação ferida e seu imóvel rei deus? Na guerra do Pacifico o exército tinha apostado todas as fichas, a derrota representava sua morte e de seu modo de vida, o fim do sonho antropofágico arrojado pelos ancestrais ao destino nacional de dominação de outros povos para eles sempre inferiores. Enquanto isso no front europeu, outra nação tentava afirmar seus valores de superioridade racial, levando multidões ao sacrifício baseados no sofisma de que ao vencedor tudo é permitido e que só a derrota é a culpa cabal no tribunal da história, idéia que sempre é perseguida pelos sistemas imperialistas de todos os tempos. A tradição militar japonesa sugeria a saída para a contradição da derrota: morrendo fica-se invencível. Cada combatente tinha essa alternativa em mãos, no século das ideologias que consagraram o espírito de liberdade, a morte voluntária era a suprema libertação ao jugo do vencedor vingativo. Tinham os japoneses, plena consciência que depois de tudo feito não podiam esperar maior complacência do vitorioso.
Enquanto nos EUA a casta de cientistas, muitos deles fugidos do nazismo na Alemanha, trabalhava incansavelmente em armamentos de destruição de massa, no projeto Manhattan, e na Alemanha seus cientistas criavam e lançavam suas V1 e V2, os japoneses se gabavam de possuir a arma absoluta, terror do inimigo, segredo espiritual da raça nipônica. Esta receita de invencibilidade, que não requeria novas descobertas científicas, se prendia ao arquétipo de criação da nacionalidade, os antigos costumes de sacrifício tribal oriundos de um passado antropofágico, tradição longínqua, identidade da nação que pela profunda falta de recursos tornou-se rica de abnegação dos seus jovens mais promissores. Para vencer era requerido deles a força de vontade suprema ao ponto de querer vencer até a morte. Bastava organizar a vontade do ponto de vista estratégico para fazer bom uso do sacrifício consentido. Quando os americanos desembarcaram em Saipan, alguns pilotos, conscientes do estado precário das forças japonesas, e da iminência do bombardeamento do solo pátrio tomaram a extrema decisão de se jogarem com seus aviões sobre os navios inimigos: a 20 de junho de 1944, uma esquadrilha decolou da base de IwoJima. A maior parte das aeronaves foi abatida, nenhum alvo foi atingido, de dezessete pilotos, cinco se perderam e acabaram por voltar à base, estavam decididos a tentar a sorte do ataque mais uma segunda vez. A idéia foi bem vinda pelo comando, não era a primeira vez que um projeto de uma ação suicida era concebido. Jibaku eram denominados esses suicídios ofensivos por auto-explosão e todos conheciam os três heróis que, a 20 de fevereiro de 1932, durante os combates de Xangai, tinham rompido as defesas inimigas, munidos com longos bambus carregados de TNT, abrindo uma brecha nas cercas de arame farpado chinesas. Mas com a antevisão da derrota, as façanhas perderam o sentido de improvisação, já não traduziam à emoção de um momento, para se tornarem estratégias sistemáticas, maciças, regulares de quem pretende uma defesa desesperada.
A 19 de Outubro de 1944, o vice-almirante Onishi, comandante das forças aeronavais das Filipinas, na base de Mabalacat dirigiu-se aos seus subordinados e comunicou suas conclusões aos pilotos reunidos. Os americanos tinham acabado de realizar seu desembarque, ia travar-se uma batalha naval decisiva, mas havia a possibilidade de grandes danos ao inimigo se caças do tipo Zero, carregados com uma única bomba de duzentos e cinqüenta quilos, fossem explodir contra os porta-aviões inimigos. Solicitou o comandante, voluntários para a missão, entre seus comandados. Não havia a mínima chance de sobreviver a ação, diferente de outras missões onde uma ínfima possibilidade de retorno ainda é possível, segurança ilusória que em condições normais dá forças aos soldados. Nem a decisão foi tomada no calor da batalha, quando exemplos de heroísmo ocorrem em meio ao fragor dos canhões e um herói sucumbe para destruir um alvo e preservar seus companheiros da morte.
Os pilotos de Mabalacat silenciosos ouviram as palavras de Onishi, pesaram os argumentos, depois deram seu assentimento unânime. A 20 de outubro de 1944, três dias após o desembarque norte americano nas Filipinas, três dias antes da terrível batalha naval de Leyte, “Unidades especiais de ataque por choque corporal”, Taiatari tokubetsu kogekitai, abreviado Tokkotai, foram criadas, a principio quatro esquadrilhas. Na manhã de 25 de outubro, uma primeira vitória, dos cinco aparelhos da esquadrilha Shikishima, quatro conseguiram atingir o alvo e o porta-aviões Saint-lo foi afundado. Quando foi informado do acontecido o imperador formulou uma aprovação reservada, ambígua: “Seria indispensável chegar até aí? Enfim, é uma bela ação”. Seriam chamados shimpu, ou kamikaze, o vento dos deuses, como o tufão que se abateu sobre a frota mongol em 1281, salvando o Japão da invasão. Os mais graduados não tinham ilusões, mas era a ultima esperança de um país em vias de sofrer uma invasão e evitava demonstrar imobilidade ante a opinião do povo já no limite da resistência.
Estes jovens de vinte anos viram-se então diante da morte com algumas semanas, alguns meses de antecipação e preparo. Sua escolha lhes obrigavam a manter à altura do compromisso supremo. A maioria dos candidatos vinha das universidades, das disciplinas jurídicas e literárias, pois se consideravam os cientistas primordiais para o futuro do país para serem desperdiçados assim. Muitos de seus camaradas tinham já desaparecido. Uma noite recebiam a notícia de que no dia seguinte seria a ultima manhã das suas vidas. Escreviam suas ultimas cartas, um ou dois poemas, e dormiam sabe-se lá como. Ao nascer do sol, aprontava-se uma mesa em pleno campo de aterrissagem, a esquadrilha se reunia junto com o comandante da base para uma ultima taça de saque enquanto era retirada as camuflagens de galhos e folhas que cobriam as aeronaves. As fotos e filmes registraram seus rostos sorridentes nas cabines dos aviões, agitando uma saudação com a mão, com a testa cingida por uma faixa branca de algodão impresso um sol vermelho ao centro. Não pareciam estar seguindo para a morte certa. Nem eram as doutrinas nacionalistas que nessa altura da guerra motivavam seus atos, mas sim uma certeza da agonia de sua pátria que lhes davam forças para prosseguir. Após romperem as amarras da vida estavam livres para cumprir seu destino. Suas dúvidas estavam resumidas na capacidade de atingir com sucesso objetivo. Fechariam os olhos no momento do impacto? Teriam o sangue frio necessário para atingir seu alvo?
Suas ações foram temíveis. O inimigo num primeiro momento não sabia como reagir, o navio visado deveria tentar uma rota em ziguezague ou ajustar o alvo com os canhões antiaéreos? Com o tempo aprenderam a se defender, o efeito surpresa foi desgastado e as perdas de navios foram aos poucos minimizadas. Os tokkotai atingiam o alvo em menos de um caso por oito, não eram a arma cem por cento eficaz, mas seu baixo custo justificava pelos resultados, seu rendimento era superior que outros métodos ordinários em termos de estratégia de ataque. A batalha de Okinawa foi a mais encarniçada, estava em jogo o orgulho de uma nação já quase derrotada, trezentos navios foram atingidos, trinta e quatro afundaram. Não era mais o bastante para salvar o Império. Os pilotos experientes já na sua maioria tinham desaparecido. A instrução ficou ainda mais prejudicada pela falta de combustível de aviação. Usavam-se antigos aviões que não podiam sustentar um combate aéreo. A cota de combustível não compreendia a volta. Inventou-se um torpedo voador, de fabricação sumária, largado do avião como um planador, o piloto do engenho ia sentado sobre uma tonelada de explosivos, acendia três foguetes que o propulsavam em velocidade sobre o alvo escolhido. Essas unidades de elite foram batizadas solenemente de Jinrai oka, Flores de Cerejeira do Trovão dos Deuses. Em 21 de março de 1945 tentou-se utilizar a nova estratégia, mas nessa altura do conflito, o domínio aéreo dos norte americano era esmagador, os bombardeiros portáteis foram interceptados, abatidos. Durante outro ataque, a 12 de Abril, conseguiram afundar apenas um contratorpedeiro. Seus esforços minguavam mas não a criatividade dos inventores que focou-se na questão dos batalhões suicidas: botes leves carregados de explosivos, homens-rã, submarinos-torpedos. Nos testes nenhum deles demonstrou-se eficiente. Ritualmente, até o fim, cinco mil pilotos kamikazes na idade de uns vinte anos se sacrificaram em alguns meses. Ninguém mais imaginava deter o desembarque do inimigo, mas era necessário que o sacrifício persistisse para honrar a glória do Grande Japão agora em mortal agonia. O grande deus canibal incorporado na imagem do sol nascente, da mesma forma, como entre os Astecas exigia o sacrifício mortal dos guerreiros. O endocanibalismo ritualizado nessa forma de combate desesperado iria afirmar a vocação nipônica com esse sacrifício extremo. Como na lenda de Teseu e o Minotauro o Japão entregava seus jovens em holocausto ao inimigo. Eficazes ou não, dizia o almirante Onishi, esses ataques dão ao mundo e a nós mesmos o espetáculo do heroísmo e do orgulho, garantem, aconteça o que acontecer, a sobrevivência de nosso patrimônio espiritual. Assim como entre os ameríndios ocorria, o sacrifício do guerreiro é um fim em si, é vazio e vão, mas repercute no distante passado da humanidade, nesse processo sem sentido aparente que é a guerra dos homens e retorna à sua trilha primordial, sua verdadeira dimensão de evidente ritual antropofágico. As máscaras orgulhosas das marchas e ufanismos nesse caso caíram e despojaram o feio monstro da guerra de seus disfarces, discursos e flâmulas ondulantes.
Bibliografia: Texto extraído e adaptado
1) "A Morte Voluntária no Japão" - Maurice Pinguet - 1987
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